Muitas das coisas que estão acontecendo atualmente no Brasil vêm de uma falta nossa de memória. Vem de uma liquidez dos dias, que transforma o dia anterior em passado obsoleto, com o qual pouco ou nada podemos aprender. Vem da desvalorização das experiências, do humano, dos sofrimentos de tantas pessoas. Vem de não sabermos ou não nos interessarmos por ajudar o outro a superar sua dor e a ressignificar seu sofrimento, a transmutá-lo e a transformá-lo em fortalecimento. A rapidez da disseminação da informação transforma a notícia de ontem em notícia velha, o ocorrido da semana passada em irrelevante, o sofrimento vivido no ano anterior em coisa a ser esquecida. E é também por isso que as pessoas se sentem descartáveis, solitárias, sozinhas e desvalorizadas. É bastante interessante para os valores atuais que assim seja: a solidão vende o consumo, a dependência e o medo. E é com base nisso que damos poderes aos outros para que legislem sobre nós. É com base nisso que aceitamos ser governados por outros.
Cada vivência pode ser motivo para uma transformação. Cada dor ouvida, valorizada, ecoada, pode ser a ausência de dor no futuro. Não apenas de quem a viveu, mas de quem pode não chegar a vivê-la em função do enfrentamento que podemos propor e fazer, coletiva ou individualmente.
Há exato 1 ano, em 01 de abril de 2014, uma mãe, em uma cidade do sul do país, era arrancada de sua casa em trabalho de parto, a caminho de parir sua quarta filha, e obrigada por força policial a uma cesariana desnecessária e sem justificativa médica plausível. Ela foi tirada de dentro de casa, no meio da madrugada, em trabalho de parto, na frente de seus outros filhos, de seu marido e de sua doula, por alguns policiais que seguiam uma ordem judicial baseada em falsas indicações de cesariana e de sérias omissões. Ela seguiu as ordens e, pouco tempo depois, foi submetida a uma cirurgia contra a sua vontade.
Essa vivência tão difícil deu origem a muito mais que uma denúncia e uma audiência na Comissão de Direitos Humanos em Brasília, deu origem a uma transformação profunda em muitas de nós. Nós assistíamos, mas não com sentimento de passividade, à apropriação pelo Estado do corpo de uma mulher. E sabíamos e sentíamos que isso não era novidade, que isso não era caso isolado, que isso não era fato raro, pois que conhecemos e vivemos coisas tão degradantes quanto. Talvez não da obrigatoriedade jurídica e contra nossa escolha de uma cirurgia, mas certamente da apropriação que sentimos todos os dias, por parte da sociedade e do Estado, do corpo que é nosso e das decisões sobre ele, que apenas a nós, mulheres, diz respeito.
Embora naquele dia nascesse uma grande ação mobilizadora nacional, bem como uma luta ainda mais organizada pela humanização do nascimento e contra a violenta assistência obstétrica a que estamos sujeitas, não era isso que, de fato, nascia. Não éramos nós quem nascíamos. Nascia, naquele dia, uma menininha que transformaria a vida de sua mãe e de toda sua família, e que já vinha transformando desde a gestação. Pela busca que estimulou sua mãe a fazer por uma forma respeitosa de nascimento. Pela união que promoveu entre seu pai, seus irmãos e sua mãe. Pelo fortalecimento que ajudou a promover.
Nascia Yuja. E nascia uma nova mãe. Uma nova Adelir.
Hoje, presto homenagem à querida Adelir, que representa a luta por uma maternidade respeitada, a luta contra a judicialização do corpo feminino, a luta contra a violência obstétrica, a luta pelos direitos reprodutivos.
Parabéns, Adelir, por 1 ano como mãe de Yuja.
Parabéns, Yuja, por 1 ano de vida, como filha dessa mulher forte e combativa. Que sua vida seja doce, longa, saudável e amorosa. Como deve ser a vida de toda criança.
Hoje é Adelir quem conversa com a gente. Vamos ouvir sua voz.
Para que não nos esqueçamos. Para que nunca mais aconteça. Frase que deveríamos repetir todos os dias, em diferentes circunstâncias…