Por Raquel Marques

 

Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colasanti, 1972

Escola pública já foi boa, enquanto rara e destinada às elites. Com a universalização da educação, presenciamos tanto o surgimento de ilhas de excelência quanto a proliferação das escolas particulares. As públicas, especialmente as periféricas, foram aos poucos sendo sucateadas em boa parte do país. Neste contexto onde o serviço público se mostrou insuficiente, os pais que tinham condições foram tirando seus filhos destas escolas e colocando-os em alternativas privadas, o que reforçou o ciclo de abandono da educação pública.

Este movimento é típico da classe média: o da privatização das soluções, o clássico “salve-se quem puder”. Se a saúde pública está ruim, contrato um plano de saúde. Se a segurança pública está ruim, blindo meu carro e coloco um segurança na frente da minha casa. Se a educação pública está ruim, pago a melhor escola que eu puder para meus filhos. Transformamos direitos em serviços, abrimos mão do nosso papel cidadão pelo papel consumidor. Individualizamos responsabilidades, deixamos de buscar soluções comuns, nos afastamos da sensação de pertencer a um grupo.

Inicialmente, a solução individual parece atraente: com a assinatura de um contrato o problema está resolvido. Não nos exige dedicação, diálogo, tempo ou consensos. Nossa família está salva!

Salva até quando?

A capacidade de adaptação humana é uma característica que nos permite viver em condições extremas de temperatura, em ambientes tóxicos e adversos, nos permite ocupar todo o planeta e resistir. Contudo, esta característica pode ter um caráter nocivo quando implica na naturalização de absurdos, abusos e inversões de valores criadas pelo ser humano e passíveis de modificação. Em nome da necessidade de continuar, de acelerar, de produzir mais, de gerar e ganhar mais dinheiro, desumanizamos nossas relações, nossos espaços e a nós mesmos. Em pouquíssimo tempo, conseguimos encontrar formas de continuar existindo apesar de toda violência que a sociedade nos impõe e aceitamos esta realidade como algo natural, verdadeiro, dado e imutável. A que você se acostumou, mas não devia?

ESPAÇO E CRIANÇAS

Em uma conversa recente, ouvi uma pessoa atribuir a pouca sociabilidade de algumas crianças, excesso no uso dos eletrônicos, isolamento nos apartamentos e obesidade à saída da mulher para o mercado de trabalho. Segundo esta pessoa, a ausência da mãe no lar faz com que as crianças fiquem presas em seus domicílios, o que causaria uma série de consequências à sua saúde, comportamento e bem-estar.

Como boa feminista e mãe, inevitavelmente arregalo os olhos quando culpas são atribuídas a nós. Não porque mães não errem, mas porque elas são os alvos mais fáceis de toda culpabilização e tendemos a aceitar esta culpa sem resistência. Contudo, neste dia consegui tornar a conversa um pouco mais rica ao lembrar de outros fatores que levam as crianças a não terem acesso ao espaço público e ao encontro do coletivo, restringindo-as cada vez mais ao espaço privado e solidão.

CIDADANIA

Ser cidadão significa ser parte, ser reconhecido como membro da sociedade, compartilhando responsabilidades, interesses e direitos. Contudo, as crianças são pessoas alijadas de sua condição cidadã: são tolerados abusos jamais aceitáveis contra um adulto como humilhações e agressões, o aniquilamento de suas vontades e desconsideração de suas necessidades nos interesses públicos. Como incapaz, sem voz, renda ou voto, é esquecida enquanto pessoa integral. Em nome de sua segurança oferecemos confinamento. Em nome de seu disciplinamento oferecemos subjugação. Em nome do bem-estar futuro, não olhamos para a pessoa que já é, já está e merece toda consideração aqui e agora.

Essa cidadania não implica somente em mantê-la viva, com saúde física, dentro da escola e livre de violência física. Essa cidadania inclui o direito de brincar, de se expressar, de ocupar os espaços, de ir e vir integradas com todas as demais pessoas.

Agora, pense no melhor parque da sua cidade, lembre como são as ruas em volta, o acesso a ele, sua localização. É um espaço amigável a pedestres? Seguro para que crianças cheguem a ele? Fácil de acessar por transporte coletivo? Você vê crianças ocupando este espaço de forma autônoma entre amigos?

Pense na sua vizinhança: há espaços vazios para que as crianças possam brincar, como terrenos livres, quadras esportivas, praças amplas ou parques a uma distância razoável? E estes espaços são convidativos ou hostis? Há bancos, vegetação que garanta sombra, água para beber, iluminação, sinalização de trânsito em volta que privilegie os pedestres e calçadas boas no percurso?

Pense no seu condomínio: o projeto do prédio, sua convenção e os moradores entendem as crianças como cidadãs que precisam ser incluídas e ter seu espaço garantido nas áreas comuns?

SEGURANÇA

Por qual razão as crianças não podem mais sair sozinhas, ir para as escolas a pé, brincar de bola nas ruas, conversar nas calçadas, andar de bicicleta pelo bairro?

A primeira resposta talvez seja a falta de segurança, mas de qual segurança falamos? A possibilidade de violência por parte de estranhos ou o risco de acidentes automobilísticos? A maior parte da violência contra as crianças ocorre dentro dos domicílios e os acidentes, nos carros dos pais. Mas, ainda assim, como podemos minimizar os riscos externos? Talvez a resposta para ambos os problemas seja a mesma: pensar o espaço público para o uso coletivo, privilegiando o pedestre e convidando as pessoas a circularem.

Se andamos apenas de carro, fica muito difícil conhecermos, de fato, nossa vizinhança. Mas, ao fazer o mesmo percurso a pé durante algum tempo, logo os rostos passam a ser familiares. Descobrimos como se chama o senhor da venda, conhecemos as pessoas em situação de rua, percebemos outros vizinhos que fazem os mesmos percursos diariamente, e todos que antes eram desconhecidos tornamse familiares. Acompanhamos nesta rotina as pessoas começarem a namorar, mulheres engravidando, crianças aprendendo a andar e outras começando a ir para a escola. Sabemos também quem é do bairro, quem é novo, os espaços seguros e outros que precisamos evitar. Em vez de um enorme território ameaçador, o lugar onde moramos passa a ser nosso território, nosso pedaço, e nos tornamos mais seguras. O mágico deste processo é que quanto mais pessoas ocupam o espaço público, mais seguro ele fica. A rua vazia dá medo e faz com que evitemos o espaço, tornando-se cada vez mais vazia. Uma rua onde as pessoas transitam, onde os velhos conversam em frente ao portão, onde há comércio, onde as crianças sentam na calçada e conhecemos as pessoas, mesmo que de vista, torna-se um local seguro. Em tempos que clamamos tantas câmeras para monitorar e reconhecer pessoas, que falta faz a presença humana, amorosa e conectada para que possamos nos reconhecer e cuidar mutuamente. Quantas saudades das fofoqueiras na janela! Elas faziam um papel que hoje delegamos aos vigias.

O grande culpado destas ausências e impossibilidades é o planejamento urbano que privilegia o carro. A cidade carrocêntrica acua os pedestres em calçadas cada vez menores e malcuidadas, dirige a iluminação pública para o espaço dos veículos, cria pontilhões e viadutos que dificultam a circulação dos pedestres, torna a via pública poluída, barulhenta e desagradável. Em calçadas pequenas não há espaço para árvores, abrigos ou bancos, tornando os trajetos árduos a quem anda. Carrinhos de bebê são expulsos para a insegurança da via pela presença de postes, degraus e outras dificuldades que impedem sua passagem.

Tal prioridade se reflete em todos os espaços. Terrenos vazios viram estacionamentos e há poucos condomínios com áreas de lazer para as crianças, mas quase todos têm vagas para os carros. E ai de quem invada estes espaços com risadas e corre-corre! Arranha, machuca, amassa! O automóvel, claro.

Brincar de taco, pelada, pega-pega, rouba-bandeira, queimada ou polícia e ladrão na rua? Não pode, o carro pega. Mas quando foi que decidimos que a prioridade sempre seria do carro? Quando foi que decidimos que a maior parte das vias ficaria com ele? Quando decidimos que eles teriam passagem prioritária e facilitada, em detrimento das pessoas? Quando decidimos que o direito de ir e vir é sinônimo de fazer o percurso de forma mais fácil e rápida com um carro?

Contudo, mobilidade urbana não se restringe aos percursos a pé. Crianças precisam do direito de fazer seus trajetos de bicicleta e de forma segura. Cadê as ciclovias, senhor prefeito? E os transportes públicos?

Há como uma criança pequena andar de transporte público nos horários de pico, mesmo que com um responsável, com conforto e segurança? A resposta é não! A pouca variedade de linhas e pontos faz com que, em alguns casos, seja necessário caminhar bastante, o que é difícil para os menores. Ônibus, trens e metrôs lotados tornam a viagem dos pequenos desnecessariamente árdua ou inviável por ausência de espaço para, sequer, respirarem.

Sem calçadas, sem ciclovias, sem transporte público e sem alternativas, crianças, ainda que com adultos acompanhando, são cidadãs com dificuldades de mobilidade na cidade. A cidade não pensada para elas e suas necessidades. Isso torna mais difícil o acesso ao lazer, à cultura, à saúde, à convivência familiar e uma sé- rie de outras coisas importantes por não serem consideradas em uma necessidade básica: o direito à cidade.

CIDADES AMIGAS DA CRIANÇA

Pensando nisso, a UNESCO criou o Child Friendly Cities Initiative, a partir da Conferência das Nações Unidas para Assentamentos Humanos – Habitat II, com o intuito de compartilhar projetos que promoviam a Convenção internacional sobre os direitos da criança no âmbito municipal e a Fundação Bernard van Leer tem o projeto Urban95 para o fomento de iniciativas que melhorem a experiência com a cidade para pessoas até 95 cm, ou seja, geralmente crianças de 3 anos.

Embora o problema seja grande e complexo, existem caminhos para começar pequenas mudanças e não se deixar paralisar.

MOVIMENTO BOA PRAÇA

O Movimento Boa Praça é um exemplo do papel transformador que a criança e sua presença no espaço público pode mobilizar em toda a comunidade. Tudo começou quando uma menina pediu de aniversário à mãe um piquenique em um parquinho abandonado em uma praça pública. A partir deste desejo, a mãe mobilizou vizinhos e conhecidos para ajudar na transformação do espaço e realização da festa, que não só foi muito bem-sucedido como proporcionou a vá- rias pessoas o senso de pertencimento e responsabilidade com o espaço público, fazendo com que até hoje eles se reúnam mensalmente para cuidar da praça, fazer manutenção e deixá-la sempre mais bonita do que encontraram. Esta iniciativa, hoje, já acontece em outras praças de São Paulo e subsidiou a criação da Lei sobre Gestão Participativa de Praças que garante que os moradores do entorno sejam ouvidos e possam influenciar a tomada de decisão sobre o que é feito nas praças em frente às suas casas.

ÔNIBUS A PÉ

A iniciativa Walking Bus foi criada em 1992 na Austrália como uma forma segura de proporcionar que as crianças possam ir a pé para a escola, reduzindo o tráfego de veículos, encorajando a atividade física e economizando tempo dos pais. No Brasil, ela é conhecida como “Ônibus a pé”. Segundo a ONG Criança Segura este é um sistema no qual as crianças são conduzidas a pé, elas caminham em pares usando uma roupa com alta visibilidade. Os monitores voluntários responsáveis pela segurança de todos durante o trajeto, compartilham basicamente duas responsabilidades: um que vai à frente tendo a função de “motorista” e outro que segue atrás desempenhando o papel de “monitor”. As crianças são recolhidas nos pontos de parada do Ônibus a Pé de acordo com os horários estabelecidos. “Carona a pé” é o nome de um dos grupos que usa esta proposta. Em seu site é possível ver como esta ação acontece na prática e se apaixonar ainda mais pela ideia.

RUAS DE LAZER

Em muitas cidades, há leis que garantem a possibilidade dos cidadãos criarem ruas de lazer. A ideia é o fechamento de ruas aos domingos e feriados para que se tornem espaços de brincadeiras e socialização. Usualmente requer um abaixo assinado com a coleta da assinatura de 2/3 dos moradores da rua e sua entrega à autoridade competente. Se mudar a cidade inteira é difícil, mexer na própria rua talvez seja um passo possível.

“As crianças pedem, à escola e à cidade, mais autonomia e mais liberdade. E seus pais pedem, à escola e à cidade, mais controle, mais vigilância e mais proteção. São duas visões conflitivas e devemos escolher de que lado estamos”

Francesco Tonucci

Agradecimento especial à Irene Quintás, arquiteta e urbanista que me inspira e me ensina sobre a cidade na perspectiva das crianças.

Para se emocionar

Caminhando com Tim Tim

https://www.youtube.com/watch?v=UU5-hkBH2rw

Para se inspirar

http://www.redocara.com/
http://cidadeseducadoras.org.br/
http://childfriendlycities.org/
https://bernardvanleer.org/pt-br/solutions/urban95-pt/

Para se engajar

http://prioridadeabsoluta.org.br/mobilizacao/ruas-de-lazer/
http://www.observaprimeirainfancia.org.br/
http://movimentoboapraca.com.br/
http://criancasegura.org.br/wp-content/uploads/2016/08/09-1.pdf

Para pensar mais

http://cidadeseducadoras.org.br/reportagens/francesco-tonucci-a-crianca-como -paradigma-de-uma-cidade-para-todos/

“A solidão da criança” e “Com olhos de criança”, livros de Francesco Tonucci.

“História das crianças no Brasil”, livro de Mary del Priore