Há um assunto de fundamental importância sobre o qual este blog – conhecido pela defesa que faz da
criação não violenta das crianças e pela disciplina positiva e sem opressão – precisa tratar.
Mas acontece que por conta das promoções que estão acontecendo em comemoração aos 3 anos do blog e em incentivo ao filme O Renascimento do Parto, ficou difícil escrever, nesse momento, tudo o que quero dizer a respeito. E que não é pouco.
Mas também, não preciso escrever…
Não preciso escrever pelo simples fato de que minha amiga e colega Andréia Mortensen já fiz isso com muita propriedade.
Então hoje, eu e ela divulgamos, via Cientista Que Virou Mãe, um texto que todo pai e mãe precisa ler.  Quer dizer, não só mãe e pai; também avô, avó, tios, tias, cuidadores e todos aqueles que se interessam verdadeiramente pela qualidade de criação e cuidado que oferecemos às nossas crianças. Inclusive para que não se esqueçam de que é preciso leitura crítica, é preciso ir atrás da fonte, é preciso sempre se questionar sobre quais os motivos verdadeiros por trás das matérias e o que move os meios de comunicação a falarem o que falam, da maneira como falam.

Por Andreia Mortensen

Saiu hoje, 25 de abril, uma reportagem no site de notícias inglês ‘Daily Mail‘ sobre uma pesquisa publicada na revista ‘Parenting: Science and Practice Journal‘, que teve como objetivo analisar quais fatores estão envolvidos nos resultados maléficos da disciplina severa em adolescentes de famílias mexicanas de baixa renda.

O portal brasileiro Terra teve o disparate de traduzir a reportagem do Daily Mail e publicar sem verificar a fonte original.  O resultado foi lamentável. A matéria do Terra (copiado do Daily Mail) deveria ser intitulada: 

‘Jornalistas ingleses precisam de aulas de interpretação e jornalistas brasileiros precisam urgentemente parar de traduzir artigos mal interpretados e aprender a verificar o artigo ORIGINAL’ . 

Ou então:

‘Disciplina severa É prejudicial para a criança, diz estudo, mas a prática de telefone sem fio de jornalismo sem ética distorce o resultado’.

O que vimos foi algo ultrajante: falta de ética e responsabilidade. Como cientista, fico extremamente decepcionada ao ver o nível de distorção que jornalismo marrom faz. E então isso é copiado sem checar o estudo original pelo jornalismo brasileiro!

O artigo original, “Maternal Warmth Moderates the Link between Harsh Discipline and Later Externalizing Behaviors for Mexican American Adolescents”, da revista ‘Parenting: Science and Practice Journal’, diz uma coisa. O ‘Daily Mail’ pega o estudo e transforma em uma reportagem claramente sensacionalista, afirmando que: “O estudo diz que punição é benéfica as crianças, contanto que venha de um ‘bom ambiente familiar’, o que é uma interpretação completamente EQUIVOCADA. Simplesmente, isso não foi a conclusão a que chegaram os autores do estudo!
E vai além! 
imagem utilizada em matéria original do
Daily Mail
O Daily Mail publicou, junto, fotos de crianças apanhando – em uma tentativa de levar o leitor a acreditar que é isso que o estudo aprova, sendo que não é! Uma vergonha!

Então o portal brasileiro ‘Terra’ simplesmente COPIOU a sequência de erros 
do Daily Mail (quero eu acreditar que se tratou de uma cópia e não de uma ação sem qualquer ética e de mau caratismo mesmo…) e transformou nessa ‘reportagem’, que só está servindo para fazer apologia à violência infantil. Sim, como se precisássemos de mais incentivo, num país onde cerca de 500 mil crianças são espancadas por ano, com muitas mortes, onde grande parte das agressões graves são iniciadas por uma dita ‘palmada educativa’!

Mais responsabilidade Steve Robson (reporter do Daily Mail), por favor!
Mais responsabilidade, repórter do Terra (não consegui identificar o nome, mas se alguém me ajudar e conseguir seu e-mail, repassarei esse protesto diretamente para ele/a!)

Jornalistas, por favor: LEIAM SEMPRE os artigos originais na ín
tegra antes de emitir sua opinião em forma de ‘matéria’. Tentem entender realmente o que o estudo está querendo dizer, a fim de não cair no erro grotesco de se escrever algo mentiroso, inapropriado e sem qualquer acurácia, repleto de más interpretações – coisa que, inclusive, parecer ser bastante comum no Daily Mail… Será que os leitores não merecem conhecer, verdadeiramente, o que os pesquisadores estudaram? Quantos lerão essa ‘matéria’ e, sentindo-se avalizados pelo paradigma científico atualmente dominante, entenderão que tudo bem dar palmadas nos filhos?

Vamos então, por uma questão de SERVIÇO coletivo, e não de DESSERVIÇO, ver realmente o que foi que a tal pesquisa, coordenada por Miguelina Germán, realmente descobriu. Aqui vai também o link para o artigo original, para quem acha que entender o estudo de fato é importante: 
http://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/15295192.2013.756353

Resumo (caso você não leia em inglês, não tem problema; estamos reproduzindo aqui o resumo como originalmente publicado no artigo, apenas para atestar a autenticidade do que foi escrito pelos autores. Você pode também acionar o tradutor do Google, caso queira. Senão, passe direto lá para baixo que explicamos).
Objective: This study examined maternal warmth as a moderator of the relation between harsh discipline practices and adolescent externalizing problems one year later in low-income, Mexican American families. Design. Participants were 189 adolescents and their mothers who comprised the control group of a longitudinal intervention program. Results. Maternal warmth protected adolescents from the negative effects of harsh discipline such that, at higher levels of maternal warmth, there was no relation between harsh discipline and externalizing problems after controlling for baseline levels of externalizing problems and other covariates. At lower levels of maternal warmth, there was a positive relation between harsh discipline practices and later externalizing problems. Conclusion. To understand the role of harsh discipline in the development of Mexican American youth outcomes, researchers must consider contextual variables that may affect youths’ perceptions of their parents’ behavior, such as maternal warmth.

Vamos lá, vamos entender.

Foram analisadas 189 crianças (amostra PEQUENA!) entre 12-13 anos, todas de baixa renda no México (onde o modo de criação comum pode ser MUITO diferente do modo de criação na Inglaterra, nos EUA, no Brasil…). O grupo de pesquisadores teve dois objetivos:

1. Entender o estilo de vínculo nas relações mãe /filho
2. Relacionar o vínculo à externalização de comportamento (agressividade direcionada de maneira anti-social). As mães foram entrevistadas sobre isso (o que já é um viés ENORME, não há um observador de fora, que observe o comportamento da criança. Quem relata é a mãe, que pode relatar de maneira imprecisa, consciente ou inconscientemente, sem haver qualquer tipo de critério previamente definido).

O que os pesquisadores NÃO estudaram:

1. Sintomas de ansiedade ou depressão nas crianças
2. Empatia e interações sociais da criança com outros
3. Desenvolvimento emocional e saúde das crianças
4. Sucesso acadêmico das crianças ou avaliação de inteligência

Os pesquisadores dizem: “Esse estudo demonstra que o aconchego – ou acolhimento, ou zelo, ou mesmo calor – maternal NÃO PROMOVE o

desenvolvimento de comportamentos externalizantes, como a agressividade, na presença da disciplina severa”. Ou seja: o acolhimento maternal é um fator de PROTEÇÃO contra a agressividade infantil, em famílias onde há disciplina severa por parte de outros membros da família.


Ou seja, o estudo analisou somente o que chama de “externalização” (a agressividade manifestada pela criança), mas não analisou a “internalização” (aquilo que a criança processa sozinha, com ela mesma e que guarda para a vida…) e outros distúrbios, como depressão, ansiedade, tristeza, que estão presentes em níveis alarmantes em nossa sociedade.

Os pesquisadores descobriram que “disciplina severa” (que pode ou não envolver palmadas e gritos – isso NÃO foi descrito no artigo!) foi de certa forma compensado quando mãe e filho tinham um vínculo seguro…
O que a pesquisa não diz: 

– os pesquisadores não descrevem nada sobre os efeitos da ‘disciplina severa’;
– a pesquisa não diferencia entre abuso verbal e físico
– não analisou outros efeitos psicológicos ou físicos da dis
ciplina severa
e, mais importante que tudo
– NÃO faz apologia ao uso de disciplina severa, particularmente de palmada em qualquer momento!

Os pesquisadores dizem, literalmente:

“É importante notar que não estamos aprovando o uso de disciplina severa” (Leiam lá, no penúltimo parágrafo do artigo original, LEIAM!)

Então, o que podemos aprender com essa pesquisa? Que disciplina severa produz provavelmente MENOS estragos se o vínculo entre mãe e filho for bom, for forte. E que se, por ventura, perdemos a paciência em determinado dia e fomos severos demais, chegamos a gritar ou, até mesmo, batemos em nossos filhos (esperamos que não, que tenhamos nos controlado antes…), mas caso tudo isso tenha acontecido em um dia ruim, quando o vínculo é seguro, quando mãe e filho são próximos, a criança provavelmente ficará bem. 
Mas o artigo NÃO defende , absolutamente, que se bata nas crianças como forma de disciplina!

Resumindo: a Dra. Miguelina Germán deve estar horrorizada com isso. Ela e sua equipe tinham como objetivo investigar a situação catastrófica em termos de agressividade em famílias de baixa renda mexicanas. Eles descobriram que, quando o vínculo entre mãe e filho era forte, os efeitos da disciplina severa eram ‘menos piores’, e também que a relação entre vínculo materno e comportamentos anti-sociais tem influência de OUTROS fatores, não somente do vínculo.

Concluem dizendo que: 

“Onde as práticas de disciplina severa são consideradas normais, culturais, há outros fatores que podem ajudar a diminuir todo malefício que essa criança está recebendo”.


NUNCA foi dito que bater seria benéfico, pelo contrário! Como é que virou essa coisa?

Considerando-se uma GRANDE quantidade de estudos científicos sobre punições corporais que mostram os malefícios a longo prazo do uso de palmadas, isso é MUITA irresponsabilidade. Ano

passado, pesquisadores canadenses analisaram os resultados das pesquisas sobre castigos físicos infantis realizadas nos últimos vinte anos e publicaram no periódico científico CMAJ – Canadian Medical Association Journal. Os resultados mostram que a punição física em crianças está associada ao aumento dos níveis de agressão infantil, além de não ser mais efetivo em estimular a obediência quando comparado a outros métodos. Além disso, a punição física durante a infância está associada a problemas de comportamento na vida adulta, incluindo depressão, tristeza, ansiedade, sentimentos de melancolia, uso de drogas e álcool, e desajuste psicológico geral.

Pessoal, mais responsabilidade social.
Mais respeito com a comunidade científica que está trabalhando em defesa das crianças.
Mais respeito, por favor.


Andréia Mortensen é bióloga, mestre e doutora em Bioquímica pela USP, com pós-doutorado em Neurociências pela OHSU (Portland, EUA) e Neurobiologia pela Universidade de Pittsburgh. Atualmente, é professora da Universidade de Medicina Drexel, Departamento de Farmacologia e Fisiologia, Filadélfia, PA.

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