Eu era uma partidária daquele discurso que diz que criar crianças com amor, presença, empatia e consciência crítica é a chave mestra para mudar o futuro, para termos sociedades mais conscientes, mais atuantes social e politicamente, para promover a mudança de paradigma tão desejada, necessária e urgente.
Não penso mais assim. 
Não acho mais que, destinando mais atenção, problematização e questionamento à criação das nossas crianças – filhos/filhas ou alunos/alunas – teremos um mundo melhor no futuro
Não é isso que tenho visto. Não é isso o que tenho observado. 
E como não estou no futuro, não posso dizer que isso de fato não vá acontecer lá, no porvir – e me faltam tempos verbais adequados. Estou no presente. E o que tenho visto, ainda que isso pareça a alguns como um devaneio simplório, é a mudança agora, já, no presente
No aqui e no agora. 
Uma mudança dura, difícil, geradora de angústias, de ainda mais angústias, de dúvidas, de ainda mais dúvidas. 
E esse sentimento frequentemente presente de que “está muito difícil criar filhas e filhos” é também o que me dá essa sensação de mudança do presente. Porque para muitos, criar filhas e filhos é coisa muito simples e muito fácil. É colocar no mundo, alimentar, vestir, escolarizar e deu. Tá no mundo, é do mundo. E esse negócio de teorizar, refletir, problematizar é coisa de desocupado, de quem tá com a vida ganha, e eu tenho mais o que fazer, porque os meninos vão crescer de qualquer jeito, comigo ou na rua. 
Então, se para tantos “está muito difícil criar filhas e filhos”… Opa, que bom! Se para tantos há dúvidas infindáveis sobre alimentação, educação, limites, permissividade, autoritarismo, qualidade do vínculo, qualidade do lazer, qualidade do tempo que se passa junto, opa! Coisa boa! Há problematização nesse caminho.
A facilidade esconde o inimigo. A facilidade é a mãe da mercantilização. Madrinha dos valores de consumo. Tia-avó da artificialização da vida. Genitora da coisificação do mundo.
E das pessoas.

A forma como muitas pessoas estão criando seus filhos, fazendo escolhas contra-hegemônicas, desafiando o conceito mercadológico de vida atual, desacelerando, readequando, ou ressignificando o tempo que têm com seus filhos e filhas, fazendo escolhas não muito comuns, não muito convencionais, não muito divulgadas, não apoiadas pela indústria cultural, tem me mostrado que não será preciso aguardar o enrugar do meu rosto ou a chegada do platinado dos cabelos para ver a mudança. Ainda que seja no infinito ao meu redor, ou na imensidão dos contatos virtuais, estou vendo a mudança. Estou vendo a não aceitação daquilo que nos oprimia – e que oprime ainda. A recusa do pensamento colonizador. A fúria contra o pensamento abissal. A quebra dos limites geográficos entre opressores e oprimidos. Estou vendo mulheres que se empoderaram enormemente por terem se tornado mães. Estou vendo homens operando, ainda que em pequeno grau, a revolução do homem – e não do macho. Estou vendo a diversidade sexual ganhar todos os espaços. E a resistência a isso ser quebrada com muito bom argumento, com muito bom enfrentamento. Estou vendo a educação ser problematizada, as salas de aula serem questionadas, grupos organizados enfrentando grandes corporações contra a manipulação das crianças como peças no jogo feroz e injusto do consumo, industriais e licenciadores de suas marcas apelando a argumentos débeis por falta de verdadeira problematização. Estou vendo o solidário vencer o competitivo. O artesanal botar medo no industrial. O que tinha medos infinitos, lutar contra todos eles. O bullying ser problematizado e orientar ações de arte. A violência tornar-se explícita em função do violentado sentir-se forte para soltar a sua voz. O doméstico conquistar espaço que antes era do corporativo.

Sim. Acho que estamos em um novo tempo. E acho que grande parte das dificuldades que tantos têm afirmado viver nos tempos atuais é fruto da crise que acompanha toda revolução de sociedades. Nenhuma sociedade pode mudar seus valores sem superar crises ou pontos de inflexão – ou de mutação…
Credito isso a uma maior consciência geral. A um esforço coletivo de problematização e enfrentamento.
E, também, às escolhas que muitos de nós têm feito inspirados pelo fato nada simples de: criar novos seres humanos.

Quais são os eventos capazes de mudar pr
ofundamente nossos valores e nossas vidas? A morte de alguém muito amado. A notícia de uma doença grave. A cura dessa doença. Uma perda importante. E um nascimento.
Nascimentos mudam gente. Todos os dias. E embora não mude a todos, muda muitos. E têm mudado cada vez mais. O avanço da luta pela humanização da saúde, especialmente da humanização do nascimento, tem ajudado a impulsionar uma grande transformação de valores. De valores que ajudam a tornear talvez a mais importante transformação individual e coletiva: a transformação EMANCIPATÓRIA.
Emancipar é tornar livre. É tornar independente.
Especialmente, tornar-se livre e independente dos valores esmagadores do consumo, da tecnocratização do cuidado, da coisificação da vida e do ser, da maquinização do viver, da patologização do normal, da medicalização dos afetos, da normalização da vida, da padronização da mulher e do homem.
Emancipar é um conceito que abraça o filosófico, as questões de gênero e a dimensão política. Mas que em última análise traz consigo um grande valor: ser livre. Libertar-se.

Muitos educadores de mentalidade simplista chamam a educação de ato verdadeiramente emancipatório. Não é
Educar não é obrigatória ou necessariamente emancipar. Deveria ser. Mas não tem sido.
A educação baseada em normas, padrões e exclusão que temos hoje não é emancipatória. É doutrinária. É baseada em moldes. E serve a um fim muito claro: manter a roda do consumo girando, manter em movimento a engrenagem mercantil, substituindo o sentir pelo comprar, o acolher pelo excluir, o cooperar pelo competir, o pleno desenvolvimento humano pela meritocracia. A escola com mais alunos no ranking da federal. A escola com mais atividades extracurriculares, de forma que você só veja seu bebê de 2 anos durante 4 horas por dia. A escola trilíngue que desenvolve o córtex pré-frontal do bebê.
Educação emancipatória é crítica. É problematizadora. É desconfortável. Produz angústia. Sentimento de inadequação. Desencantamento do mundo. Gera perguntas. Mais do que respostas… Confronta. Revolta. E é tudo isso que impulsiona o ser à mudança. Sua também. Mas principalmente coletiva. É desse sentimento de inadequação e estranhamento que brota o engajamento social, o sentimento solidário, a noção de pertencimento ao coletivo. Deixamos de ser EU. Tornamo-nos NÓS. Não lutamos mais pela MINHA causa. Mas pela NOSSA. Ainda que os sujeitos contemplados no “nosso” ainda sejam  isso, sujeitos, e não pessoas já despertas.
Faz parte ser criticado. Faz parte querer desistir. Faz parte ser alvo. Faz parte. A resistência é feroz. E esse enfrentamento é a cereja do bolo da emancipação.

Não há emancipação individual. Ela só é real e verdadeira em seu elemento coletivo. Um que saia da média, da mediana, é apenas desvio padrão, diluído, anulado – por vezes retirado por sorteio… Mas muitos promovendo novos valores, novos números, são capazes de alterar os valores de centro da curva. 

“Pessoas que se enquadram cegamente no coletivo fazem de si mesmas meros objetos materiais, anulando-se como sujeitos dotados de motivação própria. Inclui-se aí a postura de tratar os outros como massa amorfa. Uma democracia não deve apenas funcionar, mas sobretudo trabalhar o seu conceito, e para isso exige pessoas emancipadas. Só é possível imaginar a verdadeira democracia como uma sociedade de emancipados”

Essa frase, de autoria de Theodor Adorno, filósofo alemão que, junto com Max Horkheimer, é autor da Dialética do Esclarecimento e criador do conceito de “indústria cultural”, diz tudo o que penso sobre a fundamental importância do papel crítico e contestatório que devemos ter enquanto mães, pais e cuidadores.
Não é possível que nos enquadremos cegamente no coletivo sem que comprometamos nossa própria autonomia – e a autonomia de nossos filhos.
Não é possível que aceitemos ser objetos materiais, manipulados por uma indústria e uma mídia inescrupulosa, sem comprometer a emancipação coletiva.
Não somos massa amorfa.
Somos agente de mudança.
De mudança dupla: porque somos seres dotados de razão e potência e porque geramos seres dotados de ainda mais potência, impulsionada por nossa própria.
Ainda chamando Adorno, esse grande filósofo, à conversa – q
ue entrou em minha vida apenas agora, com 36 anos, nas disciplinas de teoria crítica que cursei neste segundo doutorado e que tanta contribuição tem oferecido ao meu desenvolvimento pessoal e à criação de minha filha – a primeira infância não é apenas um momento de passagem para a maturidade. Não. Adorno afirma que é neste período de tenra idade que o ser sofre grande pressão para a constituição de seu caráter.
Assim, que influência têm sobre a formação de uma criança as escolhas que você, como mãe, pai e cuidador, faz? Qual a sua responsabilidade, como ser detentor do poder de escolha daquilo que outro ser irá viver, sobre a formação social, política, emocional e emancipatória das nossas crianças? A falta de reflexão crítica sobre as escolhas que você faz não estaria contribuindo para a coisificação das crianças sob seus cuidados? Inserir as crianças no mundo dos iguais, da norma, dos que não contestam, dos que aceitam, dos que se subjugam e caminham em silêncio tal qual rebanho, não as tornaria iguais a coisas? E, assim coisificadas, não passariam a ver seus semelhantes também como coisas? Segundo Adorno, sim. 

“No começo as pessoas deste tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas”. (Adorno)

Quando você aceita o artificial, o mecânico, o industrial, o mercantil, como desejável, o que é que você está fazendo, com você, com seus filhos, com a sociedade? Quando você sobrepõe os valores de consumo aos valores humanistas, o que é que você está fazendo? Você desenvolve uma consciência coisificada. Substitui a reflexão pela idolatria. A objetos, a técnicas, a procedimentos, à industrialização.


É por isso que é muito mais fácil aceitar o artificial ao natural. O cheio de corantes e flavorizantes ao

puro. A técnica invasiva ao procedimento integrativo. O complemento ao leite produzido pelo peito. Os objetos às ideias. O centro cirúrgico à sala de parto. A escola com ênfase no currículo à escola com ênfase no humano. A língua inglesa à educação emocional. O brinquedo com sirene aos pés de lata. A televisão ao ralado no joelho. A bala sabor melão-tangerina à ameixa apanhada do pé. O shopping ao parque. O remédio à participação ativa. A técnica de adestramento do sono ao colo-cantiga-embalo. O tomate que brilha ao tomate tortinho com pintinhas pretas. O tablet ao giz de cera. O embalador que balança automaticamente ao colo dançado. E tantos, tantos, tantos outros exemplos que passam batido por nós, no automático da vida, e que refletem o fetichismo da técnica – expressão de Adorno.

Sabe o que essas escolhas refletem e promovem, de acordo com esse tão sábio filósofo?
Uma total incapacidade de amar…
Incapacidade de amar nossa própria condição. Incapacidade de nos amarmos enquanto humanos. Não mecânicos, não técnicos. Humanos, demasiado humanos – outro filósofo…
É também por isso que essa sociedade doente passou a não aceitar mais as tristezas. Tão comuns, tão humanas. É por isso que essa sociedade doente não acolhe mais, e condena tantos e tantas à morte solitária, muitas vezes auto-induzida. É por isso que essa sociedade doente medica a expressão criativa das crianças. Porque, se não funcionamos tal e qual as máquinas alvos de nossos fetiches, então estamos com defeito. E é preciso consertar…
Não acolher. Não entender. Não ser solidário.
Apenas consertar.
Então, por fim, pergunto: quanto há de emancipatório em nossas escolhas? Quanto há de emancipatório em nossos valores? Quanto há de emancipatório na vida que levamos? Não nessa vida ensaiada e embelezada pelas redes sociais, cujo desenrolar acontece em esquetes tornados vivos mediante um botão de “publicar”. Mas a vida que levamos dentro de nossas casas, nossos quartos, nossos pensamentos, nossas ações, nossa práxis.
Quanto há de emancipatório nisso?
Quanto há de emancipatório nos valores e práticas que ensinamos aos nossos filhos e filhas?
Quanto?
Há?


*Nesta quarta-feira (20/08/2014), das 19:00 às 21:00, no SESC-CAMPINAS (SP), vamos conversar exatamente sobre isso. Quanto nossas escolhas como mães e pais contribuem para nossa emancipação? A participação é gratuita, basta retirar o ingresso antecipadamente.


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