Minha filha passou o fim de semana se recuperando de uma forte dor de ouvido. No domingo à tarde, propus que nos deitássemos para ler um livro. Fui à estante e busquei um dos meus muitos livros de infância, dos quais guardei alguns. Fui uma criança que leu muitos livros, grande parte deles sugeridos por professoras e professores e parte integrante de listas de materiais a serem providenciados pelos pais (mães). Foi assim que li livros como "Guerra dentro da gente", do Paulo Leminski, "O menino do dedo verde", de Maurice Druon, "Viagens de Gulliver", de Jonathan Swift  (versão adaptada), entre muitos outros. Como Clara está numa fase de valorizar muito sua própria cultura e origem – ela inclusive passou o dia pintada como uma índia Munduruku, etnia de minha avó (estamos pesquisando padrões de pinturas desta etnia) – escolhemos "CONTOS POPULARES PARA CRIANÇAS DA AMÉRICA LATINA", da Editora Ática. Pelo que escrevi na segunda página do livro, e que pode ser visto na foto em minha letra de criança de 11 anos, eu o li em 1989.

Folheei o livro e foi uma chuva de memórias de infância. Foi então que encontrei "A VARA DE SÃO MARMELO", conto peruano presente neste livro.

O conto fala de Casimiro, "um camponês simples e trabalhador", que se casou com uma moça da cidade, Filomena, que era bonita, "mas preguiçosa". "Passava o dia todo contemplando as mãos e logo logo pegava no sono". Enquanto Casimiro trabalhava do nascer ao pôr do sol cuidando das muitas coisas do sítio, Filomena não fazia nada, passava o dia inteiro deitada descansando. Quando ele insistia para que ela se levantasse, Filomena se queixava de muitas dores pelo corpo, estava constantemente indisposta, o que deixava Casimiro muito triste por ver sua amada mulher sempre doente. Ele estava verdadeiramente preocupado com a saúde de sua mulher… Um dia, Casimiro encontrou Valentim, seu amigo, e contou sua tristeza pela saúde precária da esposa. Valentim pediu para ver Filomena e Casimiro o levou até sua cama, que imediatamente pôs-se a queixar. Valetim se espantou, saiu do quarto, chamou Casimiro e o que vem a seguir na história está nas imagens abaixo.

Como vocês podem imaginar, choquei-me por inúmeros motivos. Uma história que consta de um livro que foi recomendado por anos sucessivos na escola onde estudei. 

Filomena, uma mulher da cidade, estereotipada como preguiçosa, seria vítima de violência física, agredida com a vara, caso não obedecesse seu marido e levantasse da cama imediamente para fazer tudo aquilo que até então ele fazia. Uma mulher estereotipada e ameaçada de violência ali, debaixo de nossos pequenos olhos sedentos por novas histórias e em formação de valores.

Da mesma forma como a história da Sopa de Pedras (também deste livro) permaneceu no meu imaginário, porque eu achava aqueles dois uns safados sem vergonha e sempre usei a expressão "sopa de pedras" pra me referir a charlatões, quem pode garantir que o texto "A vara de São Marmelo" também não povoou o imaginário de outras crianças que o leram, inspirando-os para o bem ou para o nem tão bem assim? Que tipo de curadoria professores, professoras e escolas faziam na década de 80 para a escolha dos livros infantis? Isso me fez pegar todos os livros de infância que guardei e separá-los aqui, para analisá-los um a um quando me sobrar um tempinho… 

Fiquei pensando em como continuaria uma história como essa se eu realmente a tivesse começado a contar para minha filha, hoje, em 2016, à luz de tudo o que estamos discutindo, desconstruindo, problematizando, evidenciando. Esta história permite uma enormidade de outros fins. Eu poderia ter pego inúmeros outros caminhos e seguido diferentes abordagens. Mas escolhi uma em função dos inúmeros relatos de mulheres que chegam até mim todos os dias, e de minha própria história como mulher.

Com total liberdade literária, e lembrando ser um livro infantil – isso é bem importante, pois eu certamente seguiria abordagem totalmente diferente em um livro para adultos… -, segue abaixo a minha reconstrução.

"- Valentim? Acho que não entendi… Como assim deixá-la sentir como dói? Você está sugerindo que eu bata em Filomena com essa vara? Valentim, faça-me um favor: saia de nossa casa agora mesmo.

– Qual o problema, Casimiro? Acalme-se, sempre fomos amigos. Não vamos discutir por causa de sua esposa, não é mesmo?

– Sempre fomos amigos sim, Valentim, mas não podemos mais ser… Não estamos deixando de ser amigos por causa de minha esposa, mas porque você acha que eu deveria agredi-la e isso eu não posso aceitar. Veja, Valentim, se Filomena está se queixando de dor o tempo todo, deve haver alguma coisa errada.

– Casimiro, meu amigo. Não há nada errado com ela! Ela está apenas sendo preguiçosa e se aproveitando de você.

– E você não acha que isso mostra que há alguma coisa errada com ela? Eu me casei com ela, ela se casou comigo. Decidimos morar juntos aqui, no sítio, foi uma escolha nossa, dela também. Se ela não está se sentindo feliz e não quer levantar da cama, se sente dores ou finge que está com dores para não se levantar da cama, tem alguma coisa errada…

– Você está sendo ingênuo, meu amigo…

– E você está sendo violento, Valentim. E não posso aceitar um amigo violento, que aceita agredir uma mulher. Por favor, Valentim. Saia da minha casa. Se um dia você mudar de ideia e achar que eu posso ter razão, então volte e conversaremos.

Valentim foi embora irritado, batendo a porta e xingando seu amigo. Casimirou sentou-se e pensou nas palavras que ele mesmo tinha dito ao seu amigo. Decidiu que não era mais possivel viver assim, que precisava conversar com sua esposa.

Entrou em seu quarto e lá estava ela, deitada. Ao ver seu marido, começou a se queixar de dores. Casimiro então se sentou ao seu lado e disse que estava muito preocupado. Que ele sabia que ela não estava bem, mas que talvez as dores não fossem no corpo, fossem no coração. 

– Filomena, eu quero te ajudar. Nós podemos conversar. Precisamos confiar um no outro. Por favor, Filomena, conte-me: o que te faz sofrer? Por que você prefere estar deitada na cama, sempre, todos os dias, a estar comigo no sítio?

Filomena ficou muito surpresa. Estava acostumada apenas com o olhar de pena de seu companheiro. Nunca o tinha visto disposto a conversar de verdade com ela e saber porque ela se sentia tão triste…

Filomena o abraçou. Chorou bastante. E disse:

– Obrigada, Casimiro, por ter me preocurado para que possamos conversar sobre isso. Tenho muita coisa pra te contar… Antes de te conhecer, vivi muitas coisas que foram tirando a minha alegria. Hoje não tenho muita vontade de fazer nada…

Casimiro disse que ela poderia confiar nele e que ele faria o que fosse possível para ajudá-la. Não porque ele fosse um super herói que poderia salvá-la – na vida do sítio, ele aprendeu que não existem super heróis, existem pessoas. Mas porque, afinal, é isso o que as pessoas que se amam fazem: ajudam umas às outras. Filomena sentiu que talvez pudesse confiar nele. Casimiro então, pediu que ela esperasse um pouco, ali mesmo, deitada. Levantou-se e foi até a cozinha. Sobre a mesa ainda estava a vara que Valentim havia recomendado como "cura" para o problema de Filomena. Decidiu usá-la para isso.

Foi até o fogão, atiçou o fogo que ameaçava apagar, colocou uma chaleira com água para ferver, pegou a vara e viu que nela ainda havia algumas folhinhas. Como pessoa crescida em sítio, Casimiro conhecia bem as propriedades daquelas folhas de marmelo. Picou as folhinhas e fez um chá. Colocou em uma caneca e levou até o quarto. Sentou-se ao lado de Filomena, que perguntou:

– O que é isso na caneca, Casimiro?

– É chá de folha de marmelo, Filomena. É muito bom para ajudar a se fortalecer e a se curar depois de se machucar. E parece que você se machucou, não é? Pegue, tome, vamos conversar…

E Filomena começou naquele dia, com o chá das folhinhas de marmelo, a escrever uma nova história…" 

 

Infelizmente, muitas mulheres não podem começar uma nova história. Ou porque estão machucadas demais, ou porque estão com medo demais, ou porque talvez seja tarde demais e elas já não estejam mais aqui em função da violência que sofreram… Muitas mulheres são diariamente vítimas de todas as formas possíveis de violência, da negligência que precisam enfrentar como mães à violência física que resulta em morte, passando por todos os outros tipos. Muito dessa violência é fruto da naturalização e banalização de formas "aceitas" de violência, ou da naturalização que houve na formação de toda uma geração. 

Esse é um livro que foi amplamente recomendado nas escolas na década de 80. Você pode argumentar dizendo "que bom, não é mais", mas isso não significa nada quando grande parte dos meninos daquela época se transformaram nos homens que acham aceitável ironizar mulheres, ou ridicularizá-las, ou usá-las como brinquedos, ou tantas das manifestações machistas com as quais convivemos. E não tenho uma boa notícia… Embora eu não o tenha encontrado disponível para compra em nenhuma livraria, apenas em lojas que vendem livros usados, este livro foi cotado em licitações do governo do Estado do Rio Grande do Sul em 2001 e consta de inúmeras recomendações atuais feitas por professores em sites ou blogs pessoais, além de estar nas recomendações atuais de literatura infantil no site de 6 escolas, e isso porque procurei pouco.

Essa foi apenas uma reconstrução literária livre. E quero convidá-la a escrever a sua. 

Sendo você a autora da sua própria história, como você a terminaria? Escreva. É sempre bom fazer esse exercício.

Em tempo: Casimiro, esse cara bacana, empático, calmo, amoroso, só existe nesta história porque eu li Pollyanna, de Eleanor H. Porter, vezes demais… Tenho lá minhas muitas dúvidas sobre a possibilidade de sua existência. Acho que encaro Casimiro mais como um elemental mesmo: só vou acreditar que existe se um dia encontrar. Enquanto isso, trago-o apenas como ser fictício, criado artificialmente.

**************************************************************

CONTINUE APOIANDO A PRODUÇÃO DE INFORMAÇÃO INDEPENDENTE! Seu apoio ajudará a remunerar mães escritoras para que elas continuem a produzir informação para todas nós. VEJA AQUI QUAIS TEXTOS ESTÃO EM PROCESSO DE FINANCIAMENTO COLETIVO!

***************************************************************

 

Leave a Reply