A Ciência hegemônica de hoje, a que prevalece, não alcançou prevalência por se mostrar absoluta em seu resultado e seu método. Ela é o resultado do esmagamento de diferentes outros saberes, vivências, visões e a união disso tudo no que chamamos de “epistemologias”. E é extremamente honesto dizer que, infelizmente, essa ciência construída desta maneira é, por si só, racista, machista, branca e elitista. Construída nesta epistemologia positivista, ela desconsidera outros sistemas de saberes. E digo isso sendo cientista – sim, é possível.
Minha formação foi muito cuidadosa: sou graduada, mestra e tenho dois doutorados e tudo isso feito em universidade pública, em excelentes laboratórios de pesquisa. Enquanto bióloga, mestra em Psicobiologia e doutora em Farmacologia eu já nutria um profundo desconforto com a anulação que a ciência hegemônica procura fazer de outros sistemas de saberes. Há, neste fazer científico, uma hierarquização de conhecimentos que subentende explicitamente que algumas epistemologias são valoradas enquanto outras são aniquiladas. Um dos reflexos disso é a distribuição extremamente desigual de recursos financeiros entre as diferentes áreas científicas – você sabe quem ganha mais dinheiro para pesquisa e quem está sempre à míngua na ciência, não sabe?
Foi depois do nascimento da minha filha, questionando os valores que eu defendia de maneira geral e, também, especificamente na Ciência que eu fazia, que vi como profundamente necessário estudar outras áreas e me embrenhar em outros caminhos se eu quisesse realmente entender a complexidade do saber científico e sua interface com as mais diferentes epistemologias presentes nas Ciências. Porque, sim, é imprescindível que falemos sobre Ciência no plural, porque o que temos são diversas Ciências, diversos saberes e, consequentemente, diversos valores. E foi na Saúde Coletiva em sua interface íntima com as Ciências Sociais que encontrei conforto para aquela minha angústia. Foi na primeira disciplina que cursei em meu segundo doutorado, intitulada Ciências Sociais, Saúde e Sociedade, que comecei a abrir minha mente para a diversidade do saber científico. Foi quando conheci o Relatório Flexner e todo seu impacto sobre as escolas médicas, as medicinas praticadas, os valores defendidos por essa medicina ocidental. E tudo isso aprendi a partir de um dos maiores professores que o Brasil já teve e que esteve na base da construção do SUS: Marco Da Ros, recentemente falecido.
Medicamento trata e cura? Pode tratar e pode curar. Mas são as mudanças nos estilos de trabalho, na forma de vida, das condições em que todos vivemos que têm impacto significativo na sociedade enquanto coletivo. Então se você busca uma solução para si, focar na Ciência positivista e biologizante talvez seja um caminho. Mas se você busca uma solução para todos, para o coletivo, então seu olhar precisa ser mais amplo – e não dá para fazer isso ignorando outros saberes. Quer um exemplo? O combate da febre tifóide na Silésia. Rudolf Virchnow, médico social, controlou e extinguiu uma epidemia de febre tifóide na Polônia, isso em 1800 e alguma coisa, sem saber qual era a bactéria causadora e sem recorrer a antibióticos. Como ele fez isso? Reduzindo a carga horária dos trabalhadores de 16 para 10 horas por dia, mandando abrir as janelas das fábricas, proibindo crianças de 4 a 12 anos de trabalhar, aumentando o salário dos trabalhadores para que pudessem se alimentar melhor e construindo casas para a classe trabalhadora próximas às fábricas. Isso é Ciência positivista, hegemônica? De forma alguma. É Ciência? Com toda certeza. É Ciência Social, chamada inclusive de Medicina Social.
Ligia, você está dizendo que medicamentos não são válidos e que a ciência não é válida? Obviamente que uma neurofarmacologista responsável jamais diria isso. Estou dizendo que focar na Ciência positivista não tem impacto à sociedade. O que tem impacto é a mudança social. E para haver mudança social, é preciso conhecer e amplificar os diferentes saberes.
Quando incluímos a perspectiva social nos preceitos médicos e científicos torna-se claro que promover saúde e prevenir doenças não são sinônimos. E nós só conseguimos promover saúde se não aniquilarmos o sistema de conhecimento no qual um determinado indivíduo se vê representado. Saúde não é ausência de doença. E para promover saúde, a Ciência branca e hegemônica não é suficiente quando ela se propõe a aniquilar outras epistemologias. Desconsiderar esse conceito é típico dos cientistas colonizadores.
É, portanto, por isso, entre outros motivos, que considero extremamente problemático chamar de “bobagem” epistemologias diferentes daquela em que você se enxerga. Ser um cientista não dá a ninguém o direito de definir o que é “verdade” e o que não é. Fazer isso significa assumir um lado da ciência: o lado colonizador e – desculpem, mas é exatamente isso – fascista. Atuar em Saúde Coletiva com respeito e eficiência não se faz exterminando o diferente e, sim, compreendendo que não se promove saúde nem se combate doenças aniquilando outros sistemas de saberes. Dá perfeitamente para ser cientista e seguir o método científico e, ainda assim, reconhecer a existência de diferentes epistemologias. O contrário disso é colonizador.
Vou dar como exemplo o curso de Medicina oferecido pela universidade federal em que fiz meu segundo doutorado. São mais de 70 disciplinas, dadas por 9 centros diferentes, ministradas por 11 departamentos. E que, embora muitos não conversem entre si, seguem em sua maioria o pensamento Pasteuriano. É esse tipo de fazer médico-científico que faz com que profissionais da saúde excluam o ser humano que vive uma situação de saúde e apenas discutam CASOS, da seguinte maneira: “Temos uma alteração cardíaca no leito 16”. Não é uma pessoa com uma condição, com sua vivência, sua integralidade. É um número. Não é uma pessoa. É uma doença.
Não foram mais de 700 mil mortes por Covid-19 no Brasil. Foram mais de 700 mil pessoas, amores, amigos, mães, pais, filhos e filhas que morreram. Muda a epistemologia, muda o significado.
Eu sou uma cientista. Fiz dois doutorados, o que, num país desigual como o nosso, é muitíssimo mais do que a maioria da população alcança. Mas não sou uma cientista positivista, que acha que o todo é a somatória das partes. Sou uma cientista marxista, vejo em cada parte, o todo. Não aniquilo saberes só por me dizer cientista. Eu os reconheço como parte da construção da saúde. A saúde é coletiva ou não é. E, sendo, não pode se pretender positivista.
E é por isso que, assim como há uma classe que se sente representada por um título de livro que pergunta se é “ciência ou bobagem?”, não me vejo representada por essa dualidade de pensamento. Mais que isso: considero extremamente arrogante e colonizador chamar de bobagem outras epistemologias. Eu li o livro. Traz reflexões muito bacanas. Porém, incorre numa perigosa fórmula de marketing de reduzir essas reflexões a esse título péssimo e polêmico, porque – claro – vende.
A gente não vai levar a Ciência para o povo nem aproximar o povo da Ciência se pretendendo superior aos diferentes sistemas de saberes. Uma pandemia se passou em que tentamos de todas as formas popularizar a ciência para que confiassem em nós para, mal os corpos esfriaram, chamar de “bobagem” as epistemologias que não nos contemplam?! O que é isso, gente? Calma lá, doutores.
Por fim, quero dizer que, sim, a pandemia de Covid-19 foi controlada perante orientações baseadas no método pasteuriano, positivista e tudo mais. Vacina está aí pra ser tomada e que bom que nosso Sistema Único de Saúde – que tem a integralidade entre seus pilares – pode bancá-la para todos e todas. Porém, enquanto sofríamos tentando sobreviver a uma pandemia, foi justamente nossos diferentes sistemas de valores, de visões de mundo, de particularidades, de, afinal, EPISTEMOLOGIAS, que nos mantiveram vivos até que a ciência positivista pudesse encontrar a vacina. Um viva aos cientistas que dedicaram suas vidas e dormiram nos laboratórios enquanto um vírus tentava nos matar para encontrar a cura. Mas um viva também a tudo que nos manteve – e mantém – vivos em todas as dimensões.
Não podemos, enquanto cientistas envolvidos na formulação de políticas públicas, desconsiderar outros sistemas de saberes. Considerar a existência de diferentes epistemologias não significa adotar todas como diretriz máxima quando o que está em jogo é a Saúde Coletiva. Mas significa que não é razoável classificarmos como bobagens outros sistemas de saberes apenas porque a Ciência branca e colonizadora hegemônica não se vê nela.
Aí depois vem reclamar que o povo não “obedece” à orientação explícita de “ficar em casa para achatar a curva de transmissão”, como se essa ideia pertencesse a todo o povo, como se fizesse parte de todos os saberes.
Menos arrogância. Menos branquitude. Menos colonização.
Mais “vamos ficar em casa para que o motorista de ônibus não morra, fazendo nossas orações se formos de orações, cuidando uns dos outros, enquanto os médicos e as enfermeiras conseguem atender a todos com calma. Confiem em nós, estamos juntos. Não achamos que o que fazem é bobagem. Rezem, conversem com seus analistas, recorram ao que tem significado para vocês, enquanto fazemos o que aprendemos a fazer”. Sou ateia, não faço psicanálise e não recorro à homeopatia, mas não estou em luta contra outros saberes, desde que não desejem minha morte, meu sofrimento e a morte e sofrimento de outras pessoas.
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