Eu achava que, nessa nova experiência de maternidade, que já dura quase 9 meses, eu só não me adaptasse bem à falta de noites bem dormidas. Errei. Errei geral. Errei muito. O maior problema mesmo é esse sentimento de que estou vulnerável pro resto da minha vida. Explico: antes da Clara nascer, não havia nada que eu temesse muito. Sempre fui muito destemida. Claro, todo mundo teme ficar gravemente doente ou perder pai, mãe e irmãos. Mas isso faz parte da vida e a gente aprende a lidar com isso – ou não aprende e simplesmente ignora e finge que eles são seres imortais. Mas no meu caso particular, não havia muito o que eu temesse não, fora isso já mencionado. Eu nunca tive um calcanhar de Aquiles. Aquiles foi um herói da mitologia grega que simbolizava o luto. Todo seu corpo era invulnerável, protegido, resistente, exceto em seu calcanhar. E aí um espírito de porco qualquer, sabendo disso, foi lá e meteu-lhe uma flecha envenenada, bem no calcanhar. Então quando a gente diz “calcanhar de Aquiles” está querendo dizer “onde somos vulneráveis”.
Sou vulnerável para todo o sempre amém, agora. Não no calcanhar. Na Clara. Ela é meu ponto de força, onde busco todos os dias motivos pra ser forte. Mas é também onde me acabo. Me toquei disso nesse maldito último final de semana que de renascimento e páscoa não teve nada. Qualquer coisa que represente um possível sofrimento pra ela gera, em mim, a maior angústia que eu já experimentei na vida. Muito pior do que ficar o resto da vida sem dormir.
Missão fadada ao fracasso, essa de querer evitar o sofrimento de um filho: sei que ela vai sofrer. É inevitável. Vivemos numa porcaria de planeta de provas e expiações (favor relevar os adjetivos pejorativos como “porcaria”, “merda” e afins; é que estou muito chateada). Então não tem como preservá-la dos sofrimentos da vida. Mas que merda isso! Ontem eu perguntei onde ficava o botão de DESLIGAR VULNERABILidADE MATERNA e minha amiga Ana Laura me disse que ele não vem no produto “mãe”, como eu já sabia. Mas sentir toda essa impotência é algo revoltante pra mim, esse ser revoltado. Briguei com a vida, nesse fim de semana, quando me toquei que minha filhinha poderia sofrer por muitos motivos e quando me toquei que eu tenho um medo imenso de algo sim, de algo que já aconteceu comigo e que não quero que aconteça com ela. Fiquei puta com a vida, muito puta. E lógico que ela riu de mim.
E a vida, essa doida inconsequente, tem uma maneira estúpida de nos mostrar definitivamente que não temos controle sobre nada e que não podemos impedir o sofrimento dos filhos: ontem, dia 25 de abril, Clara tomou aquele que foi o primeiro de uma série de tombos que eu sei que toda criança toma, rolando da cama e caindo de cabeça no chão. De cabeça! O que eu senti ali nem sei dizer. Mas tudo o que aconteceu na sequência foi um ensaio para a vida inteira.
Ela caiu e fez o maior barulho. Eu ouvi o barulho, depois o choro, dei um puta grito como nunca tinha dado e corri pra ajudá-la. Cheguei lá e ela estava no chão chorando, a peguei naquele misto de amor-desespero-carinho-proteção, passei a mão por todo o corpo, cabeça, bracinhos, perninhas, tudo, olhei pra ela, examinei, pra ver se tinha alguma coisa visivelmente errada, e ela chorando. Depois que vi que nada externo estava errado, fingi que estava calma e comecei a tranquilizá-la (enquanto ligava pro pai dela desesperada pedindo pra trazer o carro que eu queria levá-la ao médico). Ela não parava de chorar. Foi quando me toquei: é assim que será minha vida e é agora que eu vejo que tipo de mãe serei, que tipo de mãe quero ser. Então eu lavei o rostinho dela com água, molhei os cabelinhos, juntei bem a cabecinha dela no meu peito. Com a mão inteira espalmada, apoiei a cabecinha dela bem firme no meu peito. “Filha, estou aqui, bem do seu lado, bem juntinho, bem abraçada, vai passar, não vou te deixar”. Dei de mamar. Ela foi se acalmando. Enquanto ela mamava, liguei pra minha mãe, que não estava, falei com minha irmã, que também tem um bebê. “Lê, o que eu faço?” Irmã mais velha pedindo ajuda pra irmã caçula. Minha irmã me ajudou. Depois de mamar, Clara não parava de chorar. Ela, que nunca chora por nada. Então segurei-a com firmeza, abraçadinha comigo, cabeça colada no peito, e desci. Fui passear com ela no condomínio. Mostrei o riozinho, os passarinhos, a garça que estava ali no riozinho. Ela parou de chorar e se acalmou. E foi quando ela se acalmou que minhas pernas começaram a tremer. Sentei com ela debaixo das árvores e ficamos ali quietinhas. Eu sentindo o maior vazio do mundo. Aí o pai dela chegou e eu fiquei mais tranquila, porque eram dois agora pra ver se ela estava bem. Ela estava bem.
Depois passei o dia encarando ela pra ver se tinha algo errado. Não tinha. Graças a Deus. Mas a cada vez que ela batia palminha, eu ficava encarando desconfiada pra ver se não era espasmo, essa mãe louca.
Depois de algumas horas, finalmente a deixei tirar uma soneca – e tirei junto, bem colada nela, aquela coisinha linda de vermelho chupando dedinho. Depois, chorei muito, ali sozinha enquanto ela ainda dormia. Pela constatação de que agora tenho um ponto de fragilidade imenso. E que vai ser assim pra sempre. Claro que ela é minha força, mas ela é onde vai me doer mais. Não me diga que eu tenho que pensar pelo lado de que ela é minha maior alegria porque eu sei disso. Mas estou num momento “vou até o fim nesse sentimento, que é pra conhecê-lo bem”. Pedro, um amigo que já foi aluno, me lembrou de que vai ser assim pra sempre mesmo, no vestibular, na primeira paixonite dela, quando ela atrasar 3 horas pra chegar em casa, quando sair de carro, sempre. Isso sem contar nos infinitos tombos – reais, não metafóricos – que ela vai tomar ainda. Sei de tudo isso. Não sou alienada.
Mas esse sentimento de vulnerabilidade é algo com a qual tenho que aprender a lidar urgentemente. Sério mesmo. Não posso me sentir assim tão fragilizada, ela precisa de uma mãe forte. Ainda bem que hoje vou na terapia. Vou lá e vou chegar pedindo: daí pra mim, amiga, aquele comprimido que torna os filhos inquebráveis e insofríveis (criei essa) e as mães mais fortes que o homem de aço. Sei que ela vai me dar esses comprimidos e tudo vai ficar bem pra sempre, minha filha não vai sofrer nunca e eu serei sempre forte. Mas, no caso dela não querer me dar, vou pedir pra me ajudar a lidar com essa tristeza que eu tô sentindo agora.
Não é só pelo tombo.
É por tudo.