Não sei se você já assistiu aos filmes da série “Jogos Vorazes”, baseados nos livros de mesmo nome de Suzanne Collins. Demorei para assistir por puro preconceito, achando que se tratava de uma ficção científica fraquinha voltada para o público adolescente. Enganei-me. E não só me enganei como assisti ao primeiro, depois ao segundo e li os livros. Caso você não tenha gostado, me dê um desconto e lembre-se de que não sou nem pretendo ser crítica de cinema. Mas gostei muito mesmo. Não falo do estilo da autora, nem da direção do filme, nem de nenhum aspecto “erudito”, os quais não domino. Refiro-me à ideia: uma crítica social e política feroz, irônica e ácida de um futuro possível que me fez pensar inúmeras vezes já se tratar de uma hipérbole do presente real. De maneira bem resumida: o mundo encontra-se dividido em distritos, cada um especializado na produção de um tipo de bem de consumo, com pessoas exploradas e à beira da miséria, todos subjugados por uma Capital onde vivem os ricos, bonitos, posers, cultos e descolados – só que não, porque são bregas e fúteis, tomam comprimidos para serem felizes e vomitam a comida dos grandes banquetes para poderem comer ainda mais. Como eles têm tudo o que se possa comprar e já pouca coisa os diverte, o Governo, sediado na Capital, cria uma festa anual para relembrar a violenta derrota de uma tentativa de rebelião liderada por um dos distritos: todos os anos, cada distrito tem que ceder uma garota e um garoto para o que chamam de “Jogos Vorazes”. Todxs esses garotxs, de todos os distritos, são reunidxs em uma arena criada e controlada virtualmente para que lutem entre si até a morte. Morrem 23, se não me engano, e resta apenas um ou uma. Esse massacre é transmitido em tempo real para todo o mundo, de forma que os distritos veem suas crianças e jovens serem assassinados (as mães, pais e familiares, inclusive) enquanto os moradores da Capital se deleitam com as estratégias criadas, o sangue derramado, as traições, deslealdades e conchavos. Claro que os melhores (aqueles com mais potencial para matar os outros) recebem patrocínios de anunciantes. E todo ano acontece a mesma coisa, de forma que os distritos vivem na mais constante opressão, tensão e angústia, já que a qualquer momento um de seus jovens pode ser sorteado para morrer. Mas como não morrem todos e sempre sobra um, isso mantém a esperança desses miseráveis em pé.

E era aí que eu queria chegar.
Em determinado momento do filme, o presidente global, Presidente Snow (interpretado por Donald Sutherland), é questionado sobre porquê não ordena matar todos da arena ao invés de permitir que um deles sobreviva, produzindo, assim, líderes. E então ele explica que permitir que apenas um sobreviva mantém viva a esperança. E que controlar a esperança das pessoas é o que permite que elas sejam manipuladas e conduzidas. Que sejam iludidas. Sem esperança, desiludidas, elas não se deixam conduzir. Elas não trabalham. Elas não produzem. Elas não sustentam os outros. Com esperança, elas se tornam dóceis e assim ajudam a manter o que as oprime.
Vamos juntos a partir daqui?
Se você tem esperança de que algo/alguém mude, está considerando esse algo/alguém intrinsecamente capaz (e desejoso) de mudar. Acontece que nem tudo e nem todos querem, de fato, mudar. Ou nem tudo e nem todos possuem a capacidade de mudar. Às vezes, mudar vai contra seus próprios interesses. Se, ainda assim, você mantém sua esperança de mudança acesa, você está em um único estado: iludido.
Assim, quando dizemos que estamos tristes, magoados e desesperançosos porque nos desiludimos, porque vivemos uma séria desilusão, estamos em um estado de inversão das coisas. Estamos vendo as coisas pelo lado errado. Tendo força e clareza necessárias para colocar a dor de lado, a visão clara do que resta nos aponta não para a tristeza, não para a desesperança, mas para uma coisa muito valiosa: o contentamento. A satisfação. A gratidão. A tranquilidade e paz de espírito que vem de se conhecer a verdade, de não ser mais enganado, de não ser mais vilipendiado ou usado para fins outros que não o bem comum. Estar feliz por ver a realidade tal qual ela é. Ainda que doa, ainda que produza cicatrizes, conhecer e aceitar a realidade, a verdade, são algumas das poucas coisas deste mundo que verdadeiramente nos libertam.
Assim, desiludir-se é uma dádiva. Uma bênção.
E não sou nem um pouco original ao dizer isso. Gente muito graúda e relevante já disse isso e já disse faz tempo. Bachelard, por exemplo. Ele foi um filósofo francês, nascido em 1884 e morto em 1962. Bachelard é conhecido por ser “o filósofo da desilusão”. Ele diz, com muita sapiência:

“Somos o limite das nossas ilusões perdidas”

E isso não tem uma conotação pejorativa, muito pelo contrário. É algo altamente libertador. Nós somos não o que sabemos, não o que vivemos, mas tudo aquilo que desconstruímos ao longo de nossa vida. Tudo aquilo que, tendo sido uma vez ilusão, tivemos a capacidade de desiludir e tornar realidade. Somos frutos da desilusão. De tudo aquilo que hoje sabemos a partir do que antes julgávamos saber, e que não existia, ainda que acreditássemos de todo coração existir.
Eu entendo que você prefira evitar a dor mantendo-se iludido. Entendo também caso esteja querendo manter-se iludido para evitar o grande trabalho que dá promover a mudança necessária a partir do ponto em que se desilude. Entendo verdadeiramente. Porém, saiba: você não está vivendo a sua vida. Está vivendo a vida que querem que você viva. Está sendo enganado, menosprezado, subjugado. Está confiando em algo/alguém que está apenas usando a sua confiança para receber benefícios ou usar aquilo que você pode proporcionar a ele. Você e sua esperança estão sendo alimentados para produzir o que é importante não para você. Não para sua liberdade. E no fim, só um sobreviverá. E suas chances, assim iludido, lutando assim de olhos vendados, são muito poucas…
Ter esperança de que algo/alguém mude para melhor não basta. Achar que basta é tornar-se refém. Um refém cego lutando em um campo de guerra e sem qualquer chance de sobrevivência. Esperança só é útil quando de mãos dadas com a própria mudança. E a mudança só é possível em uma instância: a da pessoa. Individual. A sua. Só você pode mudar. Não pode mudar o outro, ainda que queira muito. Mas pode mudar a si, e isso já é um universo. Mudar a si envolve enxergar seus pontos falhos, suas tristezas, suas sombras, tudo aquilo do que você se envergonha em si próprio, e que já negou, e que já fingiu não existir. Enxergar tudo isso, acolher tudo isso e, enfim, mudar. Aos poucos. Isso dói, claro que dói. Mas é uma dor necessária, pois te liberta. Li
berta de amarras, vendas e ilusões.
A mudança coletiva se faz a partir de muitas mudanças individuais. A célula de poder da mudança coletiva é a pessoa. E essa pessoa é você.
Se você se sente ou sentiu, em algum momento, desiludido em qualquer área da sua vida – amorosa, relacional, profissional, em termos dos conhecimentos que julgava possuir sobre ser mãe, ser pai, ser sujeito de construção do mundo –faça as pazes com essa sensação.
A desilusão é amiga. Ela te conta umas verdades. Ela te diz coisas que você não queria saber. E só os amigos, os bons amigos, fazem isso. E isso, de se dizer o que não se quer saber, é das coisas mais insubstituíveis no caminho de nossa emancipação. E de posse de uma nova verdade – ou de uma faceta dela – a liberdade é conquistada. A autonomia é construída. Desilusão, como quebra da ilusão, é  como nascer, é como quebrar a casca de um ovo que te impedia a visão do mundo real. 
Com esse preâmbulo, convido você a ler a reflexão abaixo. Ela fala sobre mães, sobre pais, sobre escolhas e a quebra das ilusões. Fala sobre parto, sobre violência contra a criança e outras formas de desilusões.
Escrito por Ana Castro, para este blog. 
Ana é jornalista, doutoranda em Ciências da Comunicação e mãe da Tarsila. E às vezes também escreve aqui neste site.
Seja bem vindo ao mundo desiludido: aquele em que ilusão não tem mais espaço. 
Aqui não é muito confortável. 
Mas há verdade. 
E a verdade nos liberta. 
Vai por mim.

Por que dizer o que não se quer saber?
Por Ana Castro 

Você já parou para pensar o quanto a desilusão pode ser a melhor coisa que aconteceu na sua vida? Geralmente pensamos que se desiludir é algo negativo. Mas iludir-se é que o é. A origem da palavra ilusão vem do Latim: illusio era um recurso usado quando um orador queria debochar do adversário, então ele fingia dizer algo diferente do que na realidade ele estava falando. O orador iludia o seu interlocutor.
Você precisa marcar a cesárea porque seu bebê é muito grande. Porque tem 5 voltas do cordão umbilical no pescoço. Porque você é pequena. Porque você não tem passagem. Porque as mulheres de hoje em dia não dilatam mais. Ah! Você quer parto normal? Claro, vamos tentar. A tecnologia avançou tanto, não faz mais sentido sentir dor para parir. Parto domiciliar? Você é irresponsável, não somos mais índios. Episiotomia é procedimento padrão, senão os bebês estragam as mulheres. Eu prefiro cesárea porque não quero ficar fazendo xixi na calça quando for espirrar depois. Na hora de fazer você gostou, né? Você quer escolher como parir? Não, eu estudei anos e sei o que é melhor para você. Marcamos a cesárea para 38 semanas, o bebê já está pronto. Ele foi pra UTI? Que bom que tiramos antes, imagina o risco que ele estava correndo? Ah! O pulmão dele que não estava pronto. Não, não foi isso. Se não bater na criança ela não vai ter limites. Melhor apanhar dos pais do que da polícia. Eu bato para ensinar. 
O que mesmo?
O quanto nós, mulheres, estamos iludidas sobre a gestação, sobre o parto, sobre educação dos filhos, sobre o papel das famílias? Que realidade está sendo escondida? Qual discurso está sendo usado para nos manter em uma ilusão? O que estão dizendo que é natural, mas nada mais é do que uma forma de manter tudo como está? A quem interessa que continuemos iludidas? Por que é importante nos desiludirmos?
Parece que agora virou moda falar de violência obstétrica, como se fosse algo que passou a existir há pouco tempo. A violência obstétrica talvez seja tão antiga quanto a instrumentalização do nascer. Mas ela não tinha esse nome difícil. Assim também acontece quando o assunto é a violência contra a criança. Há gerações os filhos são criados como propriedades de seus pais, com seus corpos a mercê da benevolência ou do castigo.
Um importante sociólogo francês, chamado Pierre Bourdieu, entre tantas outras coisas, falava o quanto a tarefa de mostrar as coisas, como elas são, é extremamente difícil. Revelar o mundo social e os mecanismos de dominação é intolerável para os dominadores, que não querem ser desnudados, mas também para os dominados, que não querem ser desiludidos para não caírem na desesperança. É uma ação ingrata dizer o que, muitas vezes, ninguém quer ouvir.
Por isso, quando denunciamos a violência obstétrica ou contra a criança, é tão comum recebermos de volta discursos cheios de raiva, de incompreensão. O médico com anos de carreira, que estudou tanto, não quer ouvir que seu trabalho pode estar obsoleto. Que tudo o que ele aprendeu e faz cotidianamente está ultrapassado e que violenta as mulheres. Para mudar, ele teria que se desiludir de que está fazendo o melhor. E quantos estão dispostos a olhar para si e para a sua prática com esse olhar?
O pai e a mãe que batem no filho muito provavelmente também apanharam e sobreviveram. E hoje se tornaram pessoas “de bem”. Entender que a educação positiva e com apego, sem violência física ou verbal, é o melhor caminho para um relacionamento respeitoso, requer que esses pais olhem para si mesmos e para sua própria educação e se questionem. E se desiludam de que bater é o único caminho para educar.
As mulheres que “escolheram” a cesárea ou as que acham que os médicos salvaram seus bebês por terem marcado a cesárea na 38° semana porque o bebê estava grande demais ou com cordão umbilical enrolado no pescoço, muitas vezes não buscaram as informações baseadas em evidências que mostram os diversos riscos que estavam correndo por marcar uma cirurgia sem indicação alguma. Na maioria das vezes, deixaram que outras pessoas tomassem as decisões sobre seus corpos. Porque a alternativa seria empoderar-se e se tornar responsável por suas escolhas. E isso significa se desiludir com o médico fofo, que cuida dela desde a adolescência.
As mães que deixaram de amamentar seus filhos porque o pediatra disse que seu leite era fraco, que a criança estava com fome, que depois de 4 meses já podia dar outros alimentos para o bebê que chora, se sentem frustradas por acharem que seus corpos não funcionaram como deveriam. Moça, seu corpo é perfeito. E com ajustes, dedicação, paciência e apoio você conseguiria amamentar seu filho. Mas para isso, precisa se desiludir com o pediatra que a sua amiga te indicou e que acha o “máximo”.
As famílias que não percebem que a indústria da cesárea alimenta toda uma cadeia em que as escolhas e o bem estar da mulher e do bebê não são prioridades. Os bebês que são tirados pré-termo, com desculpas sem nenhum embasamento científico, são aqueles que vão lotar as UTIs neo-natais nos hospitais. E a UTI neo-natal é o que dá mais dinheiro às maternidades. O médico recebe praticamente o mesmo valor do convênio pela cesárea e pelo parto vaginal. Qual ele vai escolher? O q
ue pode fazer com hora marcada, inclusive de várias pacientes no mesmo dia? Ou o que ele não sabe quanto tempo pode demorar e precisa ficar à disposição? O sistema foi todo construído para dar sustentabilidade aos hospitais e médicos. Não para receber mulheres empoderadas que decidem como querem parir. Saber disso é se desiludir com esse sistema.
Mas quando a desilusão vai se aproximando, nossa primeira reação é a raiva. Por isso atacamos quem quer nos mostrar a verdade. Defendemos nossas escolhas e justificamos muitas vezes o injustificável. Nos sentimos inferiorizadas. Nos sentimos menos. Queremos dizer: quem você pensa que é para me dizer isso? Acha que é melhor do que eu? Não. Sou apenas uma desiludida querendo te ajudar a se desiludir também.
Bourdieu dizia que mesmo sobre esse risco do desencantamento com o mundo, conhecer a verdade era o único caminho para uma possível libertação. Nomear o que acontece, desnaturalizar os procedimentos, dizer a realidade é desiludir-se. E também é libertar-se.
Entendermos os mecanismos de dominação a que estamos expostos é a única maneira para limitarmos o efeito destes mecanismos. Graças a trabalhos baseados em evidências científicas – quando tais evidências são feitas para desoprimir o oprimido e não para aumentar ainda mais o efeito opressor – nossa  geração tem informações que podem iluminar esse caminho. Quando eu sei que há uma indústria da cesárea, eu ganho ferramentas para perceber se o médico é alguém que entende que a mulher é dona do seu corpo ou se ele é quem decide. Quando eu sei que bater no meu filho, além de ser ineficiente, é prejudicial a ele, preciso aprender novas habilidades que vão ser úteis para mim e para ele.
Mas por que, mesmo tendo acesso às informações, é tão difícil mudar o sistema? Porque nós somos o sistema. Às vezes estamos do lado dos dominados. E em outras, dos dominadores. E em toda sociedade, a dominação se dá também pelo poder simbólico que o dominador exerce sobre nós.
Por exemplo, nós admiramos os médicos. Há uma relação de respeito, mas ainda maior de dependência. Confiamos naqueles que estudaram anos sobre o corpo humano, sobre os tratamentos. Com seus jalecos brancos eles ganham estima. São os doutores. E nós pacientes, mesmo que nos sintamos incomodadas com algum procedimento ou comentário, sentimos vergonha ou receio de nos posicionarmos. Afinal, eles devem saber o que estão fazendo. Assim submetemos nossos corpos, às vezes a contragosto, à dominação do médico. Por dentro vivemos um conflito, a maioria das vezes nunca verbalizado, da fratura do eu com a cumplicidade com a decisão do médico.  
E quando nós somos os dominadores? Isso é comum quando nos tornamos pais. As crianças nos admiram, nos respeitam, mas também têm uma relação de dependência com a gente. A estima e o medo andam de mãos dadas. Sabemos disso quando as ameaçamos que vamos embora se elas não se comportarem. Elas obedecem, não porque entenderam o motivo ou porque nos respeitam. Mas porque nos temem. E temem ser deixadas por quem elas amam.
Saber as formas de dominação a que somos submetidos e as quais submetemos os que estão ao nosso redor é o primeiro passo para eliminar esses comportamentos. Mas é ilusório acreditar que as violências simbólica e física possam ser vencidas apenas com as armas da consciência e da vontade. Para Bourdieu a mudança só é possível quando o próprio sistema está em crise. É fácil entender isso. É o que acontece com a gente quando mudamos de opinião ou de atitude a respeito de alguma coisa. Sempre fizemos algo da mesma maneira, mas de repente aquilo começa a não fazer mais sentido para nós. E nesse momento ouvimos alguém falar algo crítico em relação ao comportamento. Ou lemos uma matéria a respeito. Aquilo encontra eco no nosso ser. E fica reverberando até que transforme tudo.
O atual sistema de nascimento e educação está em crise. A violência obstétrica está sendo denunciada e combatida. A alta taxa de cesáreas está sendo exposta. Médicos estão se posicionando veementemente contra a presença de doulas, enfermeiras obstétricas e parteiras na hora do parto, por se sentirem ameaçados. Muitos hospitais estão proibindo a presença destas mesmas profissionais. E outros tantos estão fechando suas maternidades por não darem lucro. Profissionais da saúde estão sendo questionados por mulheres e homens que estudaram, se empoderaram e se posicionam contra procedimentos desnecessários e ultrapassados. Hoje há uma lei que criminaliza a violência contra a criança, que proíbe o uso da violência física e verbal contra os filhos. Vivemos um momento de mudança.
Os discursos que pareciam tão naturais vão sendo desconstruídos. E na desconstrução vamos nos desiludindo. Nos desiludimos como indivíduos e como sociedade. Percebemos que o mundo é cruel, que a violência é o mecanismo de dominação mais usado para manter tudo como está. Por vezes choramos, perdemos o chão. Mas só depois da desilusão que é possível construir um novo caminho. Uma estrada onde a verdade seja o alicerce. Sem ilusões. Apenas com a convicção que a liberdade só existe onde há pessoas empoderadas, autônomas e responsáveis.
Somos livres quando não estamos iludidos.

Somos livres quando conhecemos a verdade. 

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