Parte 1 – A morte e a possibilidade de transformação.
Conversa entre PH e G, 5 anos, no carro, voltando da escola
– Sabia que meu pai morreu?
– O meu também! Ele tinha um machucado na cabeça
e o médico não conseguiu curar e ele morreu
-O meu tinha uma doença na cabeça.
Ele fez muitas operações e um dia ele morreu.
– Eu acho que o meu pai tá lá no céu, e o seu?
– O meu tá no cemitério, mas eu acho que ele virou
uma estrelinha e está olhando a gente.
Fim.
Vocês já perceberam que sempre que tem uma criança por perto, qualquer assunto que contenha o verbo “morrer” em geral é dita baixinho? Na maioria das vezes, é seguida de um “shhh”, de um arregalar dos olhos, de uma mão escondendo a boca, de um cochicho ou até mesmo de uma saída de fininho ou de uma mudança de assunto. Perguntas do tipo “Mãe, você vai morrer um dia?” ou “Eu vou morrer?” estão no topo da lista das “Perguntas que não gostaríamos de ter que responder para uma criança”.
E por que isso acontece? Desde que o mundo é mundo, pessoas nascem, vivem e morrem. Ou nascem e morrem. Ou morrem durante o nascimento. Ou morrem antes mesmo de nascer. Pensando friamente, é a maior certeza da nossa vida: todos morreremos. Gostemos ou não dessa ideia.
Mas então, por que é tão difícil falar sobre a morte com uma criança? Por que, por uma fração de segundos, temos vontade de responder “Não, mamãe não vai morrer” ou “Por que você está pensando nisso, que bobagem!”? Porque em nossa sociedade, a morte está associada a sofrimento. E isso é algo perfeitamente compreensível. Quando vivemos uma situação de morte, ficamos tristes, sentimos falta, sentimos pena, eventualmente, sentimos raiva, medo, angústia, dor. Para além disso, a morte nos faz lembrar da finitude da vida e nós não queremos que ela termine. Dependendo da situação em que essa morte ocorreu, lembramos – e sentimos – a injustiça, a violência, a doença, a agonia, a fragilidade, a vulnerabilidade e a frustração. Não fosse suficiente, a morte muitas vezes exige mudanças na nossa vida, na vida de nossa família, na reorganização financeira, profissional e nas nossas relações em geral. E tudo isso gera, com frequência, sofrimento.
No entanto, se a gente considerar que morrer é só o “ponto final” – ou, para algumas pessoas, “uma etapa” de um processo que começou com uma concepção, um nascimento ou até mesmo um sonho (o desejo por um filho ou um neto, por exemplo) – é possível começar a se olhar para essa vivência de uma outra perspectiva. E as crianças nos ensinam muito sobre isso.
“Pai, que dia que eu vou morrer?”, perguntam sem cerimônia no meio do almoço. “Mãe, no dia que você morrer, eu posso ficar com o seu batom?”, perguntam, inocentemente, demonstrando interesse por algo que gostam muito. “Você sabia que meu pai morreu?”, contam para qualquer pessoa que encontram pela frente – da professora, passando pela moça da padaria e até para o vizinho dentro do elevador. “Mãe, eu já sei o que a gente podia fazer na missa da bisa quando ela morrer! Eu vou falar pra todos os meus amigos irem na igreja pra gente brincar e…”, fazendo planos animados para quando chegar o dia de se despedir da bisa – que aliás, como é velhinha, ela já imagina que está próximo. “Você fala que eu nunca vou poder andar de moto, mas no dia que você morrer, eu vou comprar uma moto e vou andar todos os dias e você nem vai ficar sabendo!”, respondem com um ar desafiador de quem finalmente encontrou uma solução para quebrar uma regra.
Mas por que crianças falam com tanta normalidade sobre algo que nós sabemos que é tão difícil? Por que crianças são “concretas”. Quanto mais novas elas são, maior é a necessidade de viverem no presente, sendo o passado um tempo que existe por em função de lembranças, e o futuro ainda não existe ao certo, isto é, a não ser que exista um plano concreto para uma viagem, um passeio, uma festa etc.
Por esse motivo, elas falam com uma naturalidade que as vezes chega até a incomodar. Mas isso acontece exatamente por que crianças só irão formular para si o significado da morte conforme falam, sentem e vivem a ausência no dia-a-dia. E será no dia-a-dia que essa vivência mais concreta da perda, da ausência, da saudade, vai ganhando contornos, sentimentos, simbologias e significados.
Mas e quando a morte bate em nossa porta e nos leva uma pessoa muito próxima e querida? Como abordar o tema com uma criança, em especial, aquelas que ainda são pequenas? Bem, por mais doloroso que seja para nós, adultos, falarmos a respeito, é importante lembrar que estamos falando de um fato da vida e, portanto, precisamos usar a mesma linguagem que utilizamos para falar sobre todos os demais fatos cotidianos da vida: devemos usar palavras que elas entendam e devemos deixá-las perguntar. Só assim vamos saber o que ela já sabe sobre o assunto para, então, respondermos pontualmente suas dúvidas. Em resumo, devemos mais escutar e responder perguntas do que propriamente falar. E, assim como acontece quando falamos sobre vida, falar sobre morte não é algo que se esgota num único dia ou em uma única conversa. O assunto irá voltar muitas e muitas vezes ao longo dos próximos dias e anos, de acordo com o amadurecimento da criança, conforme ela for ampliando seu conhecimento em relação ao mundo.
Quando a morte está iminente ou já aconteceu, o sofrimento na hora de contar para uma criança é inevitável e essa talvez seja a notícia mais dura. Primeiro, porque nós estamos sofrendo e a criança obviamente está percebendo. Em seguida, por que nós gostaríamos de estar em qualquer lugar do mundo, menos ali, naquele momento, falando sobre isso para ela. Enfim, não há uma pessoa nesse mundo que goste de dar a notícia de uma morte, sobretudo, para uma criança e, principalmente, sobre a perda de alguém que ela ama. Então, nessa hora, o mais importante é saber que nós precisamos ser legítimos, verdadeiros e coerentes com o que estamos falando e com os nossos sentimentos.
Mas, como é isso?
Quando eu estou muito alegre, feliz ou contente, meu corpo transmite essa alegria. Minha fala transmite essa animação. As escolhas das minhas palavras mostram para quem está ao meu lado que eu estou contente. Muitas vezes, eu nem preciso falar para que os outros saibam o quão alegre e animada eu estou. O mesmo quando eu estou tensa. Ou quando estou preocupada. Ou quando estou triste ou quando eu estou arrasada. E é essa coerência entre sentimento e manifestação corporal e verbal que tem que ser legítima. Se eu começo a chorar mesmo antes de falar e/ou se eu falo com a voz falhando ou embargada pela emoção, então isso está coerente. Por que a morte gera isso no nosso corpo e na nossa mente e isso não tem que ser escondido ou evitado. Para uma criança entender o que é a morte ou a perda de alguém, ela também precisa entender e sentir o que essa vivência gera, não somente nela, mas nas pessoas próximas à ela.
Mas, e quando uma pessoa está em choque, desconectada, desorientada com a notícia? Nesse caso, uma outra pessoa próxima pode – e deve – assumir a difícil missão de falar sobre a morte para proteger aquele adulto que está em sofrimento agudo e incapacitado de interagir, além de proteger a criança que está entrando em contato com a morte concreta pela primeira vez.
Mas não é um problema a criança nos ver tristes ou arrasadas? Isso não pode traumatizar? Talvez aqui, então, venha a boa notícia: de todas as notícias difíceis que estão sendo dadas para a criança naquele momento, escutar a notícia da perda de uma pessoa que ela ama vindo de uma outra pessoa que ela ama, de forma sincera e coerente, fará com que se sinta acolhida, apoiada, ouvida e respeitada neste momento, minimizando o sofrimento. E certamente fortalecerá a relação entre o adulto e a criança.
É importante sempre lembrarmos que nós, os adultos, somos parte fundamental da vida da criança e a ajudamos a entender o mundo em que ela vive. Nós apresentamos o mundo para elas desde bebezinhas. E nós continuamos a apresentar o mundo para elas por muito tempo ainda. E nós apresentamos o mundo sempre que mostramos algo. E sempre que sentimos algo. A criança aprende com aquilo que ela vê, escuta, e com aquilo que ela sente em relação ao mundo e em relação às pessoas.
Além disso, ao falarmos sobre a morte, temos a grande oportunidade de falar com a criança sobre sentimentos. Então, eis um momento em que também é possível se falar sobre sentir-se feliz e sentir-se triste. Sobre sentir medo e se sentir seguro. Sobre sentir raiva e sobre sentir alegria. Além disso, é possível falar sobre muitos outros fatos da vida, tais como, nascer, crescer, adoecer, curar-se, envelhecer. Falar sobre os caminhos da vida, sobre rituais (lembrando que cada pessoa/família irá abordar de acordo com sua crença e/ou religião ou até mesmo da perspectiva da ausência de crença e religião) e também falar sobre carinho, sobre cuidado e sobre amor.
A morte nos afasta fisicamente de uma pessoa querida, mas ela não consegue tirar a pessoa de nossas vidas. Ainda que ela não esteja mais presente no nosso dia-a-dia, ela estará presente na nossa história, nas nossas memórias, nas nossas escolhas e em quem nós somos. Por isso que são tantos os rituais que temos após a morte de uma pessoa querida e as crianças têm uma percepção incrível para nos ajudar a elaborar essa nova fase da vida com ideias do que podemos fazer para preservar a memória daquela pessoa perto de nós. Desenhos, muito desenhos. Músicas e histórias. Caixinhas com cacarecos. Fotos, roupas, brinquedos, plantas, orações, altares. Basta provocá-la com a ideia de guardar memorias que um novo mundo de lembranças se abrirá na sua frente, concretizando a ausência física, porém, eternizando a memória e garantindo uma presença eterna na vida de vocês.
Mas não é muita coisa para ser falada, para ser feita com uma criança? Sim, é. Mas, como já dito antes, isso tudo não será dito de uma vez só. Esses são assuntos que ficarão indo e vindo ao longo de muito tempo. Serão várias as situações em que a criança irá retomar as informações que ela já possui, até como forma de se certificar sobre elas, além de muitas situações em que novas perguntas serão feitas para esclarecer informações novas que ela ouviu, sentimentos que ela descobriu (o medo de uma outra pessoa próxima morrer, o sentimento de saudade que ela descobriu), dentre outros fatos.
De todo modo, o mais importante é saber que essa criança que está passando concretamente pela experiência de perda, já não é mais a criança que ela era antes. E já é diferente das demais crianças de sua idade ou de seu entorno. Essa é uma criança cuja vida “atropelou” com uma vivência concreta, intensa, triste, mas que, ao mesmo tempo, lhe proporcionou o desafio de começar a compreender o mundo de uma outra perspectiva. E se não podemos mudar o rumo da história com relação à perda, podemos dar um outro sentido para essa vivência. Tudo isso, sempre tendo em mente que, ao ajudá-la a compreender esses fatos, nós também estamos tendo a oportunidade de nos modificarmos e de aprendermos uma nova forma de lidar com esse mistério que se chama vida.
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Próximo texto: Parte 2 – Lidando concretamente – o que fazer
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Este texto foi publicado mediante financiamento coletivo de leitoras e leitores e apoio do Instituto Alana.