Desde o final dos anos 80, pelo menos, é possível falar de um movimento social pela humanização do parto no Brasil[1]. Movimento que vem acumulando cada vez mais força, visibilidade, semeando importantes questionamentos no que se refere ao empoderamento feminino e à assistência ao parto, além de construir significativos projetos de transformação da realidade. Este movimento pode ser majoritariamente caracterizado como urbano, branco, de classe média e concentrado no sudeste e sul do país. Mas calma lá, isso não é uma acusação, é uma constatação e acima de tudo um convite. Um convite para passear comigo por outras realidades, olhar por novas janelas, expandir as possibilidades de construir novas relações mais equânimes, relações que respeitem a diversidade cultural e social ao nosso redor, e, principalmente, busquem conexões e complementaridades entre diferentes cosmologias e epistemes.

Uma das questões que mais tem me intrigado no último período é observar qual a nossa capacidade de nos deslocarmos para ouvir, acolher e compreender o outro. Ou ainda, porque insistimos em elaborar modelos e soluções homogeneizantes para questões sociais que na prática envolvem uma variedade de indivíduos, grupos e conjunto de conhecimentos muito maior do que supomos e/ou buscamos conversar, escutar, considerar. É nesse sentido que gostaria de poder ouvir você falando baixinho enquanto lê este texto e pensa sobre quem são as chamadas parteiras tradicionais, o que você conhece sobre suas vidas, papéis sociais, conhecimentos e contribuições, perspectivas e reivindicações.

Em primeiro lugar, é importante salientar qual tratamento ou interpretação podemos dar à ideia de tradição. Se tomarmos a cultura como um processo de movimentos contínuos e não como uma massa pétrea, compreenderemos que a tradição se preserva ao passo que se renova de acordo com os diálogos e/ou conflitos vividos entre grupos e entre indivíduos.  Não podemos perder de vista que isso se dá em um contexto de desigualdades, movimentado por forças em notável desequilíbrio. As parteiras sobre as quais eu falo são, em geral, mulheres negras, marisqueiras e/ou pescadoras, agricultoras, moradoras de comunidades rurais e/ou quilombolas nas regiões do recôncavo e baixo sul do estado da Bahia. Mulheres com as quais é possível aprender uma gama de conhecimentos sobre a vida pessoal e em comunidade, a saúde, o corpo e o espaço em que vivem – Adna, Maria, Raimunda, Binha, Heloína, Janete, Constância, Nininha, Val, Mãe Toninha, Marciana e tantas outras. Elas não estão imobilizadas e/ou estagnadas no passado, principalmente porque o raciocínio exposto aqui não diz respeito a indivíduos apartados, mas a um todo social que passa por compreensões, significações e ações coletivas. Falo dos e das parteiras, rezadeiras, referências religiosas, lideranças, pescadores, marisqueiras, o padeiro que mora na esquina, agricultores, cantadores e sambadores, mestres griôs, dançarinos, professores, caboclos, orixás, santos e um enumerado de elementos emaranhados na cultura e na vida cotidiana atual de determinados grupos sociais.

Em contextos de comunidades rurais, comunidades ditas tradicionais, o parto foi e ainda é visto como ritual de passagem em que a parteira, quando é o caso, assumiria um papel de legitimadora, condutora e cuidadora de um novo indivíduo que chega a uma família e a todo o grupo social. Encarnando também um importante lugar no conjunto de processos de construção e reconstrução da identidade quilombola nessas comunidades. Nas práticas e experiências do parto “tradicional” haveria, por um exemplo, um componente religioso (vinculado tanto ao catolicismo, quanto ao candomblé), dado pela ideia de uma sabedoria considerada “mística” e “doada” a essas mulheres por Deus e pelos Orixás, à qual se soma o fato de algumas parteiras acabarem por se destacar como autoridades religiosas das localidades. Do mesmo modo – e relacionado à dimensão anterior – haveria a ideia de que as parteiras dominariam um tipo de conhecimento ambiental particular, referente às técnicas de coleta, cultivo e/ou manipulação de plantas empregadas em usos terapêuticos e religiosos. Este tipo de conhecimento tem também um caráter prático, oral e compartilhado, muitas vezes hereditário. Isso quer dizer que as parteiras aprendem na prática e em constante relação com outras parteiras e mulheres – observando e escutando parteiras mais velhas; partejando; sentindo e se conectando com a mulher, o bebê, o parto e o ambiente em que estão inscritas.

O destaque de um texto da antropóloga Robbie Davis-Floyd que trago abaixo caracteriza o que ela chama de parto holístico, e quando eu o leio costumo visualizar o ideário de parto narrado para mim pelas mulheres e parteiras tradicionais que conheci. É como se todas elas estivessem dizendo coisas similares de várias formas diferentes.

“Ela [a parturiente] pode andar, comer, beber e dar à luz no lugar e na posição que desejar. Sua intuição a guiará, dando respostas únicas às situações e ambientes únicos nos qual se encontra. Suas necessidades e ritmo individuais serão fundamentais para o desabrochar de seu parto.”

 

Ao comparar o parto dito tradicional, o parto dito humanizado (em ambientes urbanos) e o parto na acepção biomédica, fica nítido que diferentes modelos de parto exprimem distintas concepções de saúde, corpo e até mesmo de vida comunitária, sobre as quais, no caso destas comunidades quilombolas, incidiriam dinâmicas sociais e processos históricos de interpenetração com o universo urbano e suas instituições.

Parece haver uma correlação entre as dinâmicas contemporâneas das comunidades do Vale do Iguape no município de Cachoeira no recôncavo baiano, por exemplo, em progressivo processo de interconexão com espaços urbanos, um sistema de saúde médico-hospitalar, a presença de novos agentes e mediadores externos e internos – de que a gradual diminuição do número de parteiras disponíveis e atuantes, observada ao longo de uma pesquisa que realizei nestas comunidades durante os anos de 2013 e 2014[2], é um indicador – num conjunto de fenômenos descontínuos transcorridos ao longo de décadas, e transformações nos próprios conceitos de corpo, saúde, cuidados, práticas e experiências de parto nessas comunidades, enredados em conflitos entre epistemes (o “tradicional” e o “científico”), sobre os quais incidem também significados relativos às suas identidades.

Ao mesmo tempo, esse tipo de vivências e experiências de parto, sejam reconstruídas pelas narrativas, seja aquelas que decorrem no presente, colocaria esse modelo de parto dito tradicional em conexão com modelos que, em espaços que transcendem esse tipo de comunidade, procuram se contrapor ao paradigma médico. Paradigma também dito “tecnocrático”, porque assentado no privilégio da “tecnologia” em detrimento do “toque” (Davis-Floyd, 1994). O parto dito tradicional pode ser observado em conexão aos modelos ditos “humanizados” e/ou “holísticos” – os quais, por contraste aos “tecnocráticos”, privilegiariam o “toque” e a “sintonia com a fisiologia do corpo” da mãe/mulher.

Como as avós ou entre os doutores, as mulheres elaboram estratégias ou políticas cotidianas em suas experiências de parto e não há mais como separar totalmente um espaço do outro, mas há conflito e disputa, há também resistências. Se for possível afirmar conclusões primárias, afirmo que o tecer da vida prática segue entre os dois extremos. Não há aqui tradições totalmente perdidas, tão pouco plenamente protegidas. Não há aqui desejo de viver apenas do passado, estático, tão pouco de creditar confiança em todas as promessas da modernidade[3] para o futuro. Ainda que estas relações envolvam disputas de poder, e que muitas vezes se deem entre forças em desequilíbrio (seja de capital material, seja de capital simbólico), o que há aqui é a coetaneidade entre diversos que por hora se enfrentam, por hora se tocam ou dialogam.

Instiga-me pensar um pouco mais acerca do que aquelas mulheres estavam falando sobre suas opiniões e avaliações da assistência das parteiras, do sistema de saúde institucional, da relação entre estes dois espaços e conjuntos de conhecimento já tão misturados e ressignificados no presente. O que aquelas mulheres, a partir das suas trajetórias e estratégias diárias em busca de seus partos[4] diziam sobre qual a melhor concepção de uma assistência ao parto, de uma política de saúde para e das mulheres, sem serem perguntadas diretamente sobre isso ou precisarem levar suas opiniões e aspirações a um espaço organizado dentro e pelo Estado.

Então, o que estas mulheres dizem, pra onde elas apontam?

Estamos presenciando uma geração de parteiras envelhecidas e envelhecendo, que foi recorrentemente criminalizada, questionada, perseguida, tocada pela racionalidade biomédica e/ou por religiões pentecostais, que são vítimas do machismo e racismo, que não conseguiu formar um número suficiente de novas mulheres para as sucederem, que está talvez no fim da vida. Isso significa também um risco para a continuidade desse movimento contínuo de renovação da tradição e da cultura, porquanto sem parteiras tradicionais não haverá partos ditos tradicionais nestas localidades. Um risco para os conhecimentos e técnicas que praticavam e praticam, para a noção de corpo, saúde, parto, sexualidade, indivíduo e comunidade/sociabilidade que compreendem suas dinâmicas culturais. A questão é saber se o paradigma biomédico e as políticas públicas vão continuar a serviço da aniquilação destas cosmologias ou vão se colocar em um patamar que possibilite diálogo e respeito, participação efetiva na construção e execução de políticas, bem como no exercício do controle social tão caro ao sucesso das políticas públicas em saúde.

As parteiras contam e mostram na prática que não são objetos de exposição cristalizados no passado, ainda que tenham enfrentado e enfrentem dificuldades as mais diversas, estão ali vivas em sabedoria e contribuição no tecer do presente. Uma parte considerável delas chegou a acessar cursos para formação em técnicas em enfermagem, residência em obstetrícia e recorrentemente assumiram plantões de médicos e obstetras em hospitais das cidades do interior da Bahia. Essa foi, provavelmente, uma estratégia que visava a “atualização” dos conhecimentos e práticas por um lado, e por outro lado, a resistência e esquiva frente à crescente criminalização e perseguição contra as parteiras por parte de agentes das instituições médicas e do Estado.

As mulheres que pariram contam que desejam o afeto, o respeito, o cuidado e a confiança que emana do modo de partejar das parteiras, bem como querem ter acesso, tanto quanto precisem, a um sistema institucional de saúde mais permeável e que dê conta de cuidar dos seus corpos e de sua saúde de maneira menos invasiva, mais respeitosa, considerando as diversidades. Ouvi muitas mulheres reclamarem dos engessados protocolos hospitalares, por exemplo, o conhecido “sorinho” com ocitocina, a episiotomia, a solidão, o abandono, o desprezo e mais que isso, o racismo com que se dirigem a elas instituições e profissionais de saúde.

As mulheres que conversei e entrevistei, sejam parteiras ou aquelas que pariram em suas casas, nos hospitais, na beira da estrada ou no meio do rio, querem a complementaridade. Elas querem exatamente a possibilidade de uma troca onde suas visões e desejos, suas organizações sociais e culturais, seus conhecimentos e suas práticas sejam respeitadas. As mulheres me diziam a todo o momento que queriam o melhor de cada sistema de conhecimento e prática de parturição, a possibilidade de revisitar e reconstruir suas próprias práticas e entendimentos. Em certa medida é isso que já fazem cotidianamente, como forma de resistência, inclusive. Contudo, é necessário também que nós[5] deixemos de nos colocar no centro, como ponto de partida ou padrão de sociedade (conjunto de valores e práticas). É preciso equilibrar a prática dos verbos ensinar e aprender, não hierarquizar saberes. Elaborar e fortalecer estratégias de valorização de todos os sistemas de construção de significados e práticas de saúde, estratégias não homogeneizantes, as quais não imponham nem suprimam o diálogo dentro da diversidade que constitui o Brasil.[6] Se é verdade que a chamada medicina baseada em evidências, as práticas holísticas de cuidados com a saúde e compreensões e experiências afins têm muito a contribuir com a construção de um novo paradigma e uma nova prática de atenção à saúde reprodutiva, gestação, parto e puerpério no país, não podemos esquecer-nos de incluir nesta construção as parteiras tradicionais, as mulheres negras e quilombolas, as mulheres indígenas, um conjunto de conhecimentos que correspondem a uma medicina ancestral e tradicional, um conjunto de indivíduos que dá cara, cor, nome e trajetória às estatísticas absurdas referentes à morbimortalitadade materna e neonatal, violência obstétrica, crimes de racismo e epistemicídios.

Finalmente, cabe aqui ressaltar que há sim uma escolha a ser feita, uma escolha política, a escolha entre o paradigma da oposição ou o da complementaridade na construção de políticas de saúde. Para além de questionarmos e nos colocarmos contra os procedimentos médicos de rotina que são danosos à mulher, ao bebê e à fisiologia do parto, de denunciar toda e qualquer violência de gênero (inclusive a obstétrica), de imprimir novas ideias e práticas que deem conta de diminuir o numero alarmante de cesáreas no Brasil, de lutar pela possibilidade de parir em casa e por mais casas de parto normal em todo o país; precisamos também defender a saúde pública gratuita e de qualidade, o Sistema Único de Saúde, a inserção das parteiras e de outras profissionais das saúdes populares no SUS, a inserção dos conhecimentos destas mulheres e grupos como aparato de cuidado dentro do sistema de saúde, combater com rigor o racismo e o machismo, garantir que as populações tradicionais continuem vivendo em seus territórios e tenham seus modos de vida respeitados. Não adianta lutarmos apenas pela possibilidade de parir em casa assistidas por profissionais formados nas universidades, o que em grande medida custa caro e é inacessível para a maioria das mulheres e famílias; é preciso politizar ainda mais nossos discursos e radicalizar nossas concepções e reivindicações, é preciso chegar até outras mulheres – todas as mulheres. E é importante, então, pensarmos como estar cada vez mais lado a lado, como garantir que todas as mulheres possam parir sem violência e com respeito e cuidado onde quer que ela escolha (e que ela possa escolher com informação e liberdade), como garantir que as parteiras continuem atuando em suas comunidades e fora delas, como garantir a diversidade na assistência à saúde. E isso se refere à visão sobre o(s) corpo(s), o(s) sexo(s), o(s) gênero(s), a(s) sexualidade(s), o(s) parto(s) e também o(s) sistema(s) de conhecimento(s) e saúde(s). Refere-se também a como vemos a nós mesmas, como nos relacionamos umas com as outras, com nossos filhos e filhas, com o mundo. Cabe aqui refletir e escolher se vamos seguir nos complementando ou nos opondo, nos acolhendo ou negligenciando.

Referências:

ALMEIDA. Alfredo Wagner (org). 2010. Cadernos de Debates – Nova Cartografia Social: territórios quilombolas e conflitos. Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia / UEA Edições.

ARRUTI, José Maurício A. 2008. “Quilombos”. In: SANSONE, L. & PINHO, O. Raça. Novas perspectivas antropológicas. Salvador: ABA/EdUFBA. 315-350.

CLASTRES, Pierre. 1995. Crônica dos índios Guayaki. O que sabem os Aché caçadores nômades do Paraguai. São Paulo: Editora 34.

DAVIS-FLOYD, Robbie E. 1994. “The technocratic body: American childbirth as a cultural expression.” In: Social Science and Medicine, 38 [1]. 1125-1140.

FLEISCHER, Soraya Resende. 2011. Parteiras, buchudas e aperreios. Uma etnografia do atendimento obstétrico não oficial em Melgaço, Pará. Belém: Paka-Tatu, EdUnisc.

FOUCAULT, Michel. 1987. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

FOUCAULT, Michel. 1985. História da sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.

LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes.

MARTIN, Emily. 2006. A mulher no corpo. Uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro, Editora Garamond.

MAUSS, Marcel. 1974. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EdUsp.

TORNQUIST, Carmen Susana. 2002. “Armadilhas da nova era: natureza e maternidade no ideário da humanização do parto.” In: Revista Estudos Feministas, 2 [10]. 483-492.

 


[1] De acordo com Carmen Susana Tornquist em seu artigo “As armadilhas da nova era: natureza e modernidade no ideário da humanização do parto” publicado no ano de 2002.

[2] A pesquisa citada corresponde ao meu trabalho  durante a graduação em Ciências Sociais, o que culminou na elaboração da monografia “As mulheres sabem parir: práticas de parto e políticas do cotidianos em comunidades do Vale do Iguape”.

[3] Modernidade é compreendida aqui, pensando neste contexto e nas questões abordadas, como a consolidação cada vez maior do paradigma médico cientifico (e do modelo médico-hospitalar de parto), inserido na conformação do que Foucault chamou de uma “vida social moderna”, intrinsecamente vinculada à ascensão do poder disciplinar, inclusive dos corpos (1985).

[4] Um processo não muito diferente das mulheres das grandes cidades com as quais eu me relaciono via grupos de discussão e movimentos de ativismo, embora com suas completas e fantásticas singularidades.

[5] “Nós” moradoras/es dos centros urbanos, das regiões metropolitanas, parte da chamada sociedade moderna com seus “atributos” – medicalização, hospitalização, controle dos corpos e da vida, principalmente das mulheres, legitimidade da ciência e do discurso biomédico. Ainda que este “nós” também seja permeado por diversidade, distinções e aproximações, e também desigualdades.

[6] É importante recordar aqui a portaria número 11 de 7 de janeiro de 2015, disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2015/prt0011_07_01_2015.html, que Redefine as diretrizes para implantação e habilitação de Centro de Parto Normal (CPN), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). No § 4º ela diz o seguinte: “A parteira tradicional poderá ser incluída no cuidado à mulher no CPN, em regime de colaboração com o enfermeiro obstétrico ou obstetriz, quando for considerado adequado, de acordo com as especificidades regionais e culturais e o desejo da mulher.”
 

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