O número de culturas existentes no mundo é algo inestimável, certamente da cifra de quatro dígitos ou mais. São milhares ou dezenas de milhares de crenças, práticas, hábitos, valores, comportamentos. A existência de choques culturais é, portanto, algo real nesta multiculturalidade. Mas defender que “diversidade cultural ou religiosa” seja permissão para violações da dignidade humana e que fazer o que se bem entender com as pessoas está na dimensão das decisões de uma cultura ou religião, é um gravíssimo erro; na verdade, é mais que erro: é uma ameaça ao que a humanidade já construiu em termos de reconhecimento de direitos, não sem sofrimentos e perdas humanas dolorosas.
Todas as pessoas precisam ter sua dignidade reconhecida e seus direitos – inalienáveis – protegidos como fundamento da liberdade, da justiça e da paz. Precisam ser protegidas contra o desprezo e o desrespeito à sua dignidade e aos seus direitos, sob a ameaça de, assim não sendo, reproduzirmos, repetirmos e mantermos atos bárbaros que já estiveram – e infelizmente ainda estão – presentes em nossa história. Todas as pessoas das mais diferentes culturas precisam se comprometer com a promoção do respeito universal aos direitos do ser humano. E nada do que estou dizendo aqui é inédito ou autoral: trata-se dos preceitos básicos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Por que será que, um dia, ao final da década de 40, a humanidade se viu obrigada a discutir e elaborar 30 artigos que pontuam e reconhecem como soberana a existência de direitos básicos às pessoas? Simples: porque vivemos as funestas consequências de se deixar que culturas, práticas, religiões e governos decidissem livremente sobre o que fazer ou o que não fazer com as pessoas. As consequências: um imenso número de tragédias, horrores, massacres e sofrimento. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, que está completando 75 anos, foi promulgada pela Organização das Nações Unidas, a ONU, não apenas como uma resposta às atrocidades ocorridas nas guerras mundiais, mas também para proteger todo ser humano, de qualquer país, sob quaisquer circunstâncias, de violações, das mais aceitas culturalmente às mais terríveis e trágicas. E isso para que possa viver com respeito, com paz, com liberdade e igualdade.
E é, como o próprio nome indica, universal.
Não se aplica apenas a mim, a você, à minha filha, mas não a um menino cuja imagem sendo abusado está percorrendo o planeta. Aplica-se a ele também. Na verdade, ainda mais a ele, enquanto criança que está sendo vítima explícita e indiscutível de violência, desrespeito, desigualdade e desumanidade.
Por que eu, você, nossos filhos, monges, padres, seriam dignos de usufruir direitos universais, mas o garotinho cuja imagem, muito equivocadamente, está sendo exposta, não é digno desse direito? Por um “choque de cultura”, uma “diferença de religião”?
Que espécie de seres humanos nos tornamos quando achamos que somos capazes de relativizar, justificar, tolerar e até mesmo incentivar violações em nome de um suposto “choque cultural” – que, inclusive, também não é o caso aqui?
Estou há dois dias convidando pessoas cujo trabalho de uma vida admiro para que possam refletir novamente. Pessoas que estão relativizando/justificando/invisibilizando a violência contra a criança. Agora, dizem, em função de um “choque de culturas” ou um “choque de credos” ou sabe-se lá que nome queiram dar a uma explícita violação. Estou, há dois dias, de maneira transparente, objetiva e não violenta, argumentando, convidando à reflexão, mostrando dados e alertando para questões como a diferença geracional, a diferença de gênero, a diferença cultural e que nada disso pode servir para manter uma estrutura que faz as mesmas vítimas de sempre:
Crianças
Mulheres
Pessoas não brancas
Estou há dois dias, inclusive, sendo atacada por meus e minhas pares por minha forma dialógica de argumentar sobre algo que é óbvio: é inaceitável, para todos os padrões, culturas, credos, times de futebol e tudo mais que você, muito desrespeitosamente, queira inserir aqui como pseudoargumento, que uma criança seja abusada por quem quer que seja – e que tenha sua imagem exposta desta maneira. E embora eu esteja há dois dias argumentando com essas pessoas, tentando mostrar que não é possível haver relativismo sem condenar todas as crianças ao abuso ou à violência, o que recebi foi o silêncio.
Eu ia citar agora Desmond Tutu por sua célebre frase: “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”, mas senti profundo medo desta citação por lembrar que Tutu foi arcebispo da Igreja Anglicana e, ainda mais neste momento, minha aversão a sistemas religiosos e à forma como seus membros se protegem, ainda que de maneira cruzada, está em seu limite máximo. Porque a idolatria tem esse efeito nas pessoas: mais do que cegar, as tornam apoiadoras. Ademais, essa célebre frase não é o caso aqui, porque o que vemos quando a relativização acontece em situações explícitas de abuso não é a neutralidade em situações de injustiça. É a óbvia validação. É a óbvia aceitação. É a óbvia manutenção da desigualdade de poder que continua fazendo as mesmas vítimas:
Crianças
Mulheres
Pessoas não brancas.
Atrocidades não acontecem apenas em guerras mundiais. Acontecem todos os dias, debaixo de nossos tetos e, muitas vezes, se somos pessoas que relativizam ou justificam, também com o nosso aval. Atrocidades não acontecem apenas por meio de Hitlers, nazistas, fascistas. Acontecem também por meio de palavras, mãos e línguas santificadas. Quantas crianças mais terão que ser violadas e expostas para manter santidades? Quantos pseudoargumentos mais teremos que ler para manter desigualdades de poder baseadas em títulos de “santo”? Até quando seremos (in)(des)governados por poderes místicos que validam a manutenção e aceitação de violências?
Se você relativiza, sob o manto do silêncio ou do argumento do “choque cultural”, você também contribui para que centenas de milhares de crianças no mundo todo continuem a ser violadas. E se assim você faz, que seu Deus ou seu Buda tenha piedade de você. Porque eu, que sou demasiadamente humana, mortal e ateia, não tenho. Tenho é tristeza, que é o que estou sentindo desde que soube e que sinto também agora enquanto escrevo. E gostaria, sinceramente, de entender o que houve com o sentido embutido na frase que por tanto tempo utilizei – “O cuidado é o ethos fundamental do ser humano” – quando esse cuidado não pode ser aplicado a uma criança em situação de vulnerabilidade. O que houve, Leonardo?
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Meu trabalho é orientar e apoiar mulheres nas diversas dimensões de suas vidas – maternidade, educação sem violência, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico.
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Sou Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Também sou Doutora em Ciências pela mesma universidade e sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP. Será um prazer poder te ajudar.