Há 1 ano e 1 mês, eu estava prestes a voltar à minha antiga área de pesquisa científica em nível de pós-doutorado. Minha filha tinha 5 meses e pouco. Eu estava em pânico, triste, deprimida, porque teria que me separar dela pra ir trabalhar, ela tão novinha, sendo amamentada…
Estava numa crise dos infernos, achando que eu teria que optar entre a carreira e o “estar presente” na vida da filha-bebê.
Naquele dia, postei isso, um manifesto revoltoso pessoal cheio de palavrão, típica coisa minha em dia que tô possessa.
Ilustrei o post com essa foto aqui, da deputada italiana Licia Ronzulli, que havia ido há pouco à sessão plenária com sua filha de poucos meses no sling, reivindicando melhores condições de trabalho para as mulheres.
Hoje, 1 ano e 29 dias se passaram desde aquela postagem. Abri minha caixa de e-mails e meu Facebook: seis pessoas diferentes haviam marcado meu nome em links com uma notícia e fotos dela
Era essa outra foto aqui.
A mesma deputada, agora com a filha maiorzinha, no mesmo local, votando. A filha cresceu, e está lá trabalhando com a mãe.
O jornal The Telegraph escolheu essa foto como uma das fotos do dia no mundo (16/02/2012).
As pessoas viram isso e se lembraram de mim. E isso me emocionou.
Foi ótimo eu ter ido atrás da postagem antiga…
Hoje, eu não estou mais naquela área de pesquisa.
Hoje, eu não faço mais pós-doutorado.
Hoje, estou começando tudo de novo.
Hoje, eu não preciso escolher entre uma coisa e outra.
Minha área de pesquisa antiga não me permitia estar com a minha filha enquanto eu trabalhava. Muitas mulheres também possuem profissões que não as permitem “levar o trabalho pra casa”, digamos assim. A minha profissão também não me permitia. Então eu mudei de caminho.
Para um que me traz alegria, leveza, sensação de estar trabalhando realmente por um bem comum, sensação de estar aplicando a ciência diretamente no cotidiano e na vida das pessoas. Hoje eu ouço pessoas, eu leio o que as pessoas viveram, eu sinto o que elas sentiram. Leio coisas muito profundas, reflexões, livros filosóficos, autores importantíssimos para a história da ciência médica e biológica. Coisa que eu não tinha tempo de fazer porque precisava ler as dezenas de novos artigos hightechs que saíam por semana sobre meu tema de pesquisa. Essa é, sim, uma crítica à ciência básica: a gente se preocupa tanto com o detalhe que esquece – ou não tem tempo – de colocá-lo num contexto maior.
Estou feliz onde estou, fazendo o que estou fazendo. E, principalmente, com minha filha do meu lado.
Hoje estive numa defesa de mestrado em meu antigo departamento, onde fiz meu doutorado. Vi aquela amiga ali, dando o máximo de si, mostrando seus resultados, fruto do trabalho de 2 anos de pesquisa e dedicação, e me vi há 10 anos atrás. Tudo o que fiz como pesquisadora em farmacologia, neurociência, psicobiologia foi feito com amor, com paixão, com afinco. Eu podia ter feito mais, mas talvez isso me levasse a viver menos todas as coisas que vivi, então estou satisfeita com a maneira como foi.
Pouco antes de ir embora, ainda no prédio, uma pessoa que me conhece dos tempos do primeiro doutorado me parou e disse: “Ô louca, que história é essa que você está fazendo doutorado de novo?!“. Estou acostumada com essa reação, embora eu não goste nada dela…
Expliquei tudo, como já expliquei zentas vezes. No fim, ouvi o que eu já ouvi muitas vezes também: “Que bom que você teve a coragem. Eu não teria“. Ao que perguntei: “Mas você gostaria de ter?“, e a pessoa disse um sonoro “Sim!“. Fui embora pensando naquilo. Em como uma pessoa especial daquela passaria a vida inteira num caminho querendo estar em outro, acumulando títulos, prêmios e publicações, mas sem viver o que queria.
Fiquei pensando no livro Um, do Richard Bach (cuja frase da capa é “Seríamos os mesmos se soubéssemos o que nos espera para lá do espaço e do tempo?”), em que o cara tem a oportunidade de se encontrar com várias versões dele em mundos possíveis. A sensação que eu tenho, muitas vezes, é essa: que eu estou me encontrando todos os dias com um eu meu que saiu da possibilidade e se tornou concreto.
Eu não sei onde esse meu novo caminho vai me levar. E sinceramente, não estou me preocupando com isso. Eu passei 15 anos pensando assim, pensando em fazer tais e tais coisas pra melhorar o meu currículo, para que no futuro eu isso ou eu aquilo. Isso ou aquilo nada, ninguém sabe do futuro…
Então hoje eu não penso mais nisso. Eu penso em como estou fazendo as coisas agora. Hoje, finalmente entendi o que o John Lennon queria dizer quando disse que a vida é aquilo que te acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos.
O que me choca é ver o grande número de pessoas, amigos, conhecidos, que dizem também querer ter a coragem de mudar. E que não mudam. Gente que já descobriu um monte de outros talentos, gostos, habilidades, mas que não têm coragem de arriscar.
Pra vocês, caros amigos, eu digo: o que eu estou fazendo não tem nada de sonho romântico. É realidade. Eu não sou louca, eu apenas abri mão de algo que, de certa forma, me limitava, não me permitia ir além.
Tantas e tantas vezes eu tentei ir além nas discussões e me pediram pra me limitar ao assunto…
Tantas vezes me pediram pra me ater nos números, não extrapolar, não pensar em outras possibilidades.
Tantas vezes me pediram para cortar parágrafos com tons mais filosóficos.
Aí um dia eu escrevi um trabalho de qualificação em tom histórico e filosófico, esperando ser avacalhada em praça pública, para ouvir de um grande professor, minutos antes da defesa, que era o melhor trabalho de qualificação que ele já tinha lido ali.
Então, por favor, parem de me chamar de louca. Eu só estou fazendo agora o que eu realmente gosto de fazer. Louco é quem opta pelo hábito no lugar do amor (aproveitando uma outra conversa recente com amigos…).
A Licia Ronzulli está lá na Itália, levando a filha dela pro trabalho, reivindicando melhores condições de trabalho para as mulheres. E eu tô aqui no Brasil, em Florianópolis, trazendo meu trabalho pro lugar onde está minha filha, estudando sobre saúde coletiva.
Ao contrário da deputada, eu não sou ninguém importante.
Mas a escolha que eu fiz e a coragem que eu tive fazem como que eu me sinta importante para mim mesma e para minha filha.
E afinal, o que é mais importante que isso?!
Eu sinto que, de alguma forma, Clara se orgulhará de mim por eu ter mudado tudo, arriscado tudo e vivido dias de indefinições e incertezas, com 33 anos, para, também, poder crescer como profissional sem deixar de estar presente no desenvolvimento dela.
Eu só aceito esse “louca” se ele for adjetivo.
Se for, obrigada. É o que eu desejo pra você também.
Que possa ser louco só um pouquinho na vida, pra ver como é bom.