“Ô idadezinha difícil essa” – Frequentemente, paro para refletir sobre essa expressão e todo o significado que ela traz. Ela é geralmente dita quando contamos que temos uma criança de 2 anos (mas também em todas as outras). A frase é dita pelas pessoas no automatismo: “Ô idadezinha difícil…”, referindo-se a elas, as crianças. Ouço isso como mãe desde que minha filha completou 2 anos, uma fase que as pessoas insistem em chamar de “terrible two” – e da qual discordo veementemente. Assim como discordo dessa tendência a tacharmos qualquer fase infantil como “a idade de tal coisa”, ou “idadezinha difícil”.

Então vim trazer uma outra perspectiva pra você.

Sim, as crianças passam por diversas fases de desenvolvimento e se transformam inúmeras vezes até que deixem de ser crianças. Mas você já parou pra pensar sobre si mesma? Já parou para olhar para si? Então responda: quantas vezes você já mudou e se transformou na vida? Vamos nos limitar à sua experiência enquanto mãe. Quantas vezes você mudou desde que se soube grávida? Muitas, diversas, muito provavelmente. De pensamentos, valores, reflexões, práticas. E toda essa transformação não ocorre de maneira leve ou sutil. É intensa, é forte, muitas vezes desestabiliza. E se com você, mulher adulta, dotada de ferramentas para se comunicar com relativa precisão, é assim, imagine com uma criança que se transforma enormemente sem nem saber direito o que tá acontecendo ou o que veio fazer aqui…

Então, muitas vezes, isso que se chama de “terrible two”, ou até mesmo de “ô idadezinha difícil” também pode ser uma grande transformação não acolhida, não compreendida, invisibilizada. Mas o fato é que eu continuo a não ter as crianças como foco nesta temática e, sim, as mães. Não apenas porque sou uma, mas especialmente porque são essas mulheres e suas vidas que mais me interessam – especialmente porque continuam invisíveis.

Pois bem.

Via de regra, como está uma mulher que tem uma criança de 2 anos? Talvez tenhamos aí uma moça cansada, que provavelmente dormindo muito pouco há 2 anos, talvez enfrentando dificuldades no relacionamento, por estar em transformação, que não está se vendo como antes no espelho – real e metaforicamente falando -, que ainda está tentando caber na roupa social que lhe impuseram ou que já entendeu que esta roupa não precisa servir – e aí é outra dor essa coisa de não saber o que vestir agora. Isso isolando todo o contexto e deixando só a mãe e a criança de 2 anos. Agora junte tudo: a crise social e política, uma família que adora criticar mas não apoia devidamente, sobrecarga materna por omissão paterna, e mais sono, e dificuldade trabalhista, e mais cansaço, e a criança mostrando toda a sua potência transformadora, e as roupas pra lavar. Tem uma moça cansada aí. Que por mais que esteja apaixonada pela criança em seus braços, não deixa de estar cansada – afinal de contas, amor nunca descansou ninguém, pelo contrário, amor também é demanda.

Então aquele ápice de desenvolvimento que a criança está apresentando acontece justamente com uma mãe assim. “Idadezinha difícil”? “Terrible two”? Talvez não. Talvez falta de acolhimento às necessidades dessa cuidadora, talvez falta de cuidado a quem cuida. Afinal, ninguém consegue achar linda a explosão comportamental quando se está a ponto de explodir também.

Mas o mais curioso é que isso não para. O tal do “terrible two” avança no tempo e a mesma lógica se apresenta em outras idades.

Aos 8, por exemplo (e eu nem falei da adolescência ainda…). Essa idadezinha em que a criança argumenta, justifica, embasa sua defesa, junta convicção, powerpoint e, se é pega na contradição, diz que os áudios não eram dela. E faz isso 24 horas por dia. Da escolha do almoço ao horário de dormir. E argumenta. E dialoga. E exerce toda a sua autonomia enquanto ser em formação e não em opressão. Claro que um “cala a boca que quem fala por último aqui sou eu” interrompe esse processo. Mas não apenas esse processo, interrompe todo o exercício democrático, autônomo e de ser alguém relevante no mundo, digno de escuta, empatia e diálogo. Então, sim, a argumentação, a contra-argumentação, as justificativas baseadas em evidências, contra-evidências e tudo o mais que você pode imaginar existir para uma criança criada de maneira crítica e a quem sempre foram dadas informações precisas existem até dizer chega. E bem no momento em que a mãe está mais cansada…

Quem está muito cansado não se propõe ao diálogo. Não quer ouvir. Quer dormir, quer descansar. Faz barganha. Permite coisa que jamais permitiu. Fica à beira do autoritarismo. Quem está muito cansado quer as coisas exatamente do seu jeito pra evitar ainda mais trabalho e não se cansar mais. Fica irritadiço, impaciente, com os limites curtos demais, com baixíssima tolerância ao barulho, à bagunça, à frustração. E – vou te contar uma novidade – pensa numa atividadezinha propensa à frustração que é essa chamada maternidade… Junta tudo isso a uma criança questionadora ou em fase de alto desenvolvimento cognitivo e temos aí uma receita bem perigosinha.

Então quer dizer que não se trata de culpar a mãe, que tá cansada? Exatamente isso! Trata-se de se perguntar:

“E eu? O que estou fazendo para que ela não se sinta assim?”.

Não adianta dar a volta no mesmo pé e pegar o caminho por onde veio porque a pergunta é para você sim, que convive diariamente com mulheres que cuidam de crianças. É com você mesmo a conversa, com você que gosta de dizer “Ô idadezinha difícil”. Qual a sua responsabilidade na desordem da qual se queixa? E essa frase nem é minha…

Eu estive neste final de semana em um evento onde se reuniram dezenas de pessoas falando sobre desigualdades, opressões, burguesia e tal e coisa. Onde se pretendeu discutir as múltiplas questões sociais do nosso atual processo político. Era de se supor que lá estivesse gente que se considera muito progressista, muito desconstruidona. Eu estava com minha filha e outras crianças por perto. E então flagrei duas moças olhando para as crianças – que sim, fazem barulho. Se o seu cachorro, que não fala, faz barulho, imagina uma criança, que dialoga?! – com jeito de desdém e uma delas disse: “Ai, tinha que trazer criança?”. Mas acontece que ela não viu que eu a estava vendo. Na mesma hora, dei dois passos à frente, bloqueando a visão dela para as crianças e obrigando-a a olhar nos meus olhos, olhos que não estavam nem um pouco felizes e onde não havia nenhum pingo de empatia. Ela me olhou e na hora entendeu. E ali eu fiquei, obrigando-a a conviver com a minha presença – e a das crianças.  Vai conviver com as crianças sim, moça, com as crianças e com a mãe de uma delas bastante zangada te constrangendo com o olhar. 

Mas, ainda assim, ainda negando sua falta de solidariedade, responsabilidade social coletiva, conhecimento mínimo de humanidade, conhecimento mínimo de infância, as pessoas seguem por aí demonizando idades – “ô idadezinha difícil” – e negando o cansaço materno, que vem sobretudo de sermos relegadas a um plano que sequer existe.

É por isso que quando alguém comenta que minha filha de 8 anos é questionadora demais, eu acho bom. É por isso que quando eu a vejo dando respostas desconcertantes a adultos sem noção, eu acho é ótimo. É por isso que quando eu mesma me pego achando que ela, com quase 9 anos, vai me deixar louca com a argumentação altamente embasada com que muitas vezes me confronta, quando eu acho que vou estourar e não vou mais aguentar, sabe o que eu faço?

Eu descanso. Eu tiro um tempo pra mim. Sim, com frequência eu me enrolo toda depois e avanço madrugadas pra trabalhar. Mas naquela hora, eu descanso. Porque eu já sei que ou fazemos isso ou não teremos força suficiente para confrontar quem se esforça pra nos manter na invisibilidade – com as crianças junto.

Portanto, minhas queridas, quando estiverem achando que aquela idadezinha das crianças tá mais difícil do que nunca, lembre-se: vá descansar.

Não existe não violência quando estamos completamente esgotadas.

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.