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E lá se foi o dia dos pais.
Uma data comemorativa que é relativamente recente no país, sendo celebrada apenas desde o início da década de 50, quando algumas instituições da imprensa promoveram um concurso para prestar homenagem a três tipos de pais: o pai com mais filhos, o pai mais velho e o pai mais jovem. Sim, foi assim que surgiu o dia dos pais no Brasil.
Pode ser que o que vem a seguir soe a você como uma espécie de “mau humor”. Não é.
O fato é que ainda estamos muito longe de comemorar o cuidado paterno. Simplesmente porque o que estamos comemorando, ainda, é a paternidade.
E paternidade não deveria ser comemorada. Não mesmo.
E vou explicar porque é que penso isso.

Abri a página do meu perfil no Facebook nesse dia dos pais e foi inevitável o sentimento de ternura: tantas fotos lindas, tantas crianças nos colos de seus pais, tantos abraços amorosos, fotos atuais e antigas, tanta gente declarando seu amor, amor forte e genuíno, por aquele que teve ou tem um importante papel na sua vida. Lá estava, também, a foto que publiquei do pai da minha filha, com ela no colo, ainda bebezinha, sentada em cima de sua agenda de compromissos, em mais um dia de trabalho dentro de casa, com os dizeres: “Feliz dia a quem escolheu ser. Que veio para casa e aqui ficou para criar a caçula. Que há três anos divide seus desenhos com os desenhos dela e a tem, literalmente, na agenda todos os dias“. Foi uma delícia ver todas aquelas manifestações de amor e bem querer.
Mas, junto com esse bom sentimento, também senti algo bastante incômodo…

Tenho a grande alegria de conviver com homens que são grandes pais, homarada ativa, envolvida, participante. Tanto quanto o são as mães de seus filhos. São famílias que estão se reorganizando estruturalmente e em cuja dinâmica de vida não há mais papéis sociais estabelecidos como havia, como conhecemos durante tanto tempo. Não há a mãe “eu te lembro chinelo na mão e avental todo sujo de ovo” e o pai que chega sempre cansado do trabalho, não tem tempo para os filhos mas os leva ao shopping no fim de semana e acha que está sendo pai. Não, não há. Felizmente, esse não é o grupo com o qual convivo. Convivo com pessoas que demonstram envolvimento indiferenciado do homem e da mulher na criação dos filhos, ou que, por perceberem que ali não havia um cuidador mas, sim, um ajudante (e olhe lá…), libertaram-se disso e buscaram outra coisa para si e suas crianças.
Essas pessoas não estão comemorando a ajuda que os homens prestam na criação dos filhos, porque já sabem que ser pai não é ajudar.
É cuidar.
É ser parte de uma família. É ser sujeito ativo do grupo em que se insere. Ativo. Participante. Em uma dinâmica onde não há papéis principais mas, sim, participações conjuntas. Sem protagonistas. Sem coadjuvantes. Que é o que se busca com o empoderamento coletivo: um lugar onde todos assumam seus papeis enquanto indivíduos plenos, sem que seu protagonismo represente a opressão do outro.

Mas acontece que esse mundo que vejo estampado no mural de uma rede social é um recorte muito particular. Muito infelizmente, minha timeline e os pais amigos ao meu redor não representam uma realidade única e homogênea. Representam uma versão dela. Uma dentre várias. Dentre várias outras que mostram uma paternidade incompleta, vazia, machista, egoísta e que reflete, de certa forma, o que a sociedade pensa sobre o papel de cada um, homem e mulher, enquanto responsáveis por uma criança. E que, muitas vezes, é aceita pelas próprias mulheres, por diferentes motivos, conscientes ou não. Mulheres que estão felizes por terem companheiros que ajudam.

Não comemoro a paternidade que ajuda.
Eu comemoro a paternidade do cuidado. Os pais que cuidam – tanto quanto comemoro as mães que assim também o fazem.
E comemoro não apenas por esses indivíduos mas, principalmente, pelo ser humano que está usufruindo desse cuidado: a filha, o filho, as crianças.

Ajuda a gente pede para o eletricista, a diarista, o advogado, o professor, cuja contribuição é remunerada. Cuidado com o filho não é ajuda. Ajuda não é cuidado. Ajudar é prestar um favor. E quem está “fazendo o favor” de prestar assistência não está, fundamentalmente, cuidando. A paternidade – como a maternidade – não pode ser vivida na base do “ajudar = prestar favor”. Não comemoro a paternidade que ajuda a trocar fralda, ajuda a dar banho, ajuda a cuidar da casa em que ele próprio vive, ajuda a educar as crianças.
Eu comemoro a paternidade do cuidado. O pai cuidador.

Não comemoro o pai do sistema patriarcal, que age com base no mando e na submissão (física ou mental, manifesta ou disfarçada) sobre a mulher e os filhos.
Não comemoro o pai autoritário que se baseia na autoridade que pensa ter enquanto homem, macho, cabrón, da família.
Não comemoro o pai de ocasião, aquele que se intitula pai somente porque seu espermatozoide esteve envolvido na fecundação de um óvulo, registrou o filho e nada mais.
Não comemoro o pai que usa a criança para chantagear/manipular/controlar a mulher.
Não comemoro o pai que não se envolve na aprendizagem inerente à gestação, que não quer aprender sobre, que acha que gravidez é coisa de mulher.
Não comemoro o homem que soube que terá um filho e diz que nada tem a ver com isso – a esse nem chamo pai.
Não comemoro o pai que, após a separação conjugal, se mantém à parte dos filhos, como se deles também pudesse se separar.
Não comemoro o pai violento.
Não comemoro o pai de fim de semana, que recebe das mãos da mulher os filhos trocados, vestidos, cheirosos e sequer sabe como se alimentam.
Não comemoro o pai que acha que pode se despir da paternidade, como se um filho fosse algo do qual se pode abrir mão, no pior estilo “Ah, não gostei, não quero mais…“.
Não comemoro o pai que não aprova a amamentação, porque ele não está em situação de aprovar nada, já que o corpo não é dele.
Não comemoro o pai que não se informa sobre parto, sobre alimentação infantil, sobre educação.
Não comemoro o pai que rejeita afeto, que não dá colo, que não demonstra amor.

O que eu comemoro não é a paternidade.

É a paternagem.

Paternidade é algo do domínio do biológico e pode acontecer com qualquer um, até com os
invertebrados, que não pensam (amo os invertebrados, nada contra eles, não os quis ofender).
Paternagem é algo do domínio do afeto. Da escolha. Da ética. Da humanidade. Da reflexão. Da presença. Do envolvimento emocional. Do sentir aquele ser que se escolheu criar como parte de si. Do querer que ele cresça e se desenvolva pleno, saudável, íntegro, justo.

A paternidade significa um homem que se tornou pai biológico de alguém.
A paternagem significa um homem que se tornou fundamental para alguém.

A paternidade pode simplesmente acontecer: por não planejamento reprodutivo, por absoluto descuido, por achar que o controle reprodutivo é função exclusiva da mulher (e recomendo a leitura do texto “Toma, que a responsabilidade também é tua“, da Dani Brito, que fala muito bem sobre como o papel ideológico do gênero interfere na concepção que temos da paternidade).

A paternagem não acontece por descuido ou acaso: ela é fruto do envolvimento ativo na busca por ser pai. Pela aceitação da mudança que a chegada de um filho representa na vida do homem. Pela busca de um novo papel masculino. Pela participação ativa na gestação, no parto, na amamentação, na alimentação, na constituição emocional da criança, na busca por um novo caminho de vida.

Então, dessa vez, dispo-me do papel romântico tradicionalmente atribuído ao dia dos pais para falar dele de maneira mais realista e perguntar: o que nós temos visto por aí é paternidade ou paternagem? Se a resposta for a primeira, não será o caso de mudarmos um pouco o tom complacente, de quase agradecimento, que vemos tantas vezes nos textos sobre pais e substituí-los por reconhecimento da paternagem e evidenciação da paternidade?
Não será o caso de não cairmos no comportamento ingênuo, até mesmo simplório, de agradecermos ao pais de nosso@s filh@s pelos bons pais que eles/elas têm?
Também não seria o caso de pararmos de achar que o que fazemos enquanto mulheres buscando a maternagem e a paternagem seja algum tipo de cobrança? Reconhecer e valorizar a paternagem em detrimento da mera paternidade não é, nem de longe, cobrança. Pensar que é nos coloca, novamente, enquanto mulheres, no papel de quem está buscando ajuda. E já não deu para entender a diferença entre ajudar e cuidar? Deu, né?

Da mesma forma que as mães que estão buscando ir da maternidade em direção à maternagem encontram espaços que as apoiam e acolhem, também é importante que os homens que estão fazendo o mesmo caminho encontrem apoio e acolhimento. E, porque o mundo ainda é muito machista inclusive para os homens (quem acha que o machismo faz apenas mulheres como vítimas está muito enganado…), encontrar esses espaços de apoio à paternagem ainda é difícil. Quando há, é importante evidenciá-los. É o que alguns grupos virtuais de maternagem estão fazendo quando acolhem e estimulam a chegada dos pais. E é o que algumas (ainda poucas) iniciativas organizadas também estão fazendo. Assim, para finalizar, quero convidar você a conhecer aquela que considero hoje a mais linda iniciativa de empoderamento masculino e estímulo à paternagem no Brasil. Um trabalho que admiro muitíssimo e que vejo como fundamental, algo a ser reproduzido em todas as regiões brasileiras. É o INSTITUTO PAPAI. Na apresentação do site, você encontra o seguinte trecho: “O Instituto PAPAI é uma ONG que atua com base em princípios feministas e defende a ideia de que uma sociedade justa é aquela em que homens e mulheres têm os mesmos direitos. Assim, consideramos fundamental o envolvimento dos homens nas questões relativas à sexualidade e à reprodução e uma ressignificação simbólica profunda sobre o masculino e as masculinidades em nossas práticas cotidianas, institucionais e culturais mais amplas“. E nesse momento, o Instituto está promovendo a Campanha de Paternidade, Desejo, Direto e Compromisso, que tem como objetivo promover a reflexão crítica e política sobre o exercício da paternidade, no campo dos direitos reprodutivos, muito além do estímulo ao consumo. Eu recomendo: conheça o site, leia o material que eles disponibilizam. Inspire-se! Reflita!

Ao fim desse dia dos pais, portanto, só tenho a dizer: feliz de você, pai que já se tocou disso.
Feliz de você, pai que cuida de suas crianças.
Feliz de você, que teve a chance de ajudar, mas preferiu cuidar.
Feliz de você, que teve a chance de ser pai mas preferiu ir além.
Preferiu cuidar de gente.

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