Caro comissário Bruno,

Na última sexta-feira, dia 17 de outubro, estivemos juntos em um voo de Campinas a Florianópolis.

Eu, retornando de um seminário internacional sobre a despatologização da vida. Você, trabalhando como comissário.
Essa é uma palavra estranha – despatologização – e muita gente não a conhece, não se preocupe se você também não a conhecer. Em resumo, despatologizar significa não tornar patológico aquilo que não é; tratar como natural aquilo que é; não interpretar pelo viés médico aquilo que não precisa ter viés médico; não segregar pessoas em função de suas diferenças naturais; incluir; acolher; estar atento ou atenta aos interesses por trás de sentidos, de intenções, de classificações e rótulos.
Fui convidada a participar porque trabalho, também, criando “redes de acolhimento despatologizantes em busca do humano em nós”, que foi justamente o tema da mesa da qual fiz parte. Explico mais um pouco: junto com outras pessoas, preocupo-me em criar redes de apoio e problematização para combater os rótulos, especialmente os rótulos médicos e psicossociais, para que possamos discutir e desconstruir formas de preconceito e discriminação de todos os tipos.
Estava voltando para casa quando encontrei você trabalhando no voo que me levava de volta.
Enquanto aguardávamos que todos os passageiros ocupassem seus lugares, uma família de três pessoas se sentou: mãe, pai e um garotinho lindo e muito simpático de dois anos e meio – sei porque ouvi você perguntando ao pai, de maneira muito cordial, qual era a idade do garoto.
Como o avião demorou um pouco para decolar, ele ficou um tanto impaciente e começou a chorar, tendo em vista a necessidade de que ficasse sentado e com o cinto de segurança atado para a decolagem.
E foi enquanto ele chorava sentidamente que você entrou em cena.
Aproximou-se do garoto e da mãe e disse, dirigindo-se a ele:
– Você quer uma bala? O tio vai te dar uma bala.
Então você abriu o compartimento superior de bagagem e tirou de dentro de uma cesta um pacotinho cor de rosa de balas. Sem titubear, entregou ao garoto. Mas antes de entregar, disse, em tom alto de voz:
– Pode comer tranquilo que não é de mulherzinha não. É rosa, mas é de macho mesmo.

Então o garotinho pegou as balinhas e aos poucos foi parando de chorar.
Bruno, você foi muito cordial em tentar acalmar o bebê.
Muita gente trataria aquela criança com desprezo e rancor – é, eu sei que parece estranho que pessoas destratem crianças em função de um comportamento tão natural quanto chorar, mas acredite, essas pessoas existem, e não toleram choro de criança…
Mesmo que seu comportamento tivesse sido motivado apenas para ter paz, ainda assim você foi cordial. Poderia ter constrangido a mãe, poderia ter repreendido a criança (não, não poderia, mas ainda assim poderia ter feito…), mas preferiu agradá-lo.
A questão, Bruno, é que seu gesto trouxe outros dois problemas. Ao meu ver, muito mais graves do que ouvirmos um choro de criança assustada.

O primeiro, de menor gravidade, foi ter se dirigido ao garoto e oferecido balas sem consultar a mãe ou o pai. Sua gentileza e boa intenção seriam ainda melhores se você tivesse perguntado:
Senhora, será que eu poderia oferecer a ele algumas balinhas para que ele se sinta acolhido?
e, somente após autorização dela (ou não), oferecer (ou não).
Algumas famílias optam por não oferecer alimentos ricos em açúcar a seus filhos. Minha família é uma delas, por exemplo. Não, não se assuste, não somos xiitas nem radicais, embora sejamos ridicularizados assim. Apenas conhecemos e reconhecemos alguns prejuízos do consumo excessivo de alimentos com alto teor de açúcar. Nossos filhos e filhas comem sim, vez ou outra, mas isso deve ser uma decisão nossa, entende? Isso sem falar no fato de que existem crianças diabéticas. E oferecer doce a uma criança que convive com a diabetes pode criar um constrangimento desnecessário.

Mas Bruno, minha principal motivação ao te escrever essa carta não é falar sobre o consumo de alimentos com alto valor energético e baixo valor nutricional como balas (se você quiser conhecer melhor esse assunto, recomendo um documentário brilhante que vai muito além dessa discussão e que se chama Muito Além do Peso, você vai gostar).
Meu objetivo é falar sobre algumas brincadeirinhas que muitos fazem sem a devida problematização e questionamento.
Brincadeiras que a sociedade naturaliza, torna comum e banal, mas que não deveriam ser, pois trazem juízos de valor – ainda que não se tenha pensado sobre eles.

Bruno, qual seria o problema das balas serem para mulherzinhas?
Ou, melhor, por que as balas seriam para mulherzinhas apenas porque estavam dentro de um pacote cor de rosa?
Sim. Tá. Eu sei. Eu sei que não foi isso que você quis dizer. Mas você percebe que, ainda que não tenha querido dizer isso, foi isso o que você disse?
Quando você diz a uma criança “Pode comer tranquilo que não é de mulherzinha. É rosa, mas é de macho“, você, sem querer, diz muitas coias. Você diz:

mulheres são “mulherzinhas”: percebe como isso nos diminui? Existe um filósofo muito sério e relevante na construção e desconstrução do pensamento atual, chamado Michel Foucault, que escreveu justamente sobre como palavras criam e reforçam realidades. Então, quando usamos diminutivos em tom sarcástico – como mulherzinhas – estamos dando um sentido ao termo “mulheres”. Mulheres são “mulherzinhas”. Homens são “machos”. Consegue perceber a diferença de sentido? Mulheres não são mulherzinhas. Homens não são machos. Não é assim que devemos ser definidos enquanto seres humanos.
você também diz que rosa é cor de mulherzinha e se ele for um macho, ele não deve escolher coisas de cor rosa: isso tem um nome, Bruno. Isso é “sexismo“. A divisão das pessoas por seus sexos biológicos e, mais ainda, atribuição de regras e normas diferenciais a esses gêneros, sem qualquer tipo de fundamento. Eu poderia avançar numa longa discussão sobre as consequências do sexismo para a infância e o futuro, poderia te dar muitos exemplos de sexismos que começam com a diferenciação de “rosa para menina, azul para menino” e todos os problemas que muitas pessoas enfrentam por conta dessas atribuições diferenciais artificiais, mas o texto ficaria um tanto longo e não é esse o objetivo agora.
você também diz que ser mulherzinha é um problema, e ser macho é o que realmente vale a pena. Bruno, muitas pessoas estão sendo agredidas – e algumas mortas – por pessoas que realmente acreditam nisso. Não é o seu caso. Sei que estava apenas brincando. Sei que, inclusive, ao aumentar o tom de voz para dizer isso, você quis até descontrair outras pessoas que por ventura estivessem incomodadas com o choro do garoto (elas que parem para analisar porque o choro de uma criança as incomoda, o problema é com elas, lembre-se sempre disso…). Mas você pode ter ofendido outras pessoas ao redor. Como ofendeu… Ofendeu um rapaz que estava duas fileiras atrás de você. Sei disso pelo comentário que ele fez às outras pessoas: “O que esse comissário diria se eu me levantasse agora e dissesse que não so
u esse ‘macho’ ao qual ele se refere com pompas?”
. Ofendeu a mim, que não gosto de ser chamada de mulherzinha. Pode ter ofendido outras pessoas. Inclusive a comissária líder do seu voo (chefe de cabine): uma mulher.

Bruno, olha, eu entendo que foi só uma brincadeira, um modo de falar. Mas quando começamos a prestar atenção nessas coisas, ficam mais evidentes as diferentes formas de preconceitos que nutrimos e direcionamos a determinadas pessoas – especialmente mulheres, homossexuais, negros, pessoas com deficiências e outros grupos sociais que são alvos preferenciais desse tipo de brincadeira. Nesse sentido, também te convido a conhecer um outro documentário – excelente, por sinal – intitulado “O riso dos outros“. Você vai gostar também. Inclusive, se puder, indique-o a quantas pessoas você conseguir. É muito importante. Principalmente no contexto de ódio extremo que estamos vivendo, onde brincadeiras são apenas a ponta de um iceberg que vem violentando muita gente.
Logo após sua gentil brincadeira com o garoto, eu decidi que ia te escrever um bilhete-carta ou o que conseguisse durante a quase 1 hora de viagem que teríamos entre Campinas e Florianópolis. Mas você deve se lembrar do tanto de turbulência que enfrentamos durante todo o voo, que culminou com um pouso um pouco difícil em função do vento forte na ilha naquele momento. Eu tenho um pouco de medo de voar, então não consegui me concentrar para escrever a você. Então faço isso agora, na esperança de que chegue até você, sua equipe e tantas outras pessoas.
Por favor, entenda isso como uma ajuda, um apoio para que você, ainda tão novo, possa repensar algumas coisas ao seu redor e sobre sua participação na construção de um mundo mais justo e menos violento. Que possa se questionar sobre o que a sociedade tem feito com tantas pessoas, disfarçado de brincadeira, de piada e de “ah, é normal”.
Você estava usando um botton lindo – eu quase pedi um de presente, inclusive, só não o fiz em função do nervosismo que estava sentindo frente a tanta turbulência… Nele, estava escrito:

DIFERENTES FORMAS DE AMAR.

Em fundo rosa. Em fundo pink. Lindíssimo! Ficou muito bem em você. Te deu um ar engajado, questionador, respeitoso e em busca de equidade. Teria sido ótimo se você tivesse parado alguns segundos para pensar sobre essa frase. Será ótimo se seus colegas puderem fazer isso.
No vídeo que foi transmitido repetidamente enquanto aguardávamos a decolagem, sua empresa aérea dizia, inclusive, que durante o mês de outubro, alguma aeronaves trarão a cor rosa em sua parte externa, para lembrar a todos que estamos no OUTUBRO ROSA, que simboliza a luta contra o câncer de mama. Se essa ação é realmente eficaz ou não, é uma outra história e um outro texto.
Por hora, Bruno, eu gostaria de te pedir, se eu tiver essa liberdade, que você reflita sobre como estamos nos dirigindo às crianças. Sobre o que estamos ensinando a elas disfarçado de piada, de brincadeira.
Todas as pessoas merecem respeito.
Gostemos de azul, de rosa, de amarelo, roxo ou verde.
Especialmente aquelas que vêm sendo sistematicamente desrespeitadas em seus direitos. Direitos muito sérios. Direitos muito básicos. Direitos que compartilhamos entre todos nós. E que, também por isso, recebem o nome de Direitos Humanos.

Agradeço por sua atenção, Bruno.
Na esperança de que você possa reavaliar condutas e comportamentos.
E que possamos ter um mundo livre de estereótipos, julgamentos, rótulos, preconceitos e discriminações.

Um abraço afetuoso multicor de uma mulher.

Ligia

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