Defendi minha tese de doutorado em 23 de outubro desse ano. E desde então não tenho mais escrito. Talvez por estar imersa em outra experiência, ou talvez por precisar realmente dar um tempo para meus neurônios após a intensa atividade de escrita de tese.
Nesses últimos e relativamente poucos dias – pois nem um mês ainda se completou – tenho vivido experiências profundas que me fazem ter a nítida impressão de que muito tempo se passou…
Desde 2001, quando meu amigo Daniel me apresentou aos princípios que norteiam a prática da educação ambiental e, consequentemente, ao livro O Ponto de Mutação, de Fritjof Capra, eu vinha travando uma luta interna entre o pensamento científico tradicionalmente cartesiano, que norteia a prática científica na qual se insere grande parte do meu trabalho acadêmico, e o modelo sistêmico ou holístico, o qual considera as partes de um todo como fatores indissociáveis de uma mesma realidade.
Na verdade, o que aconteceu foi o cumprimento de uma "profecia" a qual me foi dita há 19 anos atrás. A luta interna entre a ciência e a fé. Hoje, estou muito mais pacificada com essa questão. Vejo que não são tão antagônicas assim. Na verdade, que não são nada antagônicas. São, realmente, partes complementares de uma mesma realidade. Já desconfiava disso, embora não conseguisse colocar em palavras, no ano de 1998, quando comprei a Carta Encíclica de João Paulo II "Sobre as Relações entre Fé e Razão". Comprei essa carta encíclica meio que por intuição… eu já buscava algumas respostas sem nem me dar conta disso… Nunca fui católica, nunca tinha ouvido falar em cartas encíclicas, mas o título desta me chamou atenção.
Nunca fui muito dada a discutir profundamente essa questão, uma vez que me falta o conhecimento necessário a isso, mas nos últimos anos vivenciei um grande diálogo interno entre essas duas áreas. Diálogo agora que parece ter cessado… ou diminuído fortemente de intensidade.
A ciência e a fé.
Minha vida foi sempre um constante deslocamento entre os dois lados.
Talvez hoje eu esteja entendendo o que se processa nessa minha experiência.
Estou vendo hoje que eu precisava realmente da ciência para compreender a profundidade da fé. Ter fé, agora sinto, nada mais é do que crer na fluência natural da vida e dos sistemas, no andamento das coisas, na interligação entre os eventos, no fato de que as coisas não são aleatórias – que perdoem-me os descrentes.
Acredito que eu precisava da ciência pra me conectar ao espiritual.
Essa minha hipótese – porque todo cientista que se preze tem sempre uma hipótese a respeito das coisas, por mais bizarras que sejam – tem sido reforçada em função de tudo o que me vêm acontecendo após a conquista do meu título de doutora (parênteses: toda vez que digo essa frase – "a conquista do meu título de doutora" – me sinto um time de futebol. Algo assim como o Corinthians e a Libertadores, a conquista de um título inédito. Tá, não vou tocar nesse assunto. Acabo de ter a minha primeira experiência em estádios de futebol e vivi a traumática experiência de ver o meu timão, de Gordonaldo e tudo, perder de 3 a 1 pro Avaí. Tá, pausa para divagações… voltemos ao tema).
Ando acreditando que o caminho que percorri para conseguir o título de doutora, que até bem pouco tempo era um grande sonho de vida, sem que eu planejasse acabou me levando até a compreensão de que, sim, tem algo mesmo muito poderoso por trás. "As coisas, garota, não acontecem aleatoriamente", como já ouvi uma vez… Existe uma coerência inexplicável entre as diferentes situações, por mais que me seja abstrato demais dizer isso.
Vou contar uma história.
Na terceira pessoa, porque fica mais fácil assim… Aquela história de "um amigo meu me contou"…
Era uma vez uma menina que aos 15 ou 16 anos percebeu que tinha uma vocação para as ciências. As ciências investigativas… porque ela tinha muitas perguntas sobre tudo. Ela vivia uma época bem conturbada de indefinições e mudanças e, talvez por isso (hoje vejo), ela desenvolveu uma forte afinidade por desafios. "Parece que não vai dar? Então eu vou até o final pra conseguir". Mais ou menos assim… E um dia, em meio a eventos familiares daqueles que mudam a vida da pessoa, ela achou que tinha perdido a chance de cursar uma boa faculdade. E aí, mesmo não processando isso de forma consciente, ela sentiu que isso dependia agora somente dela. Era tudo ou nada. E aí essa menina decidiu que o ano de 1995 seria um ano de trabalho árduo voltado a um fim, a um único fim.
Ela acordava bem cedo pra ir pra escola terminar o segundo grau, numa escola pública. A aula acabava, ela esperava a mãe levar as irmãs, pegava a carona, ia pra casa, almoçava correndo, descia a ladeira da Ernesto Setti, pegava o ônibus na Faria Lima, que a deixava a alguns poucos quilômetros dali, no cursinho, que começava às 14 horas e ia até às 18:15. Terminada a aula, ela descia, fazia um lanche, e voltava pro plantão de dúvidas, pra estudar mais um pouco. À noite, lá pelas 22 ou 23 horas, a mãe ia buscá-la, ela jantava, tomava banho e recomeçava a estudar. Num método e numa organização que até hoje ela não sabe de onde surgiram e com que força persistiram durante um ano inteiro.
Prestou os vestibulares do final do ano, entre crises homéricas de "Não vou conseguir!" e conseguiu.
E ouviu do diretor do cursinho, quando soube da aprovação dela na primeira fase do vestibular, que "não se fazem mais vestibulares como antigamente. Como pode uma mulher conseguir a aprovação assim tão fácil"…
E soube somente pra lá do meio do curso de graduação que havia passado em primeiro lugar no vestibular da Universidade Estadual Paulista.
Ela saiu da casa da mãe e das irmãs com 17 anos, onde tinha vivido a vida inteira, pra morar sozinha numa cidade do interior, quando nunca tinha pensado nisso, pois seu objetivo era ficar por ali mesmo. A partir daí, muita gente acha que foi só festa. Que foi só balada, só curtição. Mas só ela sabe o que foi aquela experiência. O desespero de morar sozinha. Não saber lidar com a solidão e com as atribulações de uma vida "por conta". E foi no segundo ano do curso de graduação que ela começou a vislumbrar que queria seguir carreira acadêmica…
Graduada, foi para Ribeirão Preto fazer o mestrado. Teve muitos problemas de ordem metodológica e técnica, o que a deixou um pouco frustrada com a vida da academia e, terminada esta etapa, preferiu não seguir direto para o doutorado e quis ver o que era o mundo fora do jargão e metodologia científicos. Nessa época, um outro lado aflorava: o lado do gosto pelas questões humanas e holísticas, a busca por uma vida menos cheia de cientificismos e mais cheia de valores, de discussões filosóficas, de mudanças de padrões de pensamento. Nesse contexto, a fundação da antes ONG, agora OSCIP, "Ibiré", pelo amigo Daniel Fonseca de Andrade, mestre em educação ambiental, ofereceu a ela a oportunidade de ter contato com uma realidade e uma perspectiva que antes não havia sido possível. E foi quando um novo mundo se abriu à sua frente… O trabalho em Fernando de Noronha com Educação Ambiental trouxe um repertório de experiências que quase não pode ser expresso em palavras. De vivência, de aprendizado, de novos conhecimentos. Talvez o primeiro ponto de mutação experienciado.
Mas algum tempo se passou e aquele gosto profundo pelas ciências investigativas começou a reemergir. E, assim, voltou feliz à academia, para finalmente conseguir atingir o sonho de ser doutora.
Bom, o resto sempre foi bem mais confuso. Família, amigos, vida financeira, com frequência problemáticos. E a vida afetiva? Bom… Um capítulo à parte. Um capítulo meio dramalhão, meio pastelão, meio encontros-e-desencontros, meio piada de mau gosto, meio ficção, meio aventura, meio musical, meio suspense, meio terror, uma verdadeira videolocadora. Mas poucas vezes romance, no sentido real da palavra. Naqueles anos todos, apenas um relacionamento havia sido saudável, havia valido a pena, com respeito e parceria, mas nesse ela não tinha mergulhado de cabeça – o coração e aquela história de razões que a razão desconhece… Ao ponto de, já estando um pouco mais madura, a menina pensar que nessa vida ela tinha vindo mesmo era pra desenvolver suas potencialidades profissionais, pra ensinar, pra dar aula, porque se era isso que dava certo, que ia pra frente, então era isso. Era isso! Esquecer a procura por felicidade amorosa e se estabacar de cara no trabalho, na profissão. Chega de frustrações e sentimentos de menos-valia causados por relacionamentos frustrados. Chega dessa história de querer ter amor de fora! Agora era só trabalho!
E foi quando resolveu abrir mão de tudo pra ser única e estritamente voltada para a ciência, que tudo aconteceu… Aquela história budista de "nada querer para tudo ter" parecia mesmo funcionar. Ciência e fé se embaralhando…
Primeiro foram os amigos.
Ela guardava poucos amigos de longa data. Poucos mesmo.
E quando achou que só na ciência ela encontrava satisfação, surgiram pessoas.
Pessoas que a pegaram pela mão e disseram: "Vem, vou te mostrar um mundo novo".
E mostraram.
Pessoas que diariamente mostravam a ela que a vida era cheia de amor de verdade. Amor que vinha de fora. Amor de pessoas que antes nem se conheciam, mas que agora eram parceiros verdadeiros. Amor de amigo, quase um amor de irmão, às vezes um amor maior que de irmão, dependendo do irmão. Amigos que sentem a sua felicidade e a sua dor. Amigos que dizem "Num si preocupa, nóis tâmo tudo aqui". Amigos que dizem "Qualquer coisa, você vem morar aqui com a gente". Amigos que dizem "Ó, fia, tá aqui a minha mão e o meu apoio; pega e usa quando quiser". Amigos que passam a madrugada com você num dos dias mais importantes da sua vida, fingindo que não estão com sono, só pra você não se cansar e conseguir fazer tudo o que precisa. Amigos que, mesmo estando em Brasília, se preocupam com você, mostram a preocupação, e interferem nos fatos pra que você não sofra. Amigos que, estando duros de grana, te dão um presente lindo porque combinava com um brinco. E tem aqueles que, loucos de coisa pra fazer e de problemas na família, te ligam só pra dizer que não estão ausentes, que estão junto de ti.
E aí você percebe que tem muito mais coisa além da ciência.
Percebe que tem, inclusive, coisa mais bonita, recompensadora e delicada que a ciência.
… e de repente você se dá conta de que foi a ciência que te levou a esse novo mundo…
… você se dá conta de que foi somente quando decidiu mergulhar na ciência que o mundo não-científico se abriu…
Mas e o amor? Aquele tipo conjugal?
Ah, bobagem. Esse não existe como a menina achou um dia que existisse… Deixa ele pra lá.
O negócio é ter amigo e ter a ciência. O negócio é virar doutora. Parar com essa bobajada melosa de parceria, companheirismo, de "seguro tua mão", de "somos dois agora", é pra parar já! Isso tudo não existe. Isso aí é nojeira melosa de Manoel Carlos pra Globo ganhar pontinhos no Ibope. O amor é isso: cada um na sua, cada um por si, meu espaço é meu, o seu é o seu e eles não se cruzam. "Eu te amo"? Ah, esse fica pra próxima. Não tenho tempo pra isso agora.
E realmente pensei isso.
De verdade.
Pensei isso muitas vezes…
Principalmente enquanto eu mergulhava bem fundo na ciência.
Dava até pra fazer um gráfico: quanto mais dedicação ao trabalho e ao pensamento científico eu tinha, mais afastada do amor eu ficava. Ao ponto de pensar que era a ciência, mesmo, o meu caminho. Meu único caminho.
Em 23 de outubro, pouco após as 18:00, eu ouvi uma pessoa falar que "eu havia sido considerada apta a receber o título de doutora".
E em 23 de outubro a minha vida mudou.
Mas mudou como eu não pensava mais ser possível.
Mas mudou numa intensidade e numa velocidade que ainda não consigo processar direito.
Como disse o meu amigo Chico Caprario: "Intensidade e velocidade típicas dela mesmo…"
E aí foi como o sétimo dia da Divina Criação, como dizem os religiosos: a luz se fez!
Foi quando eu me toquei que o meu caminho era mesmo a ciência. Porque era esse o caminho que eu precisava seguir pra encontrar o que eu havia buscado tanto e que, por não tê-lo achado, acabei desistindo.
Era a ciência o caminho pra fé.
Era a ciência que me levaria a acreditar que algo muito maior realmente existe. Que, na realidade, não é pra dentro dos microscópios ou dos HPLCs que devemos olhar pra encontrar as respostas, porque tudo ali é muito pequeno. Que as respostas a gente só vai encontrar olhando pra fora, pro grande, pra vida. É ali que está o mistério. Que dentro do cérebro a gente vai encontrar umas pequenas coisas que, na verdade, só servem de ferramentas para o fim proposto pela vida.
E de repente me toquei também que era a ciência o caminho pro amor.
Tanto que eu precisei ter 31 anos e terminar o meu doutorado pra encontrar esse negócio muito louco chamado amor…
Mas foi assim mesmo, escancarado.
Era como se eu ouvisse a vida, ou o apelido que ela recebe, me falando: "Você conseguiu. Agora, que você alcançou aquilo que com tanta fé e garra e persistência e vontade você se propôs, em 1995, a alçançar, tá aqui o teu quinhão".
E eu precisei ser doutora pra ouvir tanta coisa que eu já tinha desistido de querer…
E foi como doutora também que vi mãos se voltando e se abrindo pra mim. Que vi gente se mobilizando para que eu não passasse aperto. Gente dizendo: "Calma que a gente vai resolver isso", "Calma que vou falar com fulano", "Calma que vou ter uma ideia".
E foi quando eu resolvi confiar na vida de verdade mesmo que os problemas foram sendo resolvidos…
E pela primeira vez na minha vida estou me sentindo realmente protegida.
Então, em função de tudo o que tenho vivido nesse quase 1 mês de doutora, que tem mudado a minha vida e que tem sido o segundo ponto de mutação, quero registrar oficialmente que dentro de mim não existe mais uma dicotomia entre a ciência e a fé.
Sem fé eu não teria chegado à ciência.
Sem a ciência, eu não teria conhecido o poder da fé – seja lá o que ela for.
Fé que nada tem a ver com religião. Fé que tem a ver com confiar na vida, com crença em sua fluência natural e no poder pedagógico das experiências, fé no andamento das coisas, na interligação entre os eventos, fé na não-aleatoriedade das coisas.
Sou bióloga, acredito na Teoria da Evolução, veja só você…