Eles são bons pais. Pais minimamente em processo de desconstrução dos próprios machismos, começando a enxergar seus privilégios e a ver as desigualdades que se estabelecem entre eles e as companheiras. Eles já sabem que a maternidade é um buraco ainda mais embaixo para as mulheres e sabem que lugar precisam ocupar nessa equação. Se ocupam ou não, aí já são outros quinhentos. São a ínfima minoria, mas parecem estar aumentando de número, conforme o acesso à informação também aumenta. As mulheres os elogiam. Falam sobre eles nas rodas com as amigas, nos grupos, nos espaços comuns. Estão minimamente satisfeitas com a forma como eles exercem a paternidade.

Então, um belo dia – que de belo não tem muito – a mulher, por não estar feliz com outras questões de seu relacionamento – porque, afinal, não há uma relação linear entre a boa paternidade e a boa qualidade da relação conjugal -, decide se separar. Geralmente, depois de muito tempo pensando sobre isso e sendo desencorajada pela maioria das pessoas.

Porque ele é um cara bom.

Porque ele “até” troca fralda.

Porque ele “até” acorda à noite pra pegar o bebê ou buscar água pra criança.

Porque ele “até” brinca com os filhos.

Porque você é louca de deixar um cara bom desse.

Nunca mais você vai encontrar alguém bom assim.

Porque ele faz tudo (ou quase) aquilo que você faz sem receber nenhum abraço por isso pois que “é sua obrigação, é o que se espera de uma boa mãe”.

E mais uma série de desencorajamentos baseados em migalhas – que, de fato, é o que a maioria das mulheres também está acostumada a aceitar.

Mas essa mulher está decidida: sabe que tem uma vida inteira pela frente para ser bem vivida. Sabe que paternidade e maternidade não se encerram com o fim de um casamento. Sabe que se não puder mostrar aos filhos que é possível ser mãe sem se acorrentar a um casamento infeliz ou falido, de nada valerá o modelo que quer ensinar. E então, ela se separa.

E então, aquele pai bom, aquele paizão bacana, aquele cara citado ali em cima, que parecia estar minimamente em processo de desconstrução dos próprios machismos, enxergando privilégios, vendo desigualdades e mais outros biscoitos (ou bolachas), se transforma no Gremlin que foi alimentado depois da meia noite ou teve contato com água, às vezes os dois juntos. Até coisa que nunca se pensou ver é vista. Coisa que nunca se imaginou que seria dita, é. A generosidade anteriormente vista se transforma em mesquinharia, o compartilhamento de responsabilidades se transforma em favor, o desvelo se transforma em migalhas continuamente jogadas para que aquela mulher se abaixe pra pegar.

Vejo isso constantemente: entre amigas, nas rodas de conversa entre mulheres que facilito, nos cursos que ministro, entre as colegas de trabalho, nos infinitos relatos das redes sociais.

Minha avó, que era de muito outra época e dizia umas coisas muito absurdas, reflexos de seu tempo, dizia outras que não eram tão absurdas assim, reflexos de uma sabedoria que só o tempo nos contempla. Ela dizia que a gente só saberia se um cara realmente era um bom pai depois que acontecesse uma separação. “Aí a gente vê se é bom pai”. Frases dela. Com as quais, infelizmente, já faz muitos anos que concordo.

Este texto não é, portanto, para as mães dessa relação que está findando e que estão passando por toda essa dor que é se ver sozinha e de frente para mais uma frustração (entre tantas…). Elas já sabem disso aqui. Esse texto é para os pais, os homens. Os que estão casados hoje. Os que se sentem pais bons, participativos e envolvidos. Os que estão se separando. Os que já se separaram.

Pai não deixa de ser pai depois da separação, qualquer que tenha sido o motivo dela. E eu sinto muito que isso lhe pareça muito óbvio de ser dito, mas ainda assim precisamos repetir. Vivemos em uma realidade em que 5 milhões de crianças brasileiras não têm o nome do pai na certidão de nascimento compulsoriamente, mas, sem dúvida nenhuma, o número de crianças cujos pais não são pais de fato é ainda maior. E grande parte desse quinhão é composta por esses homens que, ao final de uma relação, abriram mão da paternidade. E não digo isso numa perspectiva oito ou oitenta: entre um e outro há uma infinidade de maneiras de abrir mão de seus filhos.

Contentar-se com a pensão depositada mensalmente é abrir mão dos filhos.

Contentar-se com a visita quinzenal, mensal, bimestral, é abrir mão dos filhos.

Contentar-se com mensagens pelos aplicativos quando você pode encontrá-los pessoalmente é abrir mão dos filhos.

E mais muitos outros exemplos corriqueiros que demonstram que esses homens não fazem questão.

É muito duro ser uma criança que vai desenvolvendo a consciência de que seu pai não faz questão…

Você pode estar dizendo: “Mas eu trabalho”.

Como você acha que os muitos milhões de filhos cujo pai abriu mão da paternidade são sustentados? Por MÃES que também trabalham. Mulheres que deram seu jeito. Que vivem vidas difíceis, extenuantes, profundamente sobrecarregadas porque trabalham, criam as crianças e vivem suas vidas. Num contexto de dificuldade muito maior, posto que são mulheres. Recebem salários inferiores. Fazem trabalhos que ninguém quer fazer. São assediadas. Correm risco de vida inclusive no trajeto do trabalho à casa. E ainda são importunadas pelos pais dessas crianças. Que, mesmo ausentes para as crianças, dão um jeito de se fazer presentes para infernizar a vida dessas mulheres. Então, desculpem, mas a sua justificativa não é válida.

Você também pode estar dizendo: “Não procuro meus filhos porque não quero ter contato com ela”.

A novidade, senhores, é que via de regra essas mulheres também não querem contato com vocês. Inclusive porque, vamos relembrar? Foram elas quem quiseram se separar. E mesmo quando não quiseram, muitas preferem não manter contato em função da mágoa e da dor que sentem. Mas somos adultos, certo? Espera-se que tenhamos capacidade cognitiva o suficiente para saber que, se temos filho com alguém, precisaremos conviver com ele. Tratemos, pois, de desenvolver as habilidades necessárias para uma convivência possível. Muitas mulheres foram vítimas de violências de diversas ordens – emocionais, morais, patrimoniais, físicas – e ainda assim têm que conviver com vocês porque é direito dos filhos ter a participação dos pais em sua vida. Não venham com vitimismos (não é assim que gostam de dizer?).

Nenhuma justificativa existe para abrir mão dos filhos a não ser uma: ser uma péssima pessoa. Uma pessoa irresponsável e cruel. Que prefere fazer sofrer a criança a rever seu próprio comportamento enquanto adulto também responsável por ela.

As crianças continuam sendo suas, a responsabilidade idem. Raiva, mágoa, feridas abertas existem? Sim, muitas. Algumas profundamente dolorosas que levarão bastante tempo até fecharem. Eu entendo. Mas lugar de trabalhar isso é NA TERAPIA, não é no ouvido da ex nem na vida das crianças. As contas continuam, o emocional das crianças continua, as decisões continuam esperando serem tomadas, as crianças vão continuar a ficar doentes, a quererem passear, a quererem um colinho do pai. Na real, agora pode ser que elas queiram o colinho do papai AINDA MAIS.

E é essa a hora de mostrar que você é, realmente, um bom pai, que se preocupa com elas. Um pai que, ainda em sofrimento, está lá para elas. Oferece o colo. Atende as ligações. Responde as mensagens. Leva ou busca na escola. Pega o ônibus, o carro, o táxi só para se fazer presente. Tenta ajudá-las a compreenderem a mudança pela qual irão passar. Ajuda-as a terem a certeza de que o amor entre vocês não irá mudar. Comparece nos dias certos, pega no horário combinado, cuida delas com amor, pensa na roupinha, na diversão, se programa para recebê-las, cuida do seu canto para que elas sejam recebidas com conforto e carinho. Tantas coisas gostosas, tantas coisas simples, tantas coisas tão importantes…

Não é hora de dar piti, de agir como adolescente. Todo mundo sofre com isso, mais do que já estava sofrendo. Se houve problemas com a mãe dos filhos, não são as crianças as responsáveis, são os adultos. Resolvamos, pois, como adultos. Há ferramentas e dispositivos para nos ajudar quando necessário.

A separação conjugal quando se tem filhos não é um fim da relação entre dois adultos, entendam isso. É uma reformulação. Ali, não está dado o fim de uma família mas, sim, sua reconfiguração. Temos que compreender isso para lidarmos com nossos novos lugares. Quer sintamos dor, mágoa, raiva, frustração ou tristeza, as crianças vão continuar a precisar de quem as estava criando. Botem a mão na consciência, assumam o papel que lhes cabe e pensem nesses filhos que estão colocando em sofrimento. Nenhuma foto sorridente com as crianças no raro encontro que teve com elas compensa o sofrimento que vai dentro desses seres que precisam de você – enquanto sabem e sentem que você não precisa tanto assim deles.

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.