Para tornar este texto mais prático e útil, ele se encontra dividido em tópicos, cujos subtítulos julguei importante existir em função da relevância de sua abordagem nos diferentes materiais que consultei para elaborá-lo. Procurei atentar para questões que, em minha interação com mães, pais e cuidadores, e também por meus conhecimentos como doutora em Saúde Coletiva com foco no impacto da violência sobre mulheres e crianças, parecem ser os mais passíveis de dúvidas e angústias. Assim, neste texto você encontrará respostas para as seguintes questões:

1) O que é o abuso sexual na infância? Ele atinge mais meninas ou mais meninos?

2) E quem são os abusadores? Como a sociedade é conivente mesmo sem querer ser?

3) Quais são os principais tipos de abuso sexual contra as crianças?

4) Como identificar possíveis sinais de que a criança está sendo abusada ou foi abusada sexualmente?

5) O que fazer após a suspeita ou descoberta do abuso sexual contra a criança? A quem recorrer, para onde ir?

6) Todo caso é notificado? Todo caso é denunciado?

7) O que uma família e a sociedade podem fazer para amparar uma criança que foi abusada de forma a contribuir para sua resiliência?

8) Breves considerações sobre prevenção

Abuso sexual na infância: eis uma questão delicada. Delicada na mesma intensidade de sua profundidade, complexidade e relevância. E que precisa ser discutida sempre, de maneira séria e premente. Tornar-se mãe, pai, cuidadora, cuidador, interessado em uma infância respeitada, traz de maneira imediata a preocupação sobre como podemos proteger as crianças contra possíveis abusadores, como identificar que elas estão sendo desrespeitadas no direito à sua integridade física, emocional e moral, como conseguir identificar sinais, entre tantas outras questões que vêm à mente quando o assunto é abuso sexual. Especialmente nos dias de hoje, em que sobra informação e falta conhecimento. Em que sobra barulho e falta reflexão.

Como mães, pais e cuidadores não especialistas no tema, acreditamos que sabemos muito sobre isso. Que sabemos identificar, que sabemos observar as crianças, que sabemos como protegê-las de “estranhos mal intencionados”, de gente perversa. Não é verdade? E devorar dezenas de links, páginas, imagens e reportagens sobre o tema só aumenta a nossa falsa sensação de controle. Quando, na verdade, não sabemos tanto assim, não conhecemos tanto assim, não controlamos tanto assim. Uma das maiores provas disso é justamente o conceito errado que acabo de ressaltar: gente mal intencionada ou perversa que assume o papel de abusador sexual de crianças não é um estranho. Não mora no bairro ao lado ou será encontrado de supetão na rua. Não é isso o que acontece em mais de 80% dos casos de abuso sexual contra crianças. O abusador, na grande maioria dos casos, mora dentro de casa, ou a frequenta como pessoa de confiança. Ele está dentro da casa das crianças. E somente este fato já ajuda a explicar em grande parte o motivo de ser um assunto tabu, ou que se mostra cercado por segredo, ocultação, medo, entre outras práticas que ajudam a manter o ciclo da violência sexual contra a criança. Mas não podemos permitir que ele continue a ser tabu. Isso contribui para que, no Brasil, a cada dia, 165 crianças ou adolescentes sejam abusados sexualmente, ou 7 a cada hora. Precisamos falar sobre isso, precisamos discutir o assunto, precisamos tirar as vendas dos olhos e estar incondicionalmente ao lado das crianças.

1) O QUE É O ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA? ELE ATINGE MAIS MENINAS OU MAIS MENINOS?

 O abuso ou violência sexual não implica apenas no contato sexualizante com os genitais das crianças ou destas com os genitais dos adultos e, de fato, grande parte dos abusos ocorrem sem que isso aconteça. De acordo com a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência, uma situação de abuso ou violência sexual na infância é aquela que envolve a criança como objeto de satisfação erótica e sexual de um adulto ou adolescente mais velho e envolve não apenas contato com os genitais, mas também toques em regiões inapropriadas, insinuações verbais, exposição à pornografia, prática de voyeurismo, exposição a locais e situações com apelo erótico ou sexual, exibicionismo, entre outras condições em que a criança esteja sujeita à presença de elemento sexualizante. Quando essas práticas acontecem tendo como alvo crianças menores de 14 anos, configura-se a prática do abuso sexual na infância. 
 

É, sem qualquer dúvida, uma das formas mais graves e complexas de violência contra as crianças, atingindo-as quase de maneira universal, presente em todos os níveis sociais, em todas as culturas, religiões, etnias e gêneros. Segundo a Organização Mundial de Saúde, o abuso sexual contra crianças é um dos maiores problemas de saúde coletiva no mundo. No entanto, em função da grande disparidade entre as diferentes regiões, e também da dificuldade de reunir todas as informações científicas disponíveis, a frequência de ocorrência entre as crianças varia de maneira acentuada. Hoje, aceita-se como representativo que entre 7 e 36% das meninas e entre 3 e 39% dos meninos passem por algum tipo de abuso sexual. No entanto, acredita-se que esses sejam números muito aquém da realidade e que, de fato, um número muito maior de crianças sejam vítimas sexuais, uma vez que grande parte delas não conta que está passando por isso. Ou, quando contam, os casos não são notificados ou levados a outras instâncias, permanecendo no interior das famílias, que ou os negam, ou os escondem, ou os cercam de uma aura de medo, segredo e tabu que somente ajuda a perpetuar a violência contra a criança.


Aqui já surge um primeiro dado importante: meninas são o grupo preferencial quando o assunto é abuso sexual na infância e sobre isso há uma consideração importante que precisa ser feita. Alguns estudiosos do tema acreditam que essa relativamente maior frequência de vitimização se deve a um fator extremamente relevante de ser discutido: a aceitação cultural. De maneira geral, em diferentes culturas, a coletividade tende a ser mais conivente, ainda que esse não seja seu objetivo consciente, com o assédio sexual contra meninas e mulheres. E isso é bastante fácil de ser observado no discurso coletivo, como por exemplo nas frases e opiniões que atribuem o estupro de mulheres a comportamentos, tipos de roupas e outras condições que não ao próprio estuprador. Assim, é muito importante que a gente lembre que, ao reforçar nosso comportamento social minimizador com relação ao assédio sexual contra mulheres – do fiu-fiu na rua aos casos mais ostensivos de violência sexual consumada – estamos também contribuindo para que meninas, crianças, sejam vitimizadas. Pois o que é visto como socialmente natural não é problematizado como real violência.


A maior prevalência entre as meninas não diminui a grande ocorrência entre os meninos, e neste ponto também há uma questão importante a ser discutida: enquanto a naturalização cultural do assédio sexual contra mulheres contribui para que meninas sejam vitimizadas com maior frequência, a existência de um tabu a respeito das relações entre homens também torna os meninos vítimas. Porque aquilo que é visto preconceituosamente como errado – a relação entre dois homens – tende a ser mantido em segredo pela criança, senão por medo, por vergonha. E isso dá ainda mais poder aos abusadores para que mantenham seus abusos contra meninos na dimensão do secreto. Pois, para um menino que é criado em ambiente onde a relação sexual entre homens é vista como errada, pecaminosa, abominável, ter sido vítima de um abusador faz com que ele se sinta ainda mais envergonhado do que viveu, por vezes culpado, e mantenha o segredo sobre a violência sofrida, o que o vitimiza ainda mais.


Muita gente acredita, reforçada pelo que a mídia sensacionalista retrata, que os abusos sexuais contra crianças tendem a ocorrer mais no interior de famílias com menor poder aquisitivo. No entanto, muitos estudos mostram que isso não procede como regra geral. E não porque não aconteça com maior frequência entre as famílias mais pobres. Mas porque não sabemos, de fato, seu grau de ocorrência entre as famílias mais ricas, que possuem maiores condições de silenciamento, acobertamento e outras medidas que evitam a notificação, o escândalo e impedem que o caso venha a público. Isso exige que as políticas de acolhimento utilizem diferentes abordagens para acolher/identificar casos de abuso sexual contra crianças na dependência de onde são originados, e dediquem um olhar diferenciado às estratégias dos abusadores.

2) E QUEM SÃO OS ABUSADORES? COMO A SOCIEDADE É CONIVENTE MESMO SEM QUERER SER?

Eis aí uma questão que aumenta a complexidade do assunto. Não, os principais abusadores não são os estranhos. Eles vivem com as crianças, ou têm livre acesso a elas, geralmente recebendo confiança por parte da família. Muitos deles utilizam exatamente a questão da confiança para se aproximar das crianças sem levantar suspeitas, passando de maneira às vezes desapercebida. Em função de serem adultos, de geralmente terem a admiração das crianças ou de seus familiares, eles estabelecem com elas uma relação de poder, de subordinação, de “eu sei o que é bom para você e, se eu sei o que é bom para você, então tenho aval para fazer o que eu achar que precisa ser feito”. Logicamente, nem sempre isso é dito de maneira tão clara. Mas pode ser percebido pelas crianças como sendo uma relação de dominação, de “ele, ou ela, é adulto, ele manda em mim, eu preciso dele”.


Os abusadores tendem a assediar com mais frequência crianças que vivem em lares onde impera um estilo de parentalidade autoritário, inclusive utilizando-se disso para aumentar a simpatia da criança por si. Onde falta carinho e acolhimento, pode haver um abusador pronto para oferecê-los às crianças… Onde falta carinho e acolhimento, há, geralmente, uma criança insegura, carente de atenção e cuidado, com baixa autoestima, e isso as vulnerabiliza perante abordagens, além de dificultar a relação de confiança entre a criança e cuidadores que poderiam protegê-la. E o abusador sabe disso. E é ali que ele irá tentar tirar proveito, no laço de confiança enfraquecido entre a criança e seus cuidadores.


O abuso sexual contra crianças também é uma forma de violência doméstica e, de fato, representa mais de 70% dos casos, o que é um índice altíssimo. O abuso sexual contra a criança ocorre fora do seu lar em apenas 25% dos casos notificados. E, ainda assim, a grande maioria desses casos de abuso é cometida por pessoas que recebiam a confiança das crianças. Isso mostra algo extremamente grave: a sociedade acredita que abusadores sexuais de crianças são estranhos e grande parte da estratégia de prevenção dos cuidadores está focada para fora, para a rua, para desconhecidos. Quando, na verdade, ela acontece preferencialmente dentro de casa e/ou praticada por pessoa externa mas de confiança. Em algumas circunstâncias, toda a família é levada a crer que o abuso sexual sofrido pela criança foi praticado no exterior da família, por pessoa estranha, e, de fato, as crianças podem estar sendo induzidas a acusar estranhos pela violência sofrida. Essa falsa acusação externa é facilmente aceita pelos familiares, que preferem acreditar que o criminoso não pertence à sua família. Afinal, é muito difícil aceitar uma realidade tão dura, que transformará todas as relações construídas. É evidente que esse tipo de comportamento apenas reforça e mantém o ciclo de vitimização ao qual a criança está sujeita. Neste contexto, é bastante frequente que as crianças vítimas de abusos cresçam acompanhadas por seus abusadores e, somente na adolescência ou idade adulta, quando recebem algum tipo de apoio profissional, revelam relacionamentos abusivos de longa duração dentro de sua própria família.


Independentemente do grau de ligação com a criança – se familiar ou externo à família – há dois fatores marcantes que caracterizam a relação entre o abusador e sua vítima: o estabelecimento de uma relação de poder entre adultos e crianças e a grande desvalorização da infância na sociedade atual. Em uma sociedade onde crianças são criadas para obedecer cegamente, de maneira autoritária e não empática, é cedo que aprendem que um adulto tem legitimidade para mandar em sua vida, decidir o que ela viverá, controlar seu comportamento, dizer o que pode ou não fazer com ela.Soma-se a isso o fato de que ainda há muito pouca problematização cultural sobre a violência contra a criança e há grande aceitação do uso de práticas violentas contra elas. Esse cenário funciona como um pano de fundo para que abusos sexuais contra crianças encontrem terreno fértil, sejam acobertados e, algumas vezes, naturalizados. Portanto, combater a violência sexual contra as crianças passa por não aceitar a violência contra elas, seja qual for seu tipo, frequência, intensidade ou duração. Em uma sociedade que rejeita veemente a violência contra a criança, qualquer sinal de abuso torna-se mais evidente e, portanto, mais fácil de ser identificado e combatido.

3) QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS TIPOS DE ABUSO SEXUAL CONTRA AS CRIANÇAS?

 Pensar que o abuso sexual mais frequente contra as crianças seja a consumação do ato sexual, não só é equivocado como também bastante perigoso, pois contribui para que todas as demais formas permaneçam ocultas ou disfarçadas. A forma mais frequente de abuso sexual cometido contra as crianças são os atos libidinosos, que insinuam a sexualidade na vida da criança de maneira ostensiva, que a introduzem em um mundo de erotismo, contra seu preparo emocional e desrespeitando sua integridade.


Os abusos sexuais podem ocorrer com ou sem contato físico. Entre os tipos de abuso sem contato físico, incluem-se: 1) o abuso sexual verbal, quando o adulto estimula conversas de natureza sexual com a criança; 2) o voyeurismo, quando a criança é ostensivamente observada, especialmente seu corpo e seus genitais, pelo adulto, que geralmente se mantém escondido (prática infelizmente bastante comum entre abusadores na internet, por isso é tão importante que selecionemos com bastante cautela as fotos que publicamos das crianças nas redes sociais); 3) exibicionismo, quando o adulto exibe seus órgãos sexuais intencionalmente para a criança, com o objetivo de amedrontá-la, assustá-la ou ameaçá-la; 4) exibir intencionalmente imagens ou vídeos pornográficos às crianças; entre outras práticas. Com relação aos abusos sexuais com contato físico, incluem-se: 1) o toque em regiões genitais da criança, ou fazer com que a criança toque o adulto nas mesmas regiões; 2) tentativas ou consumação do ato sexual propriamente dito com a criança; 3) pornografia e exploração sexual infantil.

4) COMO IDENTIFICAR POSSÍVEIS SINAIS DE QUE A CRIANÇA ESTÁ SENDO ABUSADA OU FOI ABUSADA SEXUALMENTE?

 Esta parece ser a principal angústia das mães, pais e cuidadores com relação ao tema. E não é de se espantar, pois se queremos proteger as crianças, precisamos saber identificar adequadamente os sinais. No entanto, é talvez um dos mais complexos pontos de tensão, tanto em função do silêncio que existe sobre, quanto por sua dificuldade. Crianças se comportam de maneira muito diferente umas das outras e não é possível esperar que os mesmos sinais estejam presentes em todas. Ainda assim, é possível identificar padrões que parecem se repetir entre as crianças que sofreram abusos de ordem sexual.


Para entender essa e outras questões sobre abuso sexual na infância, conversei com o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral. Perguntei a ele se, do ponto de vista do comportamento da criança, há alguma forma de identificar sinais indicativos de que ela esteja sendo ou tenha sido vítima de abuso sexual. Alexandre me disse que sim, que sem dúvida há maneiras de identificar, baseado na mudança de comportamento da criança. Ela pode mostrar-se mais retraída, ou apresentar uma erotização precoce – como tentativa desesperada de elaborar a cena primária do abuso.

Ela vai procurar pares para fazer o mesmo, tentando reproduzir o que viveu. Freud dizia que, para elaborarmos o que vivemos, fazemos três coisas: recordar, repetir e então elaborar. Ela repete, repete, repete. Costuma dizer algumas frases de baixo calão, que são facilmente repreendidas pelos pais como sendo feias.

Também de acordo com ele, a criança pode reproduzir algumas cenas do abuso sexual por meio de suas brincadeiras, ou querer tocar nos genitais dos amigos, ou reproduzir com eles o que fizeram com ela. Ou ainda, de acordo com Alexandre,

Simplesmente o retraimento, como maneira de controlar qualquer tipo de expressão que revele o abuso e, consequentemente, a coloque em vulnerabilidade, já que está provavelmente sob ameaça do agressor”.

Os desenhos mudam radicalmente, expressando raiva ou medo, retratam muita chuva e lágrimas, usam cores mais frias e símbolos de desproteção e opressão.

Há uma diferença significativa entre a erotização da cultura e a erotização do abuso sexual stricto sensu, embora possamos inclusive considerar a cultura como abusiva, uma vez que expõe a criança a conteúdos sobre a sexualidade humana adulta, para os quais ela não está preparada, afirma Alexandre.


Vejam que esses são sinais que mães, pais, cuidadores e educadores têm condições de observar. Porém, do ponto de vista dos profissionais da saúde, há outros sinais que são indicativos de possível abuso sexual. O profissional de saúde que atende uma criança com suspeita de abuso sexual deve proceder a uma anamnese cautelosa e detalhada, preocupando-se muito mais em poupar a criança do que em identificar mais e mais sinais.

É sempre preciso lembrar que qualquer abordagem desastrada ou feita sem cuidado fará a criança lembrar e reviver a dor de ter sido violada, o que também representa uma forma de violência contra ela.

Em função da grande complexidade de identificação presente na maioria dos casos, é de fundamental e insubstituível importância que as equipes de acolhimento sejam multidisciplinares, pois não só a criança como toda sua família precisará de apoio médico, psicológico e jurídico após a descoberta do abuso sexual.

5) O QUE FAZER APÓS A SUSPEITA OU DESCOBERTA DO ABUSO SEXUAL CONTRA CRIANÇA? A QUEM RECORRER, PARA ONDE IR?

 De modo geral, os dois principais caminhos a serem seguidos após a suspeita ou descoberta são: via sistema de saúde ou via Conselhos Tutelares ou órgãos de proteção à infância.

A Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência recomenda que a família ou o cuidador que identificou possíveis sinais de abuso sexual contra a criança procure imediatamente o Conselho Tutelar da sua região, também para receber maiores informações sobre os procedimentos a serem tomados a partir de então. Esse caminho é recomendado, inclusive, pelo próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Artigo 13, que afirma:

Os casos de suspeita ou confirmação de maus tratos contra a criança ou o adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

A partir daí, o caminho a ser percorrido depende da confirmação da ocorrência do caso. Confirmada a suspeita, a criança e sua família podem ser encaminhadas para os serviços de acolhimento, saúde e apoio social, pertencentes a uma ampla rede de apoio multiprofissional.


Outra porta de entrada para o encaminhamento da criança e sua família é via sistema de saúde. E como meu foco aqui não é falar sobre o acolhimento que existe no sistema privado de saúde, mas, sim, no sistema público, via SUS, conversei com o psicólogo Leonardo Mendonça, que durante 4 anos trabalhou no atendimento de crianças, adolescentes e suas famílias na Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente. Leonardo me informou que a porta de entrada, neste contexto, é via Unidade Básica de Saúde. Muitas mães, pais e cuidadores não procuram o Conselho Tutelar em caso de suspeita de abuso, mas, sim, buscam orientação médica. Neste caso, os profissionais da saúde, integrados com a estratégia Saúde da Família, procederão à anamnese, acolhimento da situação de dor emocional, encaminhamento ao Conselho Tutelar e todo o suporte necessário, bem como desencadeamento posterior de toda a rede que precisa ser articulada para acolher, proteger e garantir o cumprimento da lei. O Artigo 245 do Estatuto da Criança e Adolescente, inclusive, afirma:

Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra a criança ou adolescente. Pena: multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência”.


Atualmente, há protocolos a serem obedecidos pelos profissionais do sistema de saúde que visam identificar os sinais de abuso, acolher a criança e sua família e encaminhar os casos de suspeita ou confirmação à Delegacia de Polícia, Conselho Tutelar e/ou Juizado da Infância e Juventude. A notificação, pelo profissional de saúde, à Secretaria Municipal de Saúde é, hoje, obrigatória, e a equipe de saúde precisa comunicar o cuidador responsável sobre a obrigatoriedade da notificação, seus objetivos, sua importância na proteção à criança e os desdobramentos subsequentes. Em casos em que há marcas físicas, isso se torna mais fácil. Mas quando não há – o que é a grande maioria dos casos – é necessária uma abordagem profunda e, ao mesmo tempo, cuidadosa e delicada, feita por profissionais treinados que incluem clínicos gerais, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. Após a confirmação, há o encaminhamento ao Conselho Tutelar. Em regiões onde a população ainda não dispõe desta instância, encaminha-se diretamente ao Juizado da Infância e Juventude.


O importante é ter em mente que há três objetivos principais com o encaminhamento da denúncia: o primeiro sempre será de proteger a criança, para que a situação de abuso seja imediatamente interrompida, e acolhê-la emocionalmente. A comunicação aos órgãos competentes, bem como as medidas para que a lei seja cumprida e o abusador punido, são de fundamental importância e precisam acontecer, mas posteriormente à proteção e acolhimento.

É também muito importante ressaltar o seguinte: não é só a criança quem precisará de apoio psicológico e emocional para lidar com esta situação dolorosa e traumática, mas toda a sua família. O acolhimento e encaminhamento que as equipes de saúde procurarão dar, irá justamente neste sentido: apoiar e amparar a família cuja criança foi abusada.

6) TODO CASO É NOTIFICADO? TODO CASO É DENUNCIADO?

Não. Infelizmente não. Grande parte dos casos não chega às instâncias que precisariam chegar. E isso se deve ao silenciamento que existe no interior das famílias. Erramos quando culpabilizamos as famílias pelo silêncio produzido. É preciso lembrar que esta é uma situação extremamente dolorosa, traumática e que marca rupturas de diferentes ordens na estrutura familiar. Assim, aquilo que pode parecer fácil ou óbvio de ser feito, muitas vezes não é. É preciso, portanto, destinar um olhar acolhedor e empático à família que está vivendo situação de abuso sexual contra criança em seu íntimo. Inclusive porque isso também pode ser elemento de fortalecimento para que a família busque os desdobramentos necessários e denuncie.


E por que tanto silêncio? É preciso lembrar que em grande parte dos abusos sexuais contra a criança, há o envolvimento de um familiar supostamente respeitado, algumas vezes caracterizando relações incestuosas. Como o abuso sexual também é uma forma de violência doméstica, que acontece muitas vezes de maneira repetitiva, em grande parte dos casos a criança se sente muito culpada pelo abuso sofrido. Ela se vê ou como cúmplice, ou como promotora, e isso faz com que não tenha coragem para relatar a violência a outros cuidadores. Quando a criança adquire mais maturidade e relata o que está vivendo, ou apenas insinua que vai relatar, o abusador lança mão de estratégias para desqualificá-la, gerando um elemento de dúvida que, muitas vezes, privilegia a si mesmo, desacredita a criança e a condena ainda mais à perpetuação do ciclo da violência.


O silêncio por parte da criança também pode ser oriundo de ameaças feitas pelo abusador, que frequentemente diz que algo de muito ruim irá acontecer com quem ela ama, caso conte aos outros “o segredo” que “ambos mantêm”. Pesquisadores da violência sexual contra a criança parecem ser unânimes em afirmar: quanto maior o medo da criança, maior o prazer do agressor e, consequentemente, maior a violência. Neste ponto, mais uma vez, é importante salientar o papel fundamental que uma criação empática pode ter na vida de uma criança. Quando ela se sabe amada e respeitada, quando a ela são transmitidos valores claros de cumplicidade, parceria, respeito e amor, ela sabe que, seja qual for a situação, será ouvida e acolhida. Quando a criança se sente desprotegida, insegura, ou sabe que não será ouvida, ela dificilmente contará o que está vivendo… E, assim, como as pesquisadoras Luci Pfeiffer e Edila Pizzato Salvagni afirmam, em seu artigo “Visão atual do abuso sexual na infância e adolescência”, publicado em 2005:

“…insegura por imaginar que realmente não seria ouvida ou acreditada, envergonhada tanto pelo que passa como pela sua impossibilidade de denunciar, por seu amor próprio reduzido e, ainda, ameaçada por aquele de quem habitualmente depende física e emocionalmente, ela se cala, muitas vezes para toda sua vida”.


Muitas vezes, o silêncio não parte da criança, mas de um dos seus cuidadores, com frequência a mãe. E há também inúmeras explicações de ordem social e emocional para isso, desde o medo da ruptura familiar e da exposição pública, quanto a inexistência de uma rede social de apoio que possa acolher aquela mulher e aquela(s) criança(s),  quanto pelo próprio sistema patriarcal, que força e subjuga mulheres e crianças.


As mesmas autoras mencionadas acima afirmam algo extremamente importante, no contexto do silêncio familiar sobre o abuso sexual das crianças:

Em algumas situações, quando o incesto é revelado, a mãe reage com ciúmes, como rival e passa a colocar na filha a responsabilidade pelo ocorrido. Para corroborar com essa prática, estaria a dificuldade de a mãe reconhecer o incesto, pois seria o reconhecimento de seu fracasso como mãe e esposa, enquanto que o abusador usa de todos os meios para manter seus atos em silêncio e encobertos”.

Mais uma vez, portanto, é preciso que a sociedade se dispa de seu papel julgador. Todo esse grupo precisa de acolhimento e força para afastar-se e denunciar o seu abusador. O simples comportamento culpabilizante das vítimas atua como cúmplice da violência que elas sofrem, e não contribui para libertá-las deste ciclo pernicioso. Apoio, acolhimento, empatia, não julgamento: são fatores decisivos para a família que está vivendo uma situação tão crítica quanto essa.

7) O QUE UMA FAMÍLIA E A SOCIEDADE PODEM FAZER PARA AMPARAR UMA CRIANÇA QUE FOI ABUSADA DE FORMA A CONTRIBUIR PARA SUA RESILIÊNCIA?

Essa pergunta, assim, na íntegra, fiz para o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral. A resposta dele foi muito clara: buscar ajuda psicológica e emocional

“É muito difícil lidar com isso sozinho. Os sinais de que a criança foi violada em sua infância sagrada são muito dolorosos, deprimem e retiram dos adultos a sua capacidade de tomada de atitude mais lúcida e resiliente. Todos são abusados quando há um abuso sexual. É a vida de uma criança tão amada que é violada. E, portanto, os pais vivem o mesmo luto daquela criança”.

Alexandre afirma que, embora não se possa apagar as marcas do abuso, é possível trabalhar o retorno da criança ao seu mundo lúdico. E que todos os envolvidos, que a amam, que se preocupam com ela, podem ajudar a elaborar a cena com amor, respeito, carinho, auxiliando para que ela se identifique como vítima e não permita nunca mais que seu corpo seja tocado sem a sua permissão. Para Alexandre, um dos efeitos mais deletérios da forma traumatizada de uma família lidar com o abuso é o total fechamento para o tema do corpo e da sexualidade.

“A melhor coisa que a família pode fazer é não encarcerar a criança na sua sexualidade erotizada precocemente. Não é proibir, dizer que é feio. Não é negar que aconteceu. Mas dizer que ela vai entender aos poucos o que aconteceu. Que o corpo é dela. Pedir licença todas as vezes que for tocar no corpo da criança, sobretudo na hora da limpeza genital. Isso deveria ser uma praxe de toda família, deixando claro para a criança desde sempre o protagonismo sobre o seu corpo e o direito de não deixar ninguém tocar nele – do asseio ao beijo na tia que não quero dar, por exemplo”, diz Alexandre.


Alexandre, eu, e tantas pessoas que trabalham ou com acolhimento de crianças ou com o estudo da violência e seus efeitos sobre a saúde, sobre a vida adulta, sobre as histórias de vida, somos contundentes ao lembrar, neste contexto, dos efeitos das palmadas. Palmadas são formas de violência socialmente aceitas. São formas de violação de direitos socialmente aceitas. São formas de violação do corpo da criança. E, sim, por mais que seja difícil para a sociedade aceitar e admitir, ela “abre portas para a criança admitir que seu corpo é violável por um adulto”, nas próprias palavras de Alexandre. Com as quais concordo em sua totalidade.

8) BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE PREVENÇÃO

Dizer que tais práticas hediondas podem ser prevenidas em sua totalidade é condenar as famílias que  as viveram à falta de empatia, ao julgamento externo, ao embotamento ainda maior e à autoculpabilização. Infelizmente, tem coisas que por mais que estejamos atentos, alertas e vigilantes não temos o poder de controlar. Práticas hediondas desta natureza, muito lamentavelmente, estão presentes em nossa cultura e sociedade desde sempre, e é também por isso que precisamos combatê-las com cada vez maior intensidade e assertividade. Não se trata, apenas, de ter olhos para prevenir, mas de entender que o papel da prevenção não é de um indivíduo, de um cuidador, de um responsável por aquela criança, mas de toda a sociedade. Da denúncia de uma suspeita ao amparo social oferecido. Do trabalho bem feito na rede de proteção ao afeto destinado à família que atravessa um problema como esse. Do amparo familiar à criança ao envolvimento dos educadores, dos amigos, de todas as esferas do apoio social. Prevenir depende de todos nós, não apenas dos responsáveis pela criança.


Sem dúvida nenhuma, o estabelecimento de laços empáticos, a valorização do clima de confiança familiar mútua, o fortalecimento da autoestima das crianças, o diálogo sempre amoroso e franco, as fartas e carinhosas explicações sobre a vida, sobre a realidade, sobre as pessoas, as orientações explícitas de condutas para as crianças – do conhecimento sobre as partes de seus corpos à orientação de recusa a aceitar qualquer presente dado por estranhos – podem ajudar a proteger a criança contra a abordagem de possíveis abusadores. Ainda assim, é preciso ter a devida noção de que não conseguimos abraçar tudo, não conseguimos controlar todos os fatores, e é aí que entra a importância do olhar atento para diferentes pessoas, diferentes abordagens, os esforços ativos para preservar o ambiente social da criança, a recusa em permitir que ela viva em ambientes que, de alguma forma, introduza elementos erotizantes ou sexualizantes. Crianças são esponjas que absorvem tudo ao seu redor, inclusive aquilo que você acha que ela não percebeu…


Abaixo, seguem algumas pequenas e simplórias atitudes que talvez possam ajudar a protegê-las de situações possivelmente ameaçadoras do ponto de vista do abuso sexual da infância, elencadas a partir de conversas com diferentes mães, cuidadores e profissionais. E se você tiver alguma dica que não esteja aqui contemplada, não se furte a mencioná-la. Lembre-se: é de todos nós o dever de zelar por nossas crianças:

– Assim que possível, e que a maturidade cognitiva e emocional da criança permitir, ensine a ela os nomes das partes de seu corpo, especialmente os nomes de seus órgãos genitais, para que ela possa se referir a eles com assertividade.
 

– Oriente-a para que não permita que ninguém além das figuras principais do cuidado toquem em seu corpo.
 

– Evite que a criança durma no mesmo recinto onde dormem desconhecidos. Mesmo que não sejam desconhecidos para você, lembre-se que podem ser para ela.
 

– Incentive-a a contar o que fez durante o dia. Faça disso um hábito. Assim, ela saberá que há o momento de contar o que viveu.
 

– Não permita, na medida do possível, que diferentes pessoas deem banho ou troquem a criança. 
 

– Mantenha sempre uma postura de diálogo com a criança. Esteja aberto a ouvi-la e às suas histórias. Não duvide do que ela contar. Ao invés disso, estimule-a a contar o que viveu, para que você possa distinguir elementos possivelmente fictícios das situações reais. Lembre-se que apenas cerca de 6% dos casos são fictícios. Geralmente, elas estão falando a verdade.
 

– Não deixe passar situações que te eliciem dúvidas sobre a integridade física e emocional da criança. Vá, pergunte, sonde, investigue. É preferível que você descubra que não era nada do que ficar sem saber que era.
 

– Evite ambientes e pessoas que estimulem a erotização precoce das crianças. Porque, sim, isso representa malefício a elas. Muitos estudos já mostraram a influência que um ambiente rico em elementos sexualizantes têm sobre o despertar precoce do interesse sexual ou a aceitação de abordagens inapropriadas. Onde há criança não pode haver menção à erotização. Seja radical nisso. Lembre-se de que uma sociedade que aceita uma cultura de erotização da infância torna-se conivente com a aceitação do assédio contra mulheres e meninas.
 

– Se você souber ou desconfiar que uma criança próxima de você está vivendo situação de abuso, procure ajuda para ela. As equipes são treinadas para identificar situações reais de abuso sexual. Jamais ignore ou encare como “problema da família”. Todos temos responsabilidade pela infância. Quando você sabe e não se manifesta, você se torna cúmplice da violência praticada contra a criança.


– Evite o comportamento paranoico. Enxergar violência sexual em tudo faz com que você não veja as reais ameaças. Discernimento e tato são fundamentais para proteger as crianças. Trabalhe com elementos concretos, pergunte, telefone, visite, converse.


– Leia, sempre que possível, material de origem confiável sobre abuso sexual na infância. Ler todo e qualquer texto disponível na internet pode fazer você se senti bem informado quando, na verdade, não está. O Ministério da Saúde, a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência, as Sociedades de Pediatria, os Conselhos Tutelares, as Secretarias Municipais de Saúde, todas essas instituições disponibilizam material para te apoiar e informar.


– Passe o máximo de tempo possível com as crianças, ligado nelas, não conectados a outras coisas. Só assim você conseguirá notar diferenças sutis de comportamento que podem ser indicativos de algum problema mais sério.


– Procure conhecer ou estabelecer contato com todos os adultos que convivem com sua criança. Faça-os saber que você está atento, vigilante, consciente de todas as nuances comportamentais da criança. Faça-se presente. Mostre-se ativo e atuante.


– Mudou a professora ou o professor? Vá lá conhecer. Seja a escola formal, a aula de natação, de música, tudo o que estiver ao seu alcance.


– Aceite o NÃO que a criança emitir, ou a oriente conscientemente sobre a importância do NÃO.


– Não permita que estranhos, ou mesmo conhecidos, peguem a criança no colo, ou a beijem, ou a acariciem SEM QUE ELA ASSIM O DESEJE. O corpo é dela, é dela também a autonomia de decidir. Quanto antes ela aprender isso, mais facilmente o conceito de autonomia sobre o próprio corpo será introjetado. Substitua o “Dê um beijo na tia Maria” por “Você gostaria de dar um beijo na tia Maria?” ou “Posso te dar um beijo?”. E aceite o NÃO, quando ele vier… Elas têm direito a isso.

 

Texto originalmente publicado no site Cientista Que Virou Mãe em dezembro/2015.

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.