Eu estava preparando um texto sobre amamentação, seguindo tanto as últimas movimentações em torno do assunto quanto a minha própria experiência – já que neste fim de semana completaremos 1 mês de desmame -, mas a tragédia na Sandy Hook Elementary School, em Connecticut, mudou o rumo da prosa.
Quem é sensível o suficiente para se colocar no lugar das famílias que perderam suas crianças não passa ileso por uma tragédia como essa. E a gente sabe que muito infelizmente isso não é raro nos Estados Unidos, vide Columbine e Virginia Tech – além de estar acontecendo em outros lugares, inclusive no Brasil…
Então, como tantas outras pessoas, peguei-me pensando no contexto que leva um jovem a entrar em escolas e sair atirando contra outros jovens.
O que contribui para isso?
Onde estão as relações de causa?
Por que isso acontece tanto nos Estados Unidos?
Por que também já acontece em outros lugares?
Há algum aspecto da qualidade da criação desses jovens que possa tê-los influenciado?
Essa abordagem de se construir um “perfil” do atirador é válida?
O que esses acontecimentos tão terríveis nos dizem, para além da comoção inevitável de saber que tantas crianças perderam suas vidas tão violentamente?
Não são questionamentos feitos a esmo. Pensar sobre isso nos leva a de fato tentar prevenir que essas tragédias continuem a acontecer.
Então li alguns textos na busca por entender esse fenômeno um pouco melhor e encontrei um artigo bastante interessante, publicado em 2009, com o título “De Columbine à Virgínia Tech: Reflexões com Base Empírica sobre um Fenômeno em Expansão“, de Timoteo M. Vieira, Francisco D. C. Mendes e Leonardo C. Guimarães e publicado na revista Psicologia: Reflexão e Crítica. Li o artigo na íntegra e selecionei alguns trechos que considerei bastante importantes do ponto de vista da criação de filhos, do ambiente em que vivem as crianças, dos estímulos aos quais estão expostas, entre outras questões tão importantes quanto. Para tornar a leitura mais fluente, retirei a maioria das referências bibliográficas sugeridas ao longo do texto, mas caso algo te interesse você pode acessar o artigo na íntegra aqui. É importante mencionar que a tragédia da Escola Municipal Tasso da Silveira, no Realengo (RJ), ainda não tinha acontecido quando esse artigo foi publicado, o que mostra a validade das extrapolações dos autores. Reforço: os trechos transcritos abaixo foram escritos pelos autores do artigo, não por mim, eu apenas os agrupei segundo minha própria seleção.
– Um exemplo do fenômeno em outros ambientes é o massacre ocorrido em um cinema de São Paulo em 1999, no qual o estudante de medicina Mateus da Costa Meira atirou contra a platéia, matando três pessoas e ferindo outras quatro.
– Esse tipo de tragédia pode ser considerado por muitos como peculiarmente norte-americano, não havendo motivos para maiores preocupações pelo restante do mundo; todavia, entre Columbine e Virginia Tech o fenômeno ocorreu em vários países. Uma matéria jornalística do dia 22 de abril de 2007, publicada no site The Sunday afirma que casos de school shooting ocorreram na Alemanha, na Suécia e no Canadá (para mais informações sobre school shootings ver também Muschert, 2007).
– A estabilidade se define pela segurança das relações entre pais e filhos, e pela expectativa de que mesmo em situações de estresse não haverá ruptura nos relacionamentos. Assim, a ausência de interações saudáveis entre pais e filhos pode afetar o desenvolvimento das crianças e sua preparação para a vida social dos anos posteriores.
tais Apresentados pela Mídia
– Estudos sobre os efeitos dos modelos apresentados pela mídia no comportamento de crianças têm mostrado que este é um fator significativo.
– Gomide (2000), se referindo a um relatório de 1985 da American Psychological Association, alerta para o fato de que crianças e adolescentes podem tornar-se menos sensíveis à dor alheia ou podem sentir-se amedrontados após a exposição a programas violentos na televisão. O relatório cita que programas infantis frequentemente apresentam até vinte cenas contendo agressões, a cada hora.
– Não se pode esquecer, ainda, que hoje são comercializados jogos nos quais é possível escolher o papel do bandido ou do mocinho, como é o caso do jogo Counter-Strike, ou jogos em que o jogador recebe pontos por infringir algumas regras sociais importantes tais como regras de trânsito (incluindo pontuação para o jogador por atropelar pedestres) como é o caso do jogo Carmageddon. Apesar das tentativas de proibição de jogos dessa natureza, os mesmos são facilmente encontrados no mercado de produtos falsificados.
– Os estudos realizados (…) mostram que crianças pré-escolares podem apresentar aumento na freqüência de comportamentos agressivos imediatamente após terem sido expostas a filmes violentos com lutas. Esses resultados confirmam a hipótese da Teoria da Aprendizagem Social, apre-
sentada por Albert Bandura (1979) de que observando um modelo e percebendo as conseqüências favoráveis que o ambiente fornece para os comportamentos apresentados, há uma alta probabilidade de que os comportamentos observados sejam aprendidos.
– Nesses estudos o efeito da exposição a filme violento foi testado através do enredo de uma redação. As crianças de ambos os sexos apresentaram grande conteúdo de agressividade em seus enredos após terem assistido a um filme de luta. Nesse caso, o estudo mostra que a exposição a modelos comportamentais inadequados pode influenciar diretamente os conteúdos simbólicos manifestos, que podem ser indicadores de como as crianças atribuem sentido às suas experiências. Essa atribuição de sentido às experiências parece ser ponto central na construção dos padrões interpretativos da realidade que poderão influenciar suas futuras emoções e comportamentos.
– Apesar dos dados que sugerem fortes influências do meio-ambiente familiar e da mídia na formação inadequada dos jovens atiradores, é importante evitar explicações deterministas. Cada um dos fatores identificados deve ser compreendido como parte de uma complexa rede de variáveis, boa parte delas de origem social. Stephen Thompson e Ken Kyle (2005) afirmam que ao invés de nos preocuparmos com traços que compõem os perfis dos atiradores, devemos nos preocupar com os perfis dos meios onde os massacres ocorrem e como estudantes despreparados para tais ambientes podem responder aos mesmos.
– (…) após cada tragédia nos Estados Unidos alguns psiquiatras e psicólogos clínicos, vários deles ligados ao Federal Bureau of Investigation (FBI), apresentam relatórios sobre o perfil psicológico dos assassinos, destacando características de personalidade e psicopatologias. Não raro, rótulos assim provocam uma série de problemas de discriminação e de procedimentos constrangedores por parte de escolas, criando um ambiente tenso e gerando ainda mais complicações para alguns indivíduos que passam a ser identificados como socialmente inaptos e assassinos em potencial. Para Killingbeck (2001), medidas drásticas de segurança acabam gerando mais problemas e provocando uma percepção distorcida por parte da população que compreende as tragédias através da mídia. Revistas em estudantes em busca de armas, policiamento dentro das escolas e mesmo o aparecimento de empresas especializadas em segurança nas escolas (…) não têm ajudado a evitar as tragédias.
– Um relatório detalhado apresentado pelo Serviço Secreto dos Estados Unidos em parceria com o Departamento de Educação dos Estados Unidos (United States Secret Service & United States Department of Education, 2004) revisou mais de 30 episódios (entre massacres e tentativas), buscando compreender o fenômeno e desenvolver possíveis propostas de prevenção. O relatório afirma que não há um perfil característico dos estudantes atiradores (nem psicológico nem demográfico), pelo menos não de forma acurada. Chama a atenção, todavia, o fato do relatório não descartar que há variáveis que podem ser identificadas em boa parte dos incidentes desta natureza. Dentre estas, ressaltam-se a dificuldade dos atiradores em lidar com perdas significativas e falhas pessoais, interesse por mídia violenta (filmes, jogos, livros e outros), o fato de terem sido ou estarem sendo vítimas de perseguições e humilhações de colegas, a manifestação de comportamentos anteriores que sinalizavam que eles precisavam de ajuda, dentre outros.
– Tem-se notado uma preocupação imediata após os massacres em se eximir as famílias dos atiradores de qualquer tipo de culpa pelas tragédias. Isso é, por um lado, compreensível, já que o que se teme são represálias contra familiares (…). Contudo, Eva Fjällström (2007) considera que em cada massacre há sempre uma família responsável. Isso não implica dizer que as famílias são as causas das tragédias, mas que têm participação importante.
A mesma autora lembra que em uma entrevista coletiva para a imprensa, o investigador responsável pelo trabalho policial em Columbine declarou que os pais dos adolescentes atiradores eram pessoas dóceis, amáveis, e não os monstros que se poderia imaginar; mas, uma análise cuidadosa dos vídeos gravados pelos adolescentes é bastante reveladora
. Nos vídeos os adolescentes mostram remorso em relação aos pais, pedem pelo perdão e afirmam que eles são bons pais e em nada poderiam ter evitado a tragédia. Porém, os relatos dos adolescentes são contraditórios, pois as evidências apontam para pais indulgentes que, apesar de manterem um relacionamento afetivo aparentemente positivo com os filhos, não os monitoravam, e sequer estabeleciam limites e orientações significativas. Isso complexifica a análise, ao levantar a suspeita de que a manutenção do afeto positivo, em si, não é contribuição suficiente dos pais para o desenvolvimento dos filhos (apesar de necessária). O monitoramento, estabelecimento de limites e orientações claras, parece ser imprescindível. Uma forte evidência disso são as descrições que aparecem nos vídeos, das armas e bombas que os adolescentes guardavam em seus próprios quartos, de forma absurdamente fácil de serem encontradas. Para Fjällström (2007) o que os adolescentes chamam de bons pais pode significar exatamente essa distância. De acordo com a autora, para um adolescente é muito comum que o mais desejado seja que os pais não interfiram em suas rotinas, isto é, que os deixem em paz.
– Muito mais do que descobrir as armas e bombas, os pais parecem ter falhado em perceber que os filhos sofriam humilhações no ambiente escolar e com isso alimentavam insatisfação e ideações de violência, vingança e suicídio.
– Quanto à influência da mídia sobre o comportamento de Harris e Klebold [os atiradores de Columbine], houve bastante alarde acerca de sua preferência por filmes e videogames violentos e pelo gosto por música de protesto, especialmente Marilyn Manson. Os filmes e videogames de fato podem ter contribuído na construção das fantasias de vingança e de uma morte gloriosa e heróica, o que parece ter sido reforçado pela própria cultura paramilitar norte-americana e o fácil acesso a armas e munição. É razoável considerar tais fatores como possivelmente relacionados aos comportamentos extremos dos atiradores de Columbine, mas eles também não podem ser apontados como causas determinantes.
– Contudo, a participação da mídia não parece advir apenas dos filmes de ação, mas também da própria mídia jornalística que repetiu durante anos os detalhes da tragédia de Columbine, contribuindo assim para que os objetivos de Harris e Klebold [atiradores de Columbine] fossem atingidos. Nas declarações de Cho Seung-Hui [o atirador do Virginia Tech], Harris e Klebold aparecem como mártires e ele revela o desejo de alcançar a mesma glória.
– Outra consideração importante é que o chamado de Cho Seung-Hui para que novos massacres sejam realizados pode não ter efeito para a maioria dos adolescentes vítimas nas escolas, de modelos parentais inadequados e que se expõem a mídia violenta; mas não se pode negar o risco de que isso influencie novos massacres ao redor do mundo. À medida que a divulgação de tais informações se torna mais globalizada (apresentada em mais países), cresce também o risco de que o fenômeno se repita em qualquer outro país (tal como vem acontecendo).
– Tanto em Columbine como na Virginia Tech, práticas de humilhação contra pessoas classificadas como outsiders (excluídas) estavam presentes. Em ambos os casos a prática de bullying e a falta de interesse e/ou competência de pais, professores, diretores e colegas para se aproximar dos adolescentes e tentar alguma intervenção é marcante.
– A presença de pais atuantes e reflexivos no cotidiano dos filhos pode contribuir para que modelos de vingança e interpretações distorcidas de atos heróicos violentos sejam questionados e modelos adequados sejam construídos e apresentados aos filhos. Da mesma forma, pais presentes, que interagem e se dedicam afetivamente aos filhos têm condições de identificar que tipo de relações eles vêm estabelecendo em seu cotidiano (Há sinais de que possam estar sendo vítimas de bullying? Há carência de afeto?), de identificar elementos de risco (interesses por armas, textos, vídeos, e materiais que possam influenciar a construção de percepções distorcidas da realidade), e assim proceder com as intervenções e cuidados pelos quais são responsáveis.
– Diante dos argumentos aqui apresentados, então, é razoável considerar que um massacre em uma escola ou universidade deve ser visto como o trágico desfecho de um longo processo que pode ter se iniciado nas primeiras interações sociais e se desdobrado pelos anos de escola e universidade. Portanto, concordando com Marques (2007), é um equívoco rotular um estudante atirador simplesmente como um psicopata tresloucado impulsionado a matar.
– O presente artigo não tem como objetivo descartar a importância de psicopatologias, mas alerta para evidências como as apresentadas por Clabaugh e Clabaugh (2005) e no próprio trabalho de Phillip Zimbardo, de que pessoas psicologicamente saudáveis podem pensar e se comportar de forma patológica quando perseguidas, abusadas, abandonadas e discriminadas. Da mesma forma, podem se comportar de forma abusiva quando lhes são dados poderes para agir como quiserem, sem limites para tal.
Que a dor que sentimos por saber que tantas crianças foram assassinadas por jovens nos leve a refletir sobre o ambiente em que as nossas crianças estão crescendo. De que forma somos todos co-responsáveis pelas tragédias sociais que vivemos?
Definitivamente, errou quem acreditou que fim do mundo fosse uma data.
É uma constatação social e um clamor por mudança.
Que esse mundo que nós conhecemos realmente acabe.
Que nasça um outro, onde as crianças possam ser mais amadas e bem cuidadas.
A charge de abertura é do Frank, mas foi feita para homenagear as crianças que morreram no massacre brasileiro, na escola do Realengo