Há pouco tempo, estive na abertura da exposição fotográfica “Vista sua Existência”, da documentarista Sandra Alves, alguém que eu já admirava muitíssimo por seu trabalho no registro da defesa dos direitos e da democracia. Na abertura da exposição aconteceu uma roda de conversa. Eu não andava lá essas coisas em termos de motivação e ânimo – oi, 2016 – então fui mais para ser uma espectadora passiva do que para participar do diálogo. A fotografia que ilustra o convite para a exposição por si só já falava, para mim, muito sobre esse ano: duas mulheres com os seios à mostra em uma manifestação. 

Se você estiver em Florianópolis, visite também (até 10/01/2017)

 

Havia algo na junção do nome da exposição com aquela fotografia que mobilizava alguma coisa em mim, embora eu ainda não entendesse o que era. Então, na conversa que se seguiu naquela roda, toda a essência deste ano que está acabando se construiu claramente à minha frente, muito mais claramente do que eu pensei que pudesse alcançar, considerando meu estado de (des)ânimo. E surgiu a partir do comentário de um dos presentes, que se dizia sem esperança para enfrentar o que ainda estava por vir frente a tanto retrocesso social, de direitos e tudo mais sobre o qual falamos tanto ao longo de 2016. Ele não sabia exatamente como enfrentar tudo isso – como grande parte de nós.

Então decidi entrar na conversa.

Durante grande parte do ano, foi muito difícil, pra mim, entrar em conversas. E isso porque me senti quase todo o tempo extremamente fragilizada. Foi um ano bastante desafiador pessoalmente, de enfrentamento de monstros internos e de montruosidades externas, de encontro frente a frente com o que de pior pode haver nas pessoas. E confesso que esse enfrentamento me enfraqueceu durante grande parte do ano. Senti-me triste, fraca, frágil, vulnerável. Passei por vários impactos pessoais, aos quais se somaram as mudanças que o país está vivendo e que tem me afetado (como a todo mundo que trabalha por direitos) bastante. Toda a vulnerabilidade que eu estava sentindo me incomodava, me frustrava e fragilizava. Não sou dada a remédios, então decidi enfrentar tudo o que foi acontecendo de cara limpa e peito aberto à terapia. E foi lá que, um dia, minha terapeuta me confrontou:

“Mas Ligia, sentir-se vulnerável não é ruim. Vulnerabilidade não é fraqueza. Todo mundo é mais ou menos vulnerável. Reconhecer a própria vulnerabilidade é fundamental”.

Saí de lá profundamente tocada por essa frase e ávida por ler mais sobre isso. Porque, afinal, tanto se cobra de nós, que temos que ser fortes, que temos que aguentar, que temos que superar e tudo mais, que quando a gente se sente vulnerável é como se algo de errado estivesse acontecendo. Mesmo que não seja errado, que seja absolutamente normal. Eu queria ler mais sobre isso. Mas eu não podia ler mais sobre vulnerabilidade porque, afinal, 2016 foi o ano de conclusão da minha segunda tese de doutorado, e eu precisava escrevê-la. Na verdade, quando tudo isso aconteceu, eu tinha menos de 45 dias para escrever a minha tese – cujo corpo do texto ainda não estava escrito, nem organizado nem nada (agora que já passou, que eu já defendi, que já sou mais uma vez doutora, já posso confessar isso, né?). Eu triste, cansada, sem motivação, tendo que escrever uma tese (além de trabalhar, cuidar de criança e tudo aquilo que todas sempre temos que fazer…). Então, cheia de vulnerabilidades intensas, eu não podia ler sobre isso porque precisava escrever sobre mulheres, sobre violência, sobre mulheres que haviam sido violentadas. Precisava ir e voltar centenas de vezes aos seus relatos de dor, me expor novamente àquelas monstruosidades, e cutucar feridas, e foi um caos. Dor sobre dor. A minha pessoal, as delas, as nossas. Eu estava arruinada. E enquanto isso, no Brasil…

Pois foi naquela roda que as coisas passaram a fazer mais sentido pra mim. Quando o amigo disse que não sabia o que fazer e que estava sem esperança, que não sabia como enfrentar o rolo compressor que nos esmagava (e foi exatamente assim que me senti durante grande parte desse ano) consegui compreender pelo menos uma parte do que houve em 2016 a todos nós – quem acha que não faz parte desse “nós” ainda não entendeu o que está acontecendo. Consegui compreender que, hoje, não vamos conseguir sobreviver ao sentimento de rolo compressor que nos esmaga vestindo uma armadura de guerra e nos mostrando fortes. Simplesmente porque não estamos fortes. 2016 nos pegou de surpresa em inúmeras áreas da vida, não estávamos preparados e nos enfraquecemos em algumas áreas. E compreendi que a saída é justamente o oposto: fazer da nossa vulnerabilidade a nossa força. Expor nossas vulnerabilidades. Expor tudo de vulnerável que há em nossas vidas, em nossas relações, em nossa sociedade. Abrir o peito, tirar a blusa (daí meu sentimento com a imagem da exposição) e expor tudo de mais frágil que houver em nós.

Porque é só quando expomos as fragilidades e vulnerabilidades que temos condições de protegê-las.

As pessoas, de modo geral, apoiam e defendem quem está enfraquecido e vulnerável. Como coletivo, só conseguimos nos mobilizar, de fato, para proteger aquilo que vemos e reconhecemos como vulnerável. Nossa força, agora, vem daí: da exposição das vulnerabilidades.

E foi isso que eu disse a ele naquela roda: dessa vez, talvez não estejamos enfrentando o rolo compressor vestidos de armaduras; talvez estejamos enfrentando de outro modo. Tirando nossas carapaças, nossas blusas, nos mostrando como somos verdadeiramente e gritando: VEJA, ESTOU VULNERÁVEL. AINDA ASSIM VOCÊ VAI PASSAR POR CIMA DE MIM? Claro que este é um mundo difícil, em que muitas pessoas, sim, vão passar por cima de você enquanto você estiver se desnudando para elas, inclusive curtindo o gostinho de sangue. Mas acontece que quem está ao seu lado também está se desnudando em sua vulnerabilidade, e te abraçando, e você agora não está mais sozinha nisso, posto que já são duas pessoas. E quem está ao lado dessa primeira está fazendo a mesma coisa, e a seguinte também, e estamos todas fazendo coro e mostrando nossas vulnerabilidades e gritando: “Bem, essas somos nós, essas são nossas vulnerabilidades, estamos expostas, sofremos tudo isso aqui que você pode ver, e se ainda assim você decidir passar por cima de nós, que somos muitas, você vai ter que assumir publicamente isso e expor suas intenções. Nossa vulnerabilidade exposta, agora, é a nossa força. Contra a evidenciação do seu erro e da sua crueldade”. Quem sabe, assim, as pessoas vejam… Quem sabe, assim, as pessoas mudem de ideia… Quem sabe consigamos mostrar que, de fato, as vulnerabilidades são forças que evidenciam a fraqueza de quem não se mobiliza para protegê-las. Esse pensamento é o pano de fundo de algo que passei metade deste ano dizendo nos cantos por onde estive: estamos vivendo tempos em que a mudança não virá mais de cima, se é que um dia ela veio. Os tempos agora são de mudanças que partem de baixo. Do pequeno. Dos grupos organizados nas escolas, nos bairros, nas cidades. De dentro de casa. Dos círculos de amigos. Partindo de quem, por mostrar sua vulnerabilidade, está se fortalecendo. É nesses pequenos núcleos de enfrentamento que a mudança está sendo gestada. E o que somos nós, cada um de nós, além de um pequeno núcleo de enfrentamento? Comecemos por ele, então: vamos reconhecer nossas vulnerabilidades. Vamos mostrá-las. Vamos transformá-las em força coletiva. Somos todos vulneráveis. O tempo de se vangloriar de uma suposta força que nunca se teve, apenas para disfarçar a dor e a insegurança, já se foi…

Foi isso o que fiz quase ao fim de 2016: abri publicamente, em um grande evento e sem que eu planejasse, o quão vulnerável eu estava. Simplesmente abri a boca e aquilo saiu. Quando vi, estava dizendo: "Oi, não estou nada bem, mas estou aqui". Logo que terminei de falar, pensei: "Ferrou. O povo veio aqui pra me ouvir falar de coisa feliz e eu falando que não tô bem. Certamente será a primeira vaia da minha vida". Mas isso não aconteceu. E eu vi ali, nos rostos das pessoas, que eu não estava sozinha nessa de não estar legal. E a humanidade que brota do reconhecimento da vulnerabilidade do outro como sendo a sua própria se expôs com toda força: terminei a fala e as pessoas se levantaram e aplaudiram. Talvez aplaudissem a si próprias, vendo em mim a dor que talvez sentissem também. O fato é que, bem, desde que isso aconteceu, algo em mim mudou. E as coisas foram melhorando. Porque saber que estamos todos juntos nesse barco que de tempos em tempos faz água nos dá força pra continuar. Porque, afinal, tirar água com balde é muito mais fácil quando estamos juntos.

Tenho uma boa expectativa para 2017 – e talvez já esteja errando, porque como diz o meme, expectativa é bicho selvagem que não dá pra criar… Não acho que será um ano muito diferente de 2016, não. Na verdade, acredito que teremos desafios ainda maiores, enquanto coletividade. A diferença é que, talvez, estejamos mais preparadas para enfrentá-los. E isso me dá uma tremenda força pra continuar. Nesse processo de enfrentamento, o que eu sinceramente desejo é que estejamos juntas na exposição das nossas vulnerabilidades. Que estejamos juntas na defesa de quem está mais vulnerável. Que estejamos juntas na transformação das nossas vulnerabilidades individuais em FORÇA COLETIVA. E que em 2017, ao abrirmos nosso peito e expormos nossas vulnerabilidades ao grito de VEJA, ESTOU VULNERÁVEL. AINDA ASSIM VOCÊ VAI PASSAR POR CIMA DE MIM?, possamos receber como resposta:

Não mais. Estou ao seu lado.

Obrigada por todo carinho, amor, apoio e fortalecimento que vocês nos deram neste ano. A mim especialmente, mas também a toda a plataforma Cientista Que Virou Mãe e ao trabalho que fazemos.

Que em 2017, todas as vulnerabilidades, individuais e coletivas, possam ser acolhidas com amor e respeito por todas nós.

E vambora pra cima.

*Imagem de abertura: Cut Piece – Yoko Ono, uma performance sobre vulnerabilidades, paz e encontro com o outro. Que me foi sugerida para este texto por Juliana Crispe, artista plástica, mãe da Lia e amiga amorosa, parceira e companheira que 2016 me trouxe.

 

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