Clara dando sua primeira engatinhada, no seminário sobre Mulheres e Gênero (…),
um dia depois de deixar, definitivamente, a vida de farmacologista
(com Yanne e Caetano, amigos dela desde que nasceu)

Esse é o texto onde conto como estou abandonando minha carreira de doutora em farmacologia. De como estou tendo a coragem para fazer um novo doutorado, depois de 2 anos como doutora e com uma filha de 10 meses. É um grito pra todo mundo que quer mudar a vida mas acha que não dá mais, que tá muito velho pra querer começar algo do zero de novo. É longo e, portanto, não tenho a pretensão de que muitas pessoas dediquem seu tempo a lê-lo. Mas escrevo para marcar o fim de uma etapa. E começo de outra.

Venho falando, de maneira solta, nas entrelinhas ou indiretamente, sobre estar mudando de carreira. Mencionei isso em alguns posts, mas sem entrar em detalhes. Eu não havia falado com todas as letras antes por alguns motivos, inclusive porque estava fazendo um pós-doutorado e não sabia como fazer a transição de maneira tranquila. Mas agora que a transição se fez, me sinto livre para contar tudo.

Fazer ciência sempre foi um amor grande na minha vida. Mas logo que terminei o doutorado, fiquei grávida, e conheci um outro grande amor. Numa fase em que eu estava para prestar concurso público para docente nas universidades públicas… Tive que cancelar minha participação em vários deles, em função do avançado da gravidez e de não querer passar por mais estresse ao final dela – e porque eu já não sabia mais se era por aquele caminho que eu gostaria de seguir. Eu não tinha certeza ainda, mas algo estava mudando dentro de mim – além de um corpinho estar se formando. Algo estava mudando num lugar mais fundo que o útero.
Sem conseguir entender direito o que estava mudando, ainda grávida escrevi dois projetos de pesquisa de pós-doutorado. Um, aos 7 meses de gestação e o outro, aos 9 meses. Quando eu entrei em trabalho de parto, inclusive, estava terminando de escrever esse último. Das 29 horas totais de trabalho de parto, 4 eu passei escrevendo o projeto, porque não estava convencida ainda de que eram contrações as (ainda) pequenas dores que eu estava sentindo.
A Clara nasceu e quando ela fez 3 meses, recebi a notícia: o primeiro projeto havia sido aprovado. 1 ano de bolsa – uma ótima bolsa, que salvaria a lavoura – prorrogável por mais 1, no laboratório onde eu havia feito o doutorado, com minha antiga orientadora. Aceitei. Quando completaria 1 mês nesse projeto, a notícia: o segundo projeto também havia sido aprovado. 5 anos de bolsa – também uma ótima bolsa – numa empresa de biotecnologia. Fiquei muito indecisa entre continuar na área de pesquisa que eu sempre havia gostado – neurociência – com uma bolsa de 1 ano, ou mudar para uma nova área, totalmente diferente, com uma bolsa de 5 anos. Se eu fosse solteira e não tivesse minha filha, teria ficado na primeira. Mas como tudo muda, aceitei a segunda, pensando na estabilidade financeira
Foi um imenso sofrimento por ter que deixar minha filha todas as manhãs para ir para o trabalho, mesmo ela ficando com o paizão dela. Eu chorava pra sair de casa, no trabalho ia para o banheiro chorar, meu peito doía muito ingurgitado de leite – que eu não tirava pra poder acumular e ter o suficiente pra ela mamar quando eu chegasse e pra guardar pra manhã seguinte -, isso me dava dor de cabeça, sem falar que eu acordava umas 2 ou 3 vezes na madrugada para amamentar, mesmo tendo que estar de pé às 6 da manhã do dia seguinte. Foram 6 a 7 meses assim. Nesse sofrimento. Voltava do trabalho e não tinha muito pique pra nada, porque babava de sono. Só tinha pique pra ficar com ela abraçadinha ou passear com ela, o resto ficava no maior caos universal.
Juntamente com isso, algo de muito importante me aconteceu.
A maternidade me tornou uma pessoa muito empática ao sofrimento dos outros, muito mais do que eu já era. E eu passei a ser muito mais sensivel a todo tipo de causa. De chorar ao ouvir alguma coisa emocionante. De me envolver emocionalmente mesmo. E, nessa, entrou a questão da experimentação animal. Eu sempre havia trabalhado com observação do comportamento natural de roedores. Observava como eles se comportavam e tentava fazer analogias e extrapolações neurobiológicas. Era uma relação de imenso respeito aos animais. Sempre fui muito ética nessa questão, sempre. Mas depois que a Clara nasceu, eu não conseguia nem mais ler um protocolo que envolvesse experimentação animal de qualquer tipo. Cheguei a chorar duas vezes, lendo descrições de experimentos.
E aí um dia eu realmente entendi: eu havia mudado. De maneira irreversível. E se a Farmacologia ou outra área da pesquisa experimental biológica utilizava animais, então ela não era mais pra mim.
Junta-se a isso o fato de todo o processo subjacente à pesquisa farmacológica ser realizado de maneira, na minha opinião, desumana. Animalesca. Jogos de egos, jogos de vaidades, quem publica mais, quem obtém mais números, criando pessoas arrogantes e nada admiráveis por trás de seus títulos, com a qualidade do trabalho sendo avaliada por índices de impacto que mais afastam a pesquisa da população que o contrário.
Da população… a verdadeira financiadora de tudo.
Sempre me questionei sobre isso. Se é o imposto da população que paga a minha bolsa, então eu devo algo sim a ela. Eu devo satisfação. Eu devo resultados que melhorem REALMENTE a vida dela. Já. Agora. Nessa geração. Isso sempre me deixou insatisfeita em minha área… Por isso eu me enfiava em tudo que era ação que tentava divulgar a ciência para a população.
Então, juntando tudo isso, comecei a sentir que aquela não era mais a minha área, que não me fazia mais feliz, que não me realizava como profissional, como pessoa.
Mas eu não sabia como dar o salto, nem pra onde saltaria… E passei por todas as fases de uma “morte” mesmo. Passei pela negação, pela raiva, pela barganha. Até chegar na aceitação.
Sabia que não queria largar a ciência, esse grande amor. Mas não sabia como me encaixar mais nela… Nem como encaixá-la na minha nova vida de mãe. De mãe consciente. De mãe at
iva. De mãe preocupada com as questões do parto. De mãe que gostaria de ver todas as mulheres sendo respeitadas em suas escolhas. De mãe que gostaria de ver outras mães sendo empoderadas em seus partos, em suas vidas, em suas famílias. De mãe que se conscientizou de que tem coisa muito mais importante na vida.

Entre minhas novas amizades, estão algumas mulheres que sofreram algum tipo de desrespeito no momento do parto. Eu comecei a ouvi-las e a me indignar. Eu, que sempre assumi meu coração batendo do lado esquerdo do peito, em prol de causas justas e de minorias – é, esquerdista, não nego, assumo.
Sim, eu também tremo de indignação perante uma injustiça no mundo. Fazer o Chê
Comecei a me interessar por isso exatamente quanto saiu a tal da pesquisa da Fundação Perseu Abramo, conduzida pelo professor Gustavo Venturi, que constatou que 1 a cada 4 mulheres é vítima de violência no momento do parto. Foi inclusive por meu interesse nesse assunto que as mulheres da lista de discussão sobre parto humanizado e maternidade consciente da qual participo me mandaram para São Paulo representá-las, no evento onde essa pesquisa seria apresentada.
Nesse momento, o prêmio L’oreal Para Mulheres na Ciência, prêmio anual conferido pela UNESCO, L’oreal e Academia Brasileira de Ciências a mulheres recém-doutoras, estava com inscrições abertas. Enchi-me de coragem e resolvi escrever um projeto de pesquisa sobre a ocorrência de desrespeito no parto e mandar para o prêmio. Só que eu precisava de alguém de dentro da universidade para assinar um documento. E foi assim que eu consegui um novo parceiro, um professor muito bacana do Departamento de Saúde Pública da UFSC, que não só assinou o documento como se mostrou muito interessado no tema.
Então eu varei madrugadas e madrugadas e madrugadas escrevendo o projeto. Estudei muito. Li muito. Dezenas de artigos. Me emocionei diversas vezes com relatos dramáticos de extremo desrespeito a mulheres. Me vi em cada uma. Eu, que vivi uma experiência respeitosa… Fiquei muito comovida. E por isso escrevi o melhor projeto que eu poderia escrever, com dedicação, com respeito, com força.
E acabou que o projeto ficou bacana, bonito e realmente relevante.

E aí um dia, voltando do trabalho, dirigindo, vi na minha frente, estampado, qual era o meu novo caminho. Vi que, sem planejar por aquilo, eu havia construído uma nova possibilidade. E, essa sim, tinha um coração.
Foi como ver a solução para o problema pintado na minha frente.
Arregalei os olhos, estufei o peito e disse: É ISSO.
Na mesma hora, peguei o telefone e liguei pro marido: “Eu já sei! Eu já sei! Foi como se me falassem no ouvido. Eu já sei o que eu vou fazer! Eu vou fazer doutorado de novo!”.
Sinceramente? Eu esperava como resposta um anúncio de internação…
Mas quando ele me respondeu: “É isso o que você acha que tem que fazer? Então faça. Não dá pra viver insatisfeita como você tem estado. Tem que se gostar do que se faz, você tem que ser feliz“, eu vi que estava no caminho…
Em 15 minutos eu cheguei em casa, olhei pra Clara e disse: filha, a mamãe já sabe o que precisa fazer.
E enquanto eu a amamentava, ia explicando a ideia pro marido, que achou bacana.
A ideia: fazer um doutorado no programa de Saúde Pública, onde o professor que havia se disposto a assinar o projeto pro prêmio dava aula.
Então, marquei uma reunião com ele e perguntei, no maior óleo de peroba, se ele achava viável e se aceitava me orientar.
E ele topou!
E eu vi que tem mais gente doida no mundo do que eu podia imaginar. Ainda bem.

Entrei na página do programa e vi – para minha imensa alegria – que o edital de seleção estava pra sair.
Aguardei 1 mês e o edital saiu. E a surpresa: uma prova com 30 questões. Em Saúde Pública.
Eu, que nunca tinha estudado nada a respeito, ainda teria esse desafio pela frente.
Dei uma desanimada…
Como passaria numa prova sobre algo que nunca tinha estudado na vida? Mais de 100 páginas de bibliografia sugerida. Eu, que mal dormia… Como iria estudar tudo aquilo?
Bom, não sei como, mas consegui estudar alguma coisa. Mas apenas uns 30% de tudo que precisava.
No dia da prova, que foi esse dia aqui, eu saí do trabalho correndo, passei em casa, nós três nos enfiamos voando no carro, marido foi dirigindo pra eu poder ir amamentando, ele me deixou no departamento e seguiu cuidando da Clara, mesmo no horário de trabalho dele. Ele foi muito parceiro nisso…
Sentei na cadeira e esperei a prova começar.
Cinco minutos antes de começar, liguei meu celular e vi a foto da Clara. E pedi pra Santa Clara clarear os meus caminhos, para que me acontecesse o melhor.
A prova começou.
Li a primeira questão e quis me atirar pela janela. Tive a impressão de que não era nem português. Aí logo identifiquei que era nervosismo, tratei de me acalmar e decidi ler cada questão e destrinchá-las até encontrar a resposta.
Terminei a prova. Saí com uma sensação de: “ou fui muito bem ou zerei” – sensação que me acompanha desde os primórdios da evolução humana.
Naquele dia mesmo, sexta-feira, dia 03 de junho, a noite, saiu o gabarito. E eu passei…
Agora sim o projeto seria lido e analisado. Porque a prova era eliminatória, quem não acertasse 18 questões estava fora, não teria nem projeto nem currículo analisados. E não é que eu passo?!

Isso era uma sexta-feira e eu ainda estava no pós-doutorado.
Na terça-feira seguinte, sentei pra conversar com a equipe de trabalho. Elas precisavam de alguém que não tivesse filhos ou família e que pudesse estar em lugares diferentes. E eu precisava me desvincular. Então conversamos e conciliamos tudo.
Saí dali naquele dia com a sensação mais maravilhosa de incerteza. Eu, que sempre gosto de ter certeza sobre tudo… Saí sem saber se realmente daria certo todo aquele plano. Mas saí feliz. Saí com a sensação de que estava indo para a felicidade.
E foi assim que eu resolvi abandonar a minha carreira de pesquisadora em Farmacologia…

Eu sei que nunca devemos dizer nunca. Mas no que depender de mim, eu não pretendo voltar a um laboratório de farmacologia por outro motivo que não seja visitar os amigos ou discutir assuntos do meu interesse pessoal. Sem experimentação animal. Nunca mais.
Eu demorei 13 anos entre me formar, fazer um mestrado e um doutorado. E levei alguns poucos meses pra saber que era tempo de deixá-lo ir…

O processo seletivo para o doutorado da Saúde Pública está em andamento. Está na fase de análise do projeto, fase também eliminatória. Depois, virá a análise do currículo. O resultado está previsto para sair dia 21 de junho. Eu poderia estar repetindo o mau comportamento de outras experiências e me descabelando e pensando “meu Deus, e se não der, o que eu vou fazer?!”, bem doida, bem descontrolada. Mas dessa vez resolvi “deixar a vida vir até mim”, como disse uma mensagem que minha mãe me mandou esses dias. Resolvi parar de querer controlar tudo, numa missão fadada ao fracasso. Tenho dormido bastante com a Clara de manhã cedo, aproveitando o quentinho das cobertas com ela, nesses dias super frios aqui do Sul. Tenho arrumado as coisas aqui em casa como eu gostaria de ter arrumado em todo esse tempo de doideira. Tenho estado com ela todo o tempo – e o padrão de sono dela já mudou, eu já percebi. O sono dela está mais tranquilo e profundo.
Enfim. Tenho a sensação de que estou onde deveria estar, agora…
E, como a vida é uma coisa muito, muito linda, no dia seguinte à minha saída do pós-doutorado e com a decisão de abandonar a carreira de farmacologista tendo sido tomada, eu e a Clara fomos juntas assistir à apr
esentação do estudo da Fundação Perseu Abramo, “Mulheres e Gênero nos Espaços Público e Privado Brasileiros”, apresentado pelo Gustavo Venturi, que eu já havia tido o prazer de conhecer e com quem pude conversar mais um pouquinho.
Vejam só que coisa… eu e minha filha, juntas, no seminário sobre gênero que apresentou os resultados que ajudaram a mudar a minha vida.
E foi ali, naquele auditório do SESC-Cacupé, no mesmo local onde acontece o Bazar Coisas de Mãe, que foi criado para congregar mulheres que redirecionaram suas carreiras para estar mais tempo com os filhos, num seminário que apresentou dados mostrando que 1 a cada 4 mulheres é vítima de violência no parto, que eu coloquei minha filha no chão… e ela saiu engatinhando pela primeira vez…

Parei de assistir ao seminário, corri pra pegar o celular e consegui filmar a primeira engatinhada dela, firme e segura como se tivesse feito aquilo sempre.

Ela esperou eu firmar meu passo pra firmar o dela.

E agora vamos caminhar juntas.

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