Nesta semana, ouvi na Itapema FM – rádio local pertencente ao Grupo RBS, afiliada Rede Globo –  uma vinheta que chocou-me profundamente. Nela, a colunista Samira Campos, que comanda a coluna “Estilo”, estabeleceu uma comparação extremamente pejorativa, preconceituosa e ridicularizante entre os cachorros franceses e as crianças brasileiras. A colunista não se furtou a mostrar toda sua admiração por ver como lá, na França, os cachorros mostram-se tão mais comportados e educados que as crianças brasileiras. Como não causam transtornos, como não fazem birras, como não fazem pirraças nem correm pelos espaços públicos e “obedecem prontamente aos comandos de seus donos“, ao contrário das nossas crianças. O estabelecimento de uma comparação tão cruel, desprovida de qualquer senso de empatia e de qualquer conhecimento a respeito da infância no Brasil e das inúmeras violações de direitos que tantas entidades brasileiras vêm se dedicando a combater, chocou-me prontamente. 

Isso deveria ser de conhecimento geral, mas infelizmente parece que ainda não é: crianças são especialmente vulneráveis às violações de direitos. E não ser de conhecimento geral não se deve apenas à falta de acesso à informação, mas, em grande parte, à baixa ou nula responsabilidade social e preocupação com o respeito aos direitos humanos por parte de produtores de conteúdo e das mídias em geral. Sim. Crianças são especialmente vulneráveis às violações de direitos. E quando lembramos de que elas não têm voz ativa na reivindicação dos mesmos e dependem sempre de que adultos assumam essa tarefa, torna-se fácil compreender a gênese de tais violações. E compreender essa desigualdade significa promover maneiras de minimizá-la atuando, inclusive, em sua defesa quando assim for necessário.

Vamos falar do Brasil. Não da França. Do Brasil.
No Brasil, 29% das pessoas vivem em famílias pobres. Esse número aumenta para 45% quando se trata de crianças. Crianças negras brasileiras têm quase 70% a mais de chance de viver na pobreza quando comparadas às crianças brancas. Idem para crianças brasileiras vivendo em áreas rurais. Ainda no Brasil: a desnutrição de crianças menores de 1 ano, embora venha diminuindo muito nos últimos 5 anos, atinge ainda mais de 60 mil delas. São bebês que não dispõem do mínimo necessário para suprir suas necessidades alimentares. Sobre as crianças brasileiras e a violência que sofrem todos os dias: são mais de 130 casos notificados diariamente apenas via Disque Denúncia (100). Não estamos falando apenas de violência física. Estamos falando também de VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA. Isso sem considerar as centenas que não chegam a ser notificadas.

Mas para falar sobre violência psicológica é preciso saber do que se trata. Violência psicológica é, também, uma forma de agressão. A mais sutil delas. É caracterizada por comportamentos que subjugam emocionalmente a pessoa que é alvo, tais como humilhação, inferiorização, rejeição, discriminação e todas as formas de ofensas morais. Embora não produza marcas físicas, altera de maneira decisiva a forma como a pessoa se vê no mundo, seu conceito sobre si mesma, produz inseguranças de todos os tipos e uma sensação de inadequação persistente.

Agora imagine tudo isso quando destinado a uma criança. Uma criança vítima de violência psicológica é atingida naquilo que lhe é mais caro: sua representação sobre si mesma, sobre que tipo de tratamento merece, sobre como é vista e tratada pela sociedade. Aquilo que se diz a uma criança e que tem capacidade de impactar negativamente sua autoestima pode perdurar por muito tempo e permanecer na idade adulta. Crianças vítimas de violências psicológicas com frequência se tornam adultos com dificuldades de autoaceitação, ou que apresentam sintomas emocionais como depressão, angústia, medo de conviver com outras pessoas, de falar em público e, quando a violência é persistente, tornam-se mais suscetíveis ao uso e abuso de álcool e outras drogas, lícias ou ilícitas.

Vivemos em uma sociedade que sujeita as crianças, repetidas vezes, à violência psicológica. Uma sociedade que vê como normal e aceitável uma manifestação de preconceito, discriminação, humilhação ou inferiorização das crianças é, em si mesma, uma sociedade que violenta recorrentemente suas crianças. Uma sociedade que permite que crianças sejam vistas como pestinhas, como terríveis, como impossíveis – todos termos recorrentemente utilizados em diferentes situações e dirigidos a elas como se naturais ou aceitáveis fossem -, e não como seres em desenvolvimento, que precisam ser amadas, respeitadas, amparadas, protegidas e cuidadas incondicionalmente, é uma sociedade violenta com as crianças. É uma sociedade composta por pessoas que violam seus direitos. Quando uma pessoa se sente confortável para emitir uma opinião discriminatória, ofensiva, ridicularizante sobre uma criança, é porque ela se sente confortável em viver em uma sociedade idem.

Se hoje contamos com entidades de proteção e defesa dos direitos humanos que protegem pessoas contra ofensas – tais como comparar mulheres a cadelas, ou mulheres a objetos, ou coisas do tipo – por que seria diferente ou menos grave quando isso acontece com as crianças? Por que seria menos violação de direitos comparar crianças brasileiras, por exemplo, a cachorros franceses? Por que uma ferramenta de comunicação permite que uma colunista sinta-se livre e confortável para inferiorizar crianças brasileiras? Uma das respostas possíveis é: porque a sociedade aceita, acolhe e defende esse tipo de comportamento. E é principalmente por isso que os números de violências de todos os tipos praticadas contra crianças, aqui no Brasil, são tão altos. E é também por isso que é tão difícil realizar esforços para a promoção do respeito à infância e da erradicação de todas as formas de violência contra a criança (física, sexual, emocional, psicológica).

Chocou-me ver, mais uma vez, sem qualquer tipo de pudor, uma rádio – supostamente um veículo de produção de informação – sentir-se confortável para emitir opiniões recheadas de preconceitos e discriminações que, sim, podem configurar crimes. Ano passado, outro colunista da mesma rádio (Alysson Müller) já havia se sentido bastante à vontade para, ao final de uma receita de caipirinha, sugerir que os rapazes a utilizassem para impressionar “as periguetes na beira da piscina”. A rádio é pertencente ao mesmo grupo de comunicação que protagonizou na semana passada, por meio de outro seu colunista (Cacau Menezes), episódio lamentável de machismo explícito o qual teve grande repercussão nas mídias sociais, quando apresentou fotografia de uma policial militar catarinense de costas, enaltecendo-a por seu corpo e dizendo que Santa Catarina realmente possuía as “melhores” mulheres policiais.

E por que isso tudo acontece assim, de maneira praticamente invisível e impune? Por coisas como essa que mostro abaixo. 


Porque há uma sociedade, composta por pessoas com esse tipo de opinião deformadora, que enaltece tais manifestações de discriminação. Por pessoas que não veem problema algum em ofender, tentar ridicularizar, inferiorizar ou menosprezar outras pessoas. O mais interessante? Geralmente dirigido a mulheres. Ou a crianças. Ou a outros grupos historicamente desrespeitados em seus direitos.

Vejam.
Ler ou ouvir esse tipo de opinião nos dá a falsa sensação de que o respeito e a “boa educação” – que é aquela que é empática – estão em franca decadência. Mas isso não é verdade. O que há hoje é liberdade de expressão. Que, muitas vezes, é confundida por aqueles que não sabem se portar com empatia e respeito, com abuso e agressão. E que, via de regra, veja que ironia, se baseia justamente no reforço àquilo que tantos de nós buscamos combater. Quando o Sr. Paulo Freitas, por exemplo, me sugere que eu faça uma faxina na minha casa, ele está se apoiando em duas coisas (no mínimo): no machismo explícito existente na sociedade, que tem grande dificuldade para aceitar mulheres com grandes titulações ou em cargos de chefia, e numa subalternização da atividade de “limpar”, cultivada por uma parte da sociedade brasileira. Ele está se apoiando em representações sociais que oprimem e discriminam ainda mais. Ele está tentando, em sua visão de mundo, colocar a mim, “mulher”, “subalterna”, no meu lugar – ou naquele ao qual ele considera que eu pertenço. Para não deixá-lo sem reposta, Sr. Paulo: sim, farei faxina na minha casa, provavelmente logo após terminar de redigir este texto. Porque sim, eu faço. Eu limpo minha própria casa, organizo minhas próprias coisas, pois acredito que isso é o mínimo que todos nós deveríamos fazer: ter a capacidade de cuidar das próprias coisas. E não invariavelmente delegar esta tarefa tão necessária, que deveria ser de cada um de nós, a funcionárias, mulheres, pobres, a que muitos chamam de “empregadas” e que, em grande parte dos casos, são remanescentes de uma relação escravocrata que perdura até os dias de hoje, às vezes disfarçada, às vezes nem tanto. E que a diretora Anna Muylaert, também repetidas vezes vítima do machismo, com maestria retrata em seu premiado filme “Que horas ela volta?“. Então sim, Sr. Paulo, farei uma faxina. Espero conseguir fazer várias, aliás muito mais do que tenho conseguido. E recomendo o mesmo ao senhor, por uma questão de classe, estilo, saúde e justiça social. Mas o senhor tem razão em uma coisa, Sr. Paulo, eu realmente não deveria mais ouvir a Itapema…

É com base neste tipo de comportamento, por exemplo, que as mídias se sentem confortáveis em disseminar má informação. Porque, via de regra, há gente para defender o indefensável. Gente que, talvez, não tenha tido ainda o discernimento e a responsabilidade social tão necessária para refletir sobre questões tão fundamentais quanto os efeitos do preconceito e da discriminação sobre a sociedade. Sobre as relações humanas. Não é de se espantar, por exemplo, que tantos estudos mostrem a íntima relação que há entre o homem que agride a mulher e a família que agride a criança. Violência contra a criança anda tristemente de braços dados com a violência contra a mulher. Quem agride um, via de regra agride o outro. E essa foi fácil perceber, não?

Se as crianças brasileiras são indisciplinadas? Se são impossíveis? Se incomodam?  Se são, comparativamente aos cachorros, seres piores? Não, senhores. Não são. Não porque sejam melhores que os cachorros. Mas porque é absurdo aceitar comparar tais espécies, com realidades e necessidades tão distintas (e me surpreende ter que detalhar esse tipo de coisa…). Se há crianças que vivem sem adultos empáticos, amorosos e disponíveis a acolhê-las, ensiná-las, orientá-las? Agora sim: muitas! Se as crianças não aceitam os comandos de seus donos? Eu sinceramente espero que não aceitem. Posto que não são propriedades ou mercadorias e não possuem “donos” – embora muitos cuidadores estabeleçam com suas crianças este nível de relacionamento. Se falta um olhar amoroso e acolhedor à infância brasileira? Com toda certeza. E é para reverter isso que tantos de nós trabalhamos. 

Se os cachorros franceses e as crianças brasileiras são muito diferentes? Certamente. Não acredito que os dados sobre violência contra cachorros franceses sejam, por exemplo, maiores do que a violência contra as crianças brasileiras… Também não acredito que vivam em piores condições. Para muitas das nossas crianças, a vida é, mesmo, uma vida de cão. Não de cães franceses. Mas de viralatas abandonados nos cantos, doentes e sem apoio.

E como eu acredito que também é uma questão de classe – e estilo – as pessoas perceberem e assumirem seus erros, seria de muito bom tom que a colunista Samira Campos atentasse para seu imenso equívoco. E se desculpasse pela maneira pejorativa e discriminatória com que se referiu às nossas crianças. Inclusive porque, de acordo com a Secretaria de Direitos Humanos, agir desta maneira configura grave violação dos direitos da infância e da adolescência. Passível de denúncia e responsabilização.

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