Você já foi cobrada pela vovó, pela cunhada, pela tia da creche ou pela senhorinha da rua sobre o desfralde de seu pequeno(a)? Parece existir uma convenção social que diz que o desfralde deve acontecer com dois anos, mas acompanhando a movimentação através dos grupos de apoio maternos, virtuais e presenciais, percebi que essa cobrança está chegando cada vez mais cedo. Estou falando de mães de bebê com 13, 15, 18, 19 meses sendo cobradas pela demora do desfralde. Mas como assim?!
Tudo bem, as fraldas estão cada vez mais caras e os nossos bebês parecem cada vez mais espertos e precoces. Mas eles continuam bebês… A velocidade com que seus corpos se desenvolvem é a mesma de há 30, 100, 2.000 anos atrás. Ouvimos coisas como “o filho da Fulana prima da minha vizinha desfraldou com 15 meses” e nos perguntamos: “Como foi que ela conseguiu? Será que há algo errado com meu filho? Será que ele é mais devagar?”
Você encontra muitos links na web sobre desfralde, com fórmulas mágicas que prometem torná-lo rápido. Algumas vezes, chegam a ser sugeridas abordagens nada gentis com a criança, imposição de horários, rotinas e o constrangimento de passar por períodos molhada de xixi, apenas para chegar ao desfralde logo.
Cuidado! O desfralde é uma fase delicada no desenvolvimento físico e psicossocial das crianças. Neste texto, você não vai encontrar nenhuma fórmula mágica. Pelo contrário: vamos refletir sobre o que significa o desfralde na vida da criança e como podemos ajudar nossos pequenos a adquirir essa competência tão importante.
É natural nos preocuparmos com o desenvolvimento de nossos pequenos, mas parece que estamos cobrando cada vez mais deles, acelerando e pulando fases naturais de desenvolvimento, não apenas fisiológico, mas também psicológico. Precisamos parar pra pensar: o que significa o desfralde na vida de nossos pequenos? Ele é apenas uma fase pontual por volta dos dois anos de idade? Sabemos mesmo reconhecer a hora certa do desfralde?
O controle esfincteriano constitui-se como um dos marcos do desenvolvimento infantil e um desafio para pais e crianças. É uma das maiores competências adquiridas na primeira infância, possibilitando que a criança ganhe maior autonomia, convívio social, autoestima e conhecimento do próprio corpo. Todas as crianças irão adquirir este controle, mas não deixa de ser uma grande preocupação para pais e causa de conflitos familiares. Gosto de pensar no desfralde como um processo que acontece em três dimensões:
1) Neurofisiológica
2) Comportamental
3) Psicossocial
Essas dimensões podem se desenvolver simultaneamente ou de maneira diferencial. Ao alcançar o adequado amadurecimento nessas três dimensões, a criança estará pronta para o desfralde. Nossa função como pais, mães, educadores ou cuidadores é apenas observar, acompanhar, avaliar e incentivar o desenvolvimento de cada criança. E ter sempre em mente: só a criança é quem pode nos mostrar quando é a hora adequada.
É importante deixar bem claro que o controle de esfíncteres não tem como ser ensinado. Ele é adquirido. É um processo de desenvolvimento da percepção interoceptiva (sentir o nosso interior) e ninguém pode nos dizer como fazer isso, apenas nossa própria experiência. Como explicar a um filho como é a sensação de fazer xixi? Como explicar o que é uma cólica? É algo muito difícil de se fazer, quase impossível. Nós só sabemos como é porque já o sentimos.
O desenvolvimento neurológico das nossas crianças acontece no sentido crânio-caudal, da cabeça aos pés, literalmente. Começa com o amadurecimento das habilidades sensoriais primarias (visão, audição) continua com o desenvolvimento dos movimentos das mãos, do dorso e das costas, até chegar às pernas. Simultaneamente, o desenvolvimento e função dos órgãos vitais vão sendo aprimorados: estomago, esfíncter pilórico, amadurecimento da função hepática, amadurecimento da função renal, tonicidade da bexiga, uretra e esfíncteres excretores. O controle dos esfíncteres é adquirido e não aprendido pelo simples fato de que se trata de uma habilidade que depende de amadurecimento neurofisológico. Entenda: não há nenhuma forma de acelerar esse processo. O máximo que podemos fazer é ajudar a criança a aperfeiçoar as habilidades que vão sendo adquiridas (seguir sons, segurar objetos, sentar, engatinhar, andar, correr, pular, etc).
Da mesma forma que a criança que apenas começou andar vai ser incapaz de pular em um pé e brincar amarelinha, a criança da qual retiramos a fralda sem ter alcançado amadurecimento neurológico dos esfíncteres vai ser incapaz de evitar os escapes de xixi, viverá inúmeros acidentes e, apesar de serem completamente involuntários, podem lhes deixar frustrada e constrangida, um sentimento que pode piorar muito dependendo da resposta dos cuidadores e adultos no convívio, acabando por afetar diretamente o seu relacionamento com o entorno e, o mais importante, afetando a sua autoimagem. Uma criança que tem escapes de xixi a cada 10 minutos provavelmente ainda não tem a função fisiológica dos rins completamente aprimorada nem a musculatura forte o suficiente para segurar o peso da bexiga enchendo. Já que o controle de esfíncteres envolve a musculatura pélvica, ela pode ser exercitada para chegar à sua melhor forma e funcionamento pleno, mas isso não irá acontecer se o desenvolvimento neurológico estiver incompleto. Então, se seu filho ou filha tem escapes de xixi frequentes, não conseegue ficar com a fralda seca nem por 10 minutos, trate de tirar seu cavalinho da chuva: definitivamente ainda não está na hora do desfralde! Aguarde mais um pouco, até que o amadurecimento neurofisiológico se complete. Você irá perceber que, em poucos meses, seu pequeno(a) chegará a ficar horas sem fazer xixi, fazendo xixis enormes a cada 1, 2, 3 horas. Aí sim você pode pensar que foi alcançado um amadurecimento mínimo.
O desfralde não pode ser visto como um evento pontual. Como quase toda habilidade nova para as crianças, ela leva um bom tempo a ser adquirida, não apenas o tempo de amadurecer seu sistema neurológico, mas o tempo de aprender as sequências de ações que compreendem o comportamento de “ir ao banheiro”. Não podemos esquecer que fazer nossas necessidades em um local específico e usando ações especificas é um comportamento relativamente recente em nossa historia evolutiva, então a criança precisa aprender esse comportamento de forma ativa, brincando, experimentando, observando e imitando. Nosso papel como educadores é justamente o de guiar esse aprendizado da sequência de pequenas ações que, juntas, constituem o comportamento de “fazer xixi no vaso” ou “fazer cocô no trono”. Abaixar a calça, tirar a roupa de baixo, sentar, fazer o xixi ou cocô, levantar, pegar papel higiênico, levantar a roupa de baixo, levantar a calça, dar descarga, abrir a torneira, lavar as mãos… Vendo cada uma como ações separadas conseguimos perceber a complexidade de “ir ao banheiro”. Para um adulto que repetiu o mesmo comportamento nos últimos 30 anos, várias vezes ao dia, pode parecer até fácil – e olha que, ainda assim, alguns adultos parecem ainda não entender corretamente essa sequência de ações, esquecem-se de levantar o assento, acionar a descarga e até de lavar as mãos…
Para nossa sorte, há um forte componente de aprendizado no convívio social, antes mesmo de sequer pensar na possibilidade de retirar a fralda. Aquele bebê que insistentemente acompanha a mãe ao banheiro, que não desgruda do pé do papai enquanto ele urina ou até mesmo quer entrar no banheiro junto com a visita, esta num processo ativo de aprendizado, observando ações, detectando padrões no comportamento, replicando-os em suas brincadeiras. Você já pegou seu filho experimentando ou brincando com o papel higiênico do lavabo? Já pegou o bebê amassando as próprias fezes? Faz parte do processo, mesmo que pareça chocante, e é importante agir com naturalidade. É muito importante aceitar que o processo de excreção é algo natural e não deve ser associado a comportamentos de aversão, nem ser tornado algo ruim ou nojento do qual a criança precise se sentir envergonhada. Tratar o tema com naturalidade, sem fazer dele o centro da vida da criança, é uma abordagem mais assertiva. É comum que o processo de aprendizagem se intensifique quando a criança se aproxima dessa fase, seja pelo próprio interesse ou pelo estimulo externo: querem ver, imitam sentando na privada (mesmo sem fazer nada), colocam seus amiguinhos no trono, limpam o cocô da boneca, do bichinho de pelúcia, etc. É uma fase bem divertida!
Não é raro que alguns textos sinalizem a aquisição de habilidades como correr, subir escadas sem apoio ou pular em um pé só como marcadores ou sinalizadores de que a criança PODE estar pronta para o desfralde, justamente porque esses comportamentos sinalizam a presença de um sistema neurológico com maiores chances de estar amadurecido. Porém, ter uma base neurológica madura e uma base comportamental bem treinada não são os únicos marcadores a ser observado para dar partida ao desfralde. Além de ter o aparelho pronto é preciso contar com a disposição para tal, ou seja, a criança querer.
Com o amadurecimento de estruturas e o processo de aprendizagem, a aquisição do controle de esfíncteres vem acompanhada por um processo de reconhecimento pessoal: a criança vai passar a reconhecer seu corpo e a se reconhecer como individuo DENTRO de um convívio social onde precisa seguir regras básicas. Muitas crianças associam as fraldas a ser bebê. Assim, para elas, deixar a fralda pode se tornar quase um rito de passagem entre ser bebê e se tornar criança. Nesse sentido, nós, como mães e pais, precisamos nos perguntar: qual é a imagem de criança que estamos construindo em nossos filhos? Queremos crianças seguras e autônomas? Ou queremos crianças que construam uma imagem de sofrimento associado a funções tão básicas? Quando ignoramos esses processos, a passagem das fraldas ao uso do penico ou do vaso sanitário parece se colocar para ela como uma imposição do outro e não como uma demanda do outro. Essa postura impositiva da mãe, do pai ou do cuidador (a imposição pode vir da escolinha, por exemplo), apressando o processo de aquisição da higiene, é apontada pela pediatria como um dos fatores que favorecem a retenção de urina e fezes, o que pode levar à infecção urinária de repetição e à constipação intestinal durante o processo, e pela psiquiatria como um dos fatores que pode desencadear distúrbios sociais como a enurese (incontinência parcial ou total da urina em idades avançadas) ou encopresse (defecações e/ou evacuações realizadas em lugares impróprios, de forma voluntária ou não).
Considerando que o desfralde também é um processo de auto reconhecimento, ele é um processo individual, pertence à intimidade do lar, e apenas as pessoas do convívio constante da criança podem intervir. A forma como ele é abordado pode influenciar a autoimagem e a autoestima de nossos pequenos. O constrangimento causado pelo desfralde precoce e uso de métodos como deixar sujo por longo tempo, reprender, deixar de castigo, deixar sem prêmio, receber cobranças familiares, ouvir conversas com comparações com outras crianças (mesmo irmãos), ter exposta sua intimidade (fotografando-a no trono ou contando sobre os acidentes para terceiros), não ajuda em nada, pelo contrário: pode atrapalhar bastante o processo de autoreconhecimento e o próprio desfralde, causando sofrimento intenso.
Não há um consenso cientifico sobre a melhor idade para acontecer o desfralde. Em geral, sugere-se observar na criança o amadurecimento físico e mental para avançar nesse processo. Também não há consenso sobre a forma como deve ser conduzido o treinamento ao toalete. Contrariamente ao observado nas redes sociais, a tendência entre os pediatras e urologistas pediátricos é adiar a retirada das fraldas além dos dois anos. Cada processo é único, mediado pelo contexto familiar, o convívio social e o desenvolvimento físico único de cada criança. Depende inclusive da forma como os adultos que convivem com a criança lidam com sua própria evacuação. Não adianta correr ou apressar o processo. Em se tratando de desfralde podemos dizer que da pressa não sobra mais que cansaço e várias frustrações. Focando no bem estar da criança, sem pressa, alimentando sua autoimagem de maneira positiva, atendendo seus sinais de amadurecimento, não tem como errar. Esqueça as receitas, dance conforme o ritmo de sua criança!
Em resumo, o desfralde é um processo tridimensional: primeiro, guiado pelo amadurecimento neurofisiológico do organismo, onde se alcança a percepção interoceptiva que irá permitir o controle voluntário da musculatura que controla o processo; segundo, marcado pelo treinamento comportamental que começa ser adquirido no convívio social e no ensino ativo das sequências de ações; e, terceiro, mediado pela elaboração da autoimagem, construção da autoestima e do reconhecimento que a criança faz de si mesma como individuo dentro de um sistema de social.
Para finalizar algumas dicas práticas que vão lhe facilitar o processo de desfralde:
– Trate as trocas de fralda com naturalidade desde sempre.
– Incentive que seu filho realize atividades físicas regularmente, em todas as suas fases de desenvolvimento motor, desde a fase sentar até a de pular e correr.
– Realize uma introdução alimentar gradual, observando a reação do organismo de seu filho aos alimentos novos. Quais prendem seu intestino? Quais soltam? Quais as mudanças conforme amadurece?
– Tenha uma rotina alimentar mais ou menos consistente e observe o ritmo de seu pequeno, acompanhe as mudanças no ritmo. Quanto tempo depois de comer ou beber ele evacua? Sabendo o ritmo da criança fica mais fácil ajudá-lo a se lembrar de ir ao banheiro na hora certa.
– Permita que seu bebê a acompanhe ao banheiro. Quando intensificar o aprendizado, você pode ir narrando o que está fazendo: abaixando a calça, fazendo xixi….
– Não interprete arrancar a fralda do corpo como sinal de desfralde. Esse é apenas um comportamento exploratório. Melhor incentivar brincadeiras para que a criança conheça seu próprio corpo.
– Proteja a autoestima e a autoimagem da criança, não exponha sua intimidade, proteja-a dos comentários de terceiros e nunca a repreenda por não ter conseguido segurar em algum momento. Ela é só uma criança e precisa de você.
– Trabalhe a comunicação e empatia desde cedo.
– Garanta que seu filho(a) se sinta seguro e acolhido, mesmo quando acidentes acontecerem.
– Conheça e respeite o temperamento de seu filho. Atenda os pequenos pedidos de autonomia. Quando não for possível, explique as razões.
– Combine com a escolinha ou outros cuidadores a abordagem que será usada no desfralde.
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