Toda mãe de menino já parou para pensar, pelo menos uma vez, sobre a existência ou não de machismo na criação que damos aos pequenos. Acompanhando os casos que se tornam públicos sobre violência contra mulheres, tememos a possibilidade futura de nossos filhos serem agressores. Se isso não é tão preocupante quanto as inseguranças que as mães de meninas enfrentam sobre os riscos de elas serem violentadas, tampouco é um lugar confortável. Exercer a maternidade crítica e dar passos na direção da educação de nossos filhos para um futuro de paz envolve reflexões sobre o processo de socialização, sobre o aprendizado por imitação e sobre nossos valores e crenças. Apesar de toda vigilância é preciso ter a compreensão de que nós não controlamos completamente as influências que chegam até eles e, portanto, precisamos ajudá-los desde pequenos a ter uma postura crítica sobre as informações e comportamentos que chegam até eles.

A socialização é um processo de assimilação das regras do mundo. As crianças nascem com alguns poucos comportamentos inatos e, através da observação e experimentação, vão compreendendo o mundo em que vivem. Em um primeiro momento, os pequenos aprendem por imitação, com seus familiares, no que devem acreditar e como devem agir. Eles não têm repertório sobre o que é geral ou particular, nem sobre o que é certo ou errado. Eles buscam padrões sobre tudo, criam hipóteses e generalizam, assumindo que as coisas são como veem. Desta época, lembro meus filhos, com 2 ou 3 anos, pedindo para beber água com gás. Um dia perguntei a eles a razão de fazerem esta escolha e a resposta era óbvia, na lógica deles: “Meninas bebem água sem gás e meninos tomam água com gás!”. O homem com quem eles conviviam quase exclusivamente era o pai, que priorizava a água com gás. As demais pessoas que eles conheciam eram mulheres e bebiam água sem gás. Daí eles desenvolveram a hipótese: o tipo da água funciona de acordo com o sexo, como a cor da roupa, a preferência do brinquedo e o banheiro que usam. Em alguns casos, o comportamento chama a atenção e temos a oportunidade de conversar sobre as razões das escolhas (água, brinquedos, cores das roupas). Mas, assim como nestas situações, certamente eles assumiram muitas outras certezas irreais que me escaparam. Provavelmente ao observar o meu comportamento e o do pai deles, eles tenham generalizado outras questões como femininas ou masculinas quando eram, apenas, características ou preferências de um ou outro!

Neste processo de socialização primária, então, o maior risco somos nós mesmas e as pessoas mais próximas. Quanto de machismo há em nós? Se a sociedade é machista, é improvável que sejamos pessoas totalmente isentas de tais ideias. Nós somos a sociedade também. E aí começa o pente fino que precisamos passar em nossas crenças, ações, ideias, expressões, reações. Você acredita em ideias como “Prendam suas cabras que meu bode está solto”? Qual sua reação genuína ao ver um menino usar saias ou cor-de-rosa? Brincar de bonecas é um problema? O quanto há de homofobia em você? Como você se sentiria ao ter um filho com comportamentos entendidos como pouco masculinos? Será que você se sentiria fracassada ou envergonhada? Além do que está dentro de você, precisamos avaliar também o que está acessível aos olhos e ouvidos das crianças. Quais são os modelos masculinos que este menino tem por perto? Quais são os modelos de relação homem e mulher que o menino acompanha? O que é dito e visto sobre o que é ser homem, o que é ser mulher e o quanto estes modelos são rígidos e fluidos? Observar as crianças com olhos de ver e conversar muito sobre como entendem o mundo é, além de uma atividade linda e divertida, uma chance muito interessante de resolver mal-entendidos.

Quando a criança cresce mais um pouco e o contato social aumenta, começa a socialização secundária. Neste momento, eles passam a tomar contato com realidades diferentes através de amigos, no clube, escola ou outros espaços. A televisão, internet, jornais e revistas também entram nesta equação, trazendo às crianças e jovens referências muitas vezes distantes da experiência familiar, para a qual eles devem ter recursos para discernir sobre o que vai chegando. Nesta época chegam os desejos de serem parecidos com alguém, ter os mesmos brinquedos ou roupas. Passam a agir e falar de maneira diferente, trazendo para casa referências que nem sempre compreendemos ou concordamos. E agora, como lidar?

Uma das questões prioritárias, para mim, é não matar o mensageiro. Ou seja, não brigue com seu filho por ele ter repetido um comportamento aprendido no mundo e inadequado! Ele, certamente, não conseguiu compreender que isso não era aceitável na família de vocês e sua tarefa vai ser ensiná-lo. Mas, acima de tudo, mantenha o canal de comunicação entre vocês aberto. Recentemente, na sala de aula de um dos meus filhos, as crianças resolveram criar um grupo no whatsapp. Eles tinham 9 anos e, praticamente todos, acesso a algum celular. Em um determinado momento, um grupo de meninos passou a fazer comentários e brincadeiras bastante chulas, o que gerou reação de uma mãe e a proibição, por parte da escola, de que aquele grupo virtual continuasse. O que foi dito ali era sim problemático mas, ao oferecer como solução a exclusão daquele espaço, tudo o que fizemos foi “tirar o sofá da sala”. Não houve uma discussão coletiva sobre a questão e as crianças, suponho, continuaram usando os termos inadequados entre elas, presencialmente. Então, acima de tudo, precisamos ouvir e conversar. Conversar, dialogar, é compartilhar ideias. Não é convencer, impor, vencer intelectualmente. É expor sua linha de pensamento sobre um assunto e ouvir qual a linha de pensamento da outra pessoa. Apenas. E cada um tome suas conclusões. Tenha paciência: este processo acontecerá infinitas vezes, muitas vezes sobre os mesmos assuntos. É assim mesmo. Eles estão ouvindo, acredite! O que não quer dizer que eles tenham concordado.

Outra questão é reforçar a importância de selecionar o que colocamos “para dentro”. O discurso aqui em casa é: tão importante quanto o que colocamos no estômago é o que colocamos no coração e na cabeça. Assisto aos desenhos, canais do Youtube e filmes com eles sempre que possível e vou comentando, criticamente, o que o mundo vai apresentando. Se considero algum conteúdo muito ruim, explico as razões pelas quais penso assim e peço que eles considerem deixar de assistir aquilo, pois não fará bem ao seu coração (sentimentos) ou cabeça (referências, modelos e ideias). Esse modo de agir tem trazido bons frutos a ponto deles dizerem, espontaneamente, que começaram a assistir alguma coisa, descobriram ser ruim e eles mesmos terem decidido parar. Mas, para isso, é preciso que a gente vá alimentando, por muitos ANOS, as crianças com referências do que achamos bom e do que achamos ruim. Esta mesma ideia também pode ser aplicada a amizades ruins. Eu acredito firmemente que somos a média das pessoas com quem convivemos. Nós nos tornamos parecidas e adquirimos hábitos das pessoas com quem compartilhamos nosso cotidiano. E quando eles contam sobre amigos com comportamentos ou discursos reprováveis, eu os aconselho a se afastar de tais pessoas para que não se tornem semelhantes.

Estes pontos que apresentei são algumas estratégias que uso para guiá-los nesta fase de socialização secundária. Meu objetivo, neste instante, é ser a mentora, cada dia a mais passos de distância, orientando-os sobre os caminhos seguros neste mundo incerto visando a autonomia plena e responsável.

E NA PRÁTICA, QUAIS FORAM OS DESAFIOS MACHISTAS QUE ENFRENTEI?

1. Namoradinha?

Ele era muito novinho, tinha uns cinco anos, talvez. Gostou de uma menininha, achou ela legal e beijou na boca! Certamente era algo muito inocente, mas, ao mesmo tempo, não acredito que ele teria aquela reação com um amiguinho. Era a socialização agindo ali, ele repetindo comportamentos vistos pelo mundo, de homens e mulheres se beijarem. Naquele dia dei um olhar fulminante e uma bronca muito, muito, muito séria. Deixei claro que o comportamento era inaceitável, que ele era muito novo para estas ideias e, acima de tudo, dar um beijo só é legal quando as duas partes querem e autorizam. Acho mesmo que foi muita informação para ele e que minha reação foi até exagerada naquela situação, mas ele não teve dúvida sobre o quão reprovável é “avançar o sinal” com uma mulher e o quanto ele ainda precisa entender sobre este jogo antes de pensar em beijar como namorado novamente. A conversa sobre a importância do consentimento pode começar bem cedo, não é? Em vez de incentivarmos nossos filhos a conseguirem namoradinhas aos 2, 3, 5, ou 8 anos, acredito que devemos bater na tecla da responsabilidade na relação, no cuidado com o outro, no respeito acima de tudo. Não dá para eles pegarem na mão de ninguém sem terem compreendido muito bem o que uma relação afetiva significa. Se eles ainda não têm condições de compreender, estão muitos, muitos anos longe de terem condições de ter uma “namoradinha”.

2. “Seu viado!”

São dois meninos. “Viado” era o tratamento básico entre eles com conotação pejorativa. Quando tudo isso começou, a primeira coisa foi esclarecer o que é viado e, em seguida, explicar que ser viado não é vergonha, muito menos xingamento. Expliquei (na verdade repeti muitas e muitas vezes) o quanto isso era violento, tanto para a pessoa que era exposta quanto, acima de tudo, às pessoas que eram de fato homossexuais. Não foi fácil, não foi. Mas, hoje em dia, a resposta a um xingamento de “viado” que ainda escape por parte de alguém é sempre uns ombrinhos desdenhosos acompanhados pelo comentário “Ser viado não é ofensa”. Poooonto para os meninos!

3. Hábito doméstico

Neste aspecto, eu sofro. Como é difícil mudar hábitos! Desde que eles aprenderam a andar, sempre dei pacotes de compras para que carregassem na volta do mercado e, chegando em casa, precisavam ajudar a guardar tudo. Nem que fosse um pacote de palha de aço, ninguém andava de mãos abanando enquanto a mamãe estava carregada. O mesmo com as mochilas e quaisquer pertences deles. Eu sempre avisei: “Não levem mais do que podem ou querem carregar. Eu não vou segurar nada que vocês levarem”. E de fato não segurava. Hoje, estes assuntos não são problema. Na volta do mercado eles carregam sacolas pesadas, não é preciso nem pedir, e ajudam a guardar tudo quando chegam. A compreensão de que há uma responsabilidade coletiva é inegável.

E em todo o resto? Em todo o resto é o caos. Eu me policio bastante para incorporar neles a ideia de que a casa é nossa e a manutenção dela também, mas, compreensivelmente, eles resistem a abrir mão do tempo livre para colaborar na limpeza. Já lavaram banheiros, passaram aspirador, lavaram louças e fizeram muitas outras tarefas, mas nenhuma ficou entendida como uma tarefa deles (ainda!). É sempre uma ajuda para a mamãe. Buá! Minha nova estratégia é pedir para que cada um lave seus pratos e talheres após as refeições. Uma meta modesta, mas talvez possível. Vamos ver se isso vira um hábito!

De toda forma, o discurso diário permanece:

“A casa é nossa e a responsabilidade dela também. Vocês se habituaram comigo limpando a casa e servindo vocês, mas vocês esquecem que eram pequenos e incapazes de fazer estas coisas. Isso não significa que eu sou a única com esta responsabilidade, eu apenas os ajudei enquanto vocês precisaram e hoje não precisam mais.Também gosto de me divertir e descansar. Se cada um assumir um pedaço, todos podemos ser mais felizes”.

Espero que um dia as coisas fiquem mais equilibradas neste quesito.

4. Coisas de meninos e meninas

Neste aspecto, procuro ser equilibrada. Uma questão é deixá-los livres e confortáveis para serem, gostarem e usarem tudo, sem estereótipos de gênero. Outra questão é respeitar os gostos pessoais (ainda que socialmente construídos) e a vontade de pertencer ao grupo. Eventualmente, eles desistem de alguma roupa, cor, brincadeira, filme ou brinquedo por serem “de meninas”. Nestes casos, eu apenas exponho minha opinião e não me alongo na conversa. Aceitar que eles queiram se adequar ao sistema, desde que isso não prejudique ninguém, é algo que a mãe “descontruidona” precisa aprender. Por outro lado fico muito atenta a julgamentos de outros meninos por comportamentos que sejam entendidos como mais femininos. Nesta hora, precisamos sim entrar em ação e conversar que a diversidade é importante e que o respeito às escolhas alheias é imprescindível. O respeito ao próximo talvez seja uma das poucas coisas não negociáveis na nossa casa.

5. Internet e pornografia

Uma das questões que mais me preocupam é a socialização sexual dos nossos meninos. A pornografia é um canal facilmente acessado através da internet e bastante nociva. O que se encontra hoje nos portais é um sexo violento, misógino e nada, nada próximo do que seria razoável para um jovem e uma jovem que estejam começando sua vida sexual. Embora o fetiche e as parafilias possam fazer parte da vida de muitos adultos, não devem ser apresentadas às pessoas que estão aprendendo sobre o assunto como algo corriqueiro e esperado. E, neste aspecto, há pouco a fazer: mais dia ou menos dia eles encontrarão estes conteúdos e é preciso que tenham critérios para avaliar aquilo. Por esta razão, aqui em casa, de tempos em tempos, adianto o assunto de que há muito sexo na internet, mas que aquilo é muito distante do que as pessoas fazem, do que as pessoas que se querem bem fazem. Aviso que o que encontrarão é, na maior parte dos casos, violência e que eles cuidem do que alimentam seus corações e mentes, evitando tal contato.

Oferecer boas referências é responsabilidade de todos.

Por fim, vale pensar que os estereótipos de gênero são máscaras que a sociedade nos obriga a usar desde a tenra idade, forçando-nos a nos comportar de determinadas maneiras em razão do genital que temos. Permitir que as crianças se expressem com liberdade e sem restrições ou imposições relativas ao comportamento esperado do homem ou da mulher, vai permitir que eles cheguem mais próximos deles mesmos e que existam em todo seu potencial. Uma educação sem machismo passa pela discussão da masculinidade, o que é ser homem hoje e o que seria um bom homem para uma sociedade de paz. Neste sentido recomendo muito o filme “The mask you live in”, disponível no Netflix. Chame sua família, proponha rodas de conversas entre os pais dos amiguinhos das suas crianças, na escola, por onde houver crianças. Nossos meninos merecem a chance de serem criados com boas referências para uma vida livre, equilibrada, respeitosa e saudável. Cuide, tanto quanto possível, para conviver com pessoas positivas e que ofereçam referências diversas e saudáveis de famílias e masculinidade. Neste momento os primos mais velhos, tios, amigos da família, técnicos esportivos, professores e outros homens da comunidade são referências importantes. Eles ajudam os meninos a encontrar modelos sobre o que é ser um homem legal.

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