Muita gente está aguardando esse relato e o material que estou disponibilizando nele. Agradeço pelos inúmeros contatos nestes 3 últimos meses, solicitando a versão final da minha tese. Isso mostra não apenas confiança no que fiz, mas também um grande número de pessoas acompanhando essa trajetória e querendo levar adiante o que construímos coletivamente. Aqui há um relato longo, porém rico em insights que aqueles que trabalham com a questão da humanização do parto, da violência obstétrica, da violência à mulher, da violência institucional, ou qualquer outra interface com a qual esta pesquisa se relacione, com certeza poderão se beneficiar – e beneficiar outras mulheres. Portanto, recomendo que vocês o leiam para entender o que foi, realmente, esta pesquisa. O formato acadêmico de uma tese de doutorado é, com frequência, duro, pouco criativo, difícil de compreender e de pouca acessibilidade para quem não é da respectiva área. Por isso meu cuidado em querer produzir este relato e, também, transformar a tese em livro. Já estou trabalhando no livro fruto da tese, com linguagem simples, acessível, clara e objetiva para que possa ser aplicada no controle social, na produção de políticas públicas, nas atualizações profissionais e, principalmente, para que as mulheres possam compreendê-lo, incluindo inferências adicionais práticas que não estão na tese. Estou à procura, inclusive, de uma editora que tenha esses objetivos e possa fazê-lo chegar a um preço acessível às mulheres. Novamente, minha gratidão a todas as pessoas que tornaram essa pesquisa possível. Às centenas de mulheres que entraram em contato nestes 5 anos. Às companheiras que me apoiaram física e emocionalmente durante esse período de vida que foi tão complexo – e o primeiro insight compartilho justamente agora: é preciso muito preparo emocional para ler durante quase todas as noites de no mínimo 4 anos, relatos onde mulheres contam as tristezas, violências e dores que sentiram e ainda sentem. Nunca mais fui a mesma desde que comecei, nunca mais serei, mesmo tendo concluído. Felizmente. Pois estas mulheres me inspiraram e continuam a inspirar a despeito das adversidades. E, ainda mais importante, me ensinaram a não aceitar a violência contra a mulher de nenhuma maneira, nem contra mim, nem contra outras mulheres.
O INÍCIO
Minha filha nasceu em 2010 e a revolução se instalou na minha vida. O nascimento dela e a busca ativa por informação sobre como criar uma criança de maneira participativa, crítica, construtiva, para que ela se tornasse mais uma pessoa a lutar pela mudança do mundo e pela vida das pessoas, e não apenas uma consumidora passiva de recursos e vidas alheias, me fez encontrar as mulheres. E o encontro com as mulheres, especialmente as mulheres mães, foi o ponto de mutação da minha vida. Eu, uma mulher, até então nunca havia parado para refletir ativamente sobre nossa condição no mundo. Sobre como vivíamos, sobre nossas dores, nossos desafios, sobre a opressão e a crueldade do mundo contra nós, sobre como somos exigidas muito além do que podemos suportar e, ainda assim, suportamos. Nesse processo de busca de informação e de rejeição à informação midiática tradicional, eu descobri algo que, se ainda hoje é tabu e desconhecimento, há 7 anos era ainda mais: que mulheres eram violentadas enquanto gestavam e pariam suas crianças.
A MOTIVAÇÃO
Aquilo me pareceu tão hediondo, sobretudo por sua naturalização, invisibilidade e por ser tido como “praxe”, que não consegui passar batido, como se nada fosse. Quando me deparei com o dado de que 1 a cada 4 mulheres passam por violência no parto, não consegui passar batido. Quando refleti a respeito e vi que esse número era, na verdade, muito inferior à realidade – posto que 1 a cada 4 diz respeito apenas a partos naturais, excluindo da estatística todas as milhares de mulheres que passam por cesarianas, neste país com mais de 50% de cesarianas -, não consegui continuar.
Movida por uma vontade imensa de contribuir para a mudança e por uma grande insatisfação com minha área de trabalho e pesquisa anterior, especialmente insatisfeita e incomodada com a MEDICALIZAÇÃO DA VIDA e com a forma como ela altera, anula e destrói subjetividades em prol de interesses de poder, decidi, então, deixar tudo para trás e, com um bebê de 10 meses nos braços, recomeçar. Foi assim que deixei uma carreira de pesquisa construída com dedicação durante 15 anos para começar de novo, dessa vez em algo que pudesse, de maneira imediata, contribuir para a melhoria da vida das mulheres. Especialmente das mulheres mães. Com uma bebê sendo amamentada no colo, larguei tudo, prestei uma nova prova e tornei-me nova aluna do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina para fazer o meu segundo doutorado.
E para quê? Para OUVIR o que as mulheres tinham a dizer sobre a violência que estavam sofrendo durante a gestação e o parto.
Naquele momento, ainda a chamávamos apenas de “violência no parto” ou “violência institucional no parto” ou “violência institucional em maternidades” e o conceito de “violência obstétrica” estava sendo construído, principalmente por pressão do movimento social de mulheres em defesa de direitos.
COMO COMEÇOU?
No dia 25 de novembro de 2011, já novamente aluna, passei então a divulgar a pesquisa via mídias sociais. Facebook, naquela época, era ferramenta em crescimento, ainda pouco explorada, e foquei todo o esforço de divulgação no Twitter, no antigo blog e em dezenas de blogs e sites parceiros. A ideia era convidar mulheres que já haviam se reconhecido como vítimas da violência no parto a darem seus depoimentos. E isso porque eu não queria que as mulheres reconhecessem a violência vivida a partir de nomeação externa, não queria que as mulheres apenas “concordassem”, dizendo “sim” ou “não” para tipologias de violência que pesquisadores externos às suas realidades lhes ofereciam. Eu queria ouvir O QUE AS MULHERES TINHAM A DIZER sobre a violência obstétrica, o que tinham vivido, o que estavam chamando de violência, quem as tinha praticado, em quais contextos. Eu queria, sobretudo, que elas tivessem um espaço de fala e uma escuta ativa, porque sei, de experiência própria mas também baseada em inúmeros conceitos sociais, que a pessoa se reconstrói e se ressignifica no espaço da fala e da escuta. E, felizmente, foi o que vi acontecer com dezenas de mulheres.
PESQUISA VIA INTERNET
Como muitas sabem, a plataforma Cientista Que Virou Mãe se originou a partir do crescimento de um simples blog, que levava o mesmo nome, onde eu compartilhava não apenas minhas vivências como mãe tentando fazer diferente, mas também minhas angústias, descobertas e conexões neste caminho. E centenas de mulheres passaram a lê-lo diariamente ou com grande frequência, estabelecendo comigo e minha escrita uma conexão afetiva baseada na confiança. Então, em função desse canal de comunicação que nos permite muitas coisas que antes não seriam possíveis, toda a pesquisa foi delineada para ser feita via internet. Isso não é inovador, há centenas de pesquisas sendo feitas utilizando a internet como ferramenta e diversos organismos internacionais recomendam que seja ainda mais. ~ E É EXATAMENTE SOBRE ISSO QUE TRATA O PRIMEIRO ARTIGO PUBLICADO SOBRE ESTA TESE, QUE VOCÊ ACESSA AQUI, AGORA. Os demais estão em processo de publicação e, certamente, estarão disponíveis em 2017 ~.
Assim, convidei, via redes sociais, leitoras a participarem desta pesquisa, enviando relatos e respondendo ao questionário. Tudo isso, como deve ser feito por grupos e instituições de pesquisa confiáveis, dentro dos mais rigorosos preceitos éticos e mediante submissão e aprovação do projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da universidade. Somente após a aprovação da metodologia e dos questionários é que passei a enviar via e-mail, para as mulheres que haviam se inscrito a partir de 25 de novembro de 2011, tanto o questionário de pesquisa quanto o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, documento que garante às participantes que tenham seus direitos respeitados.
O ENTRAVE COM O COMITÊ DE ÉTICA
Sinto-me aliviada por poder compartilhar agora uma angústia que vivi por pelo menos 2 anos durante a realização desta tese de doutorado. Todo meu trabalho de pesquisa foi atrasado em cerca de 2 anos por simples e puro entrave que o Comitê de Ética me impôs. Coisa que não foi vista entre outros trabalhos e colegas com os quais convivi nestes anos. Foram-me feitas exigências que, simplesmente, inviabilizariam o trabalho. A cada exigência injustificável feita, respondi com fundamentação e firmeza – a mim só interessava levantar esses dados, fazer as mulheres serem ouvidas e respeitá-las acima de tudo, e eu iria até o fim nisso. Não é tão surpreendente assim que, num ambiente de ciências médicas e da saúde, um trabalho pretendendo falar sobre a violência praticada dentro de domínios médicos e de saúde – portanto praticada por profissionais da área médica e da saúde – tivesse entraves para ser realizado. Neste ponto, fui extremamente beneficiada por não ser apenas uma pesquisadora acadêmica, uma cientista, mas, acima de tudo, uma ativista pelos direitos das mulheres, uma mulher ciente da nossa realidade e que se pretende atuante socialmente: lutei firmemente para garantir que esta pesquisa fosse realizada. Todos os pontos necessários para que as mulheres fossem bem ouvidas e bem atendidas em suas dores foram garantidos. E nós conseguimos a aprovação, como deveria ser.
QUAL ERA A MINHA HIPÓTESE?
Já tendo lido os inúmeros trabalhos sobre a violência no parto disponíveis na literatura científica nacional e internacional, eu me identificava muito (e ainda me identifico, obviamente) com a ideia de que a violência obstétrica é uma clara questão de gênero, uma evidente violência contra a mulher. Mas havia uma questão que ainda estava pouco explorada: a violência obstétrica enquanto fruto da medicalização da vida, especialmente da medicalização de processos tão naturais quanto gestar e parir. Tendo conhecimento de que a violência obstétrica é praticada não apenas por médicos, não apenas por homens, não apenas dentro de instituições médicas, me interessava saber se e de que forma o processo de MEDICALIZAÇÃO, destruidor de subjetividades e caracterizado por um exercício opressor de poder e de anulação de autonomias, por si só não atuava como um promotor de violências. E, sim, eu consegui mostrar que o processo de medicalização – que vai muito além da prática médica, que vai muito além de uso de medicamentos (inclusive sendo confundido com isso), que é um fenômeno presente na sociedade como um todo, INCLUSIVE na prática de quem luta contra a violência obstétrica – realmente atua como porta de entrada para a prática da violência, como um palco onde a violência encontra espaço para fazer vítimas: mulheres gestantes e parturientes.
QUAIS FORAM MEUS OBJETIVOS COM ESTA PESQUISA?
Não tive como objetivo traçar um panorama ou um perfil da violência obstétrica no Brasil, inclusive porque isso não seria possível por meio de uma pesquisa que utilizou a internet como ferramenta – tendo em vista que nem todas as mulheres brasileiras têm acesso à internet. Meu objetivo foi descrever as experiências de violência obstétrica acontecidas no interior de maternidades brasileiras a partir dos relatos das mulheres que foram entrevistadas. Além disso, eu quis compreender de que maneira essa violência se relacionava ao processo de medicalização da gestação e do parto. De maneira bastante objetiva, eu quis, a partir das falas das mulheres:
– saber quais práticas elas haviam considerado como formas de violência obstétrica
– saber quais foram os profissionais da assistência ao parto que praticaram as violências relatadas
– descobrir qual foi o momento ou situação em que elas perceberam que haviam sido vítimas (porque isso nos oferece pistas sobre políticas públicas para o empoderamento e fortalecimento das mulheres a fim de coibir a prática da violência)
– e conhecer quais foram as possíveis consequências da violência que viveram em sua vida posterior, segundo a percepção delas mesmas.
E COMO EU FIZ PARA ACESSAR ESSAS EXPERIÊNCIAS E RESPONDER A ESSAS PERGUNTAS?
Foi uma pesquisa qualitativa, ou seja, mais me interessava saber o teor daquilo que elas diziam. Não tive como objetivo maior quantificar o número de violências ou quantas vezes elas apareciam entre as mulheres – embora eu tenha feito isso de maneira tímida. Eu queria saber o que essas mulheres haviam vivido. Um relato, que fosse, já era extremamente importante pra mim, porque um relato revela um mundo que representa uma realidade compartilhada por inúmeras outras mulheres. E um relato é especial e importante apenas por isso (#nenhumaamenos). Assim, para acessar as experiências das mulheres, eu enviei às que se inscreveram para participar da pesquisa um questionário com perguntas abertas e semi-abertas. Elas responderam e me devolveram (com toda a documentação necessária). E aí eu li cada relato inteiramente uma vez. Depois mais uma. Depois mais uma e mais quantas vezes fossem necessárias até identificar categorias importantes de serem ressaltadas, de acordo com os meus objetivos. Isso é o que a gente chama de análise de conteúdo por categorias temáticas. Foi um trabalho imenso, anos de leituras de relatos de mulheres, todos profundamente dolorosos. Posso assegurar: revivi, lendo cada um, cada dor sentida por cada uma dessas centenas de mulheres. Não foi fácil seguir e continuar… Pedi duas prorrogações (uma em virtude do atraso causado pelos entraves com o Comitê de Ética, o outro em função do meu estado emocional). Mas deu tudo certo. Felizmente, vez ou outra, a gente encontra gente de verdade lidando com alunos… Foi a minha vez de encontrá-los. Obrigada a todos que me concederam prorrogação quando eu solicitei.
De posse desse material – o bruto e o desbravado, digamos assim – eu fui fazendo as análises, inferências, ligações, interpretações, estudos e reflexões tendo por base um referencial baseado nos teóricos do processo de MEDICALIZAÇÃO, especialmente Ivan Illich, Peter Conrad, Irving Zola e Thomas Szaz. Foram anos estudando o que esses caras disseram, anos estudando a medicalização da vida e os inúmeros prejuízos que ela causa a todos nós. Portanto, quem se interessa por MEDICALIZAÇÃO DA VIDA encontrará nesta tese um vasto material a respeito.
E VAMOS AOS RESULTADOS – BREVE DESCRIÇÃO
Foram dezenas de páginas descrevendo resultados, em forma de texto, tabelas e gráficos. Dificílimo conseguir resumir em poucas linhas. Uso aqui, então, a descrição que fiz para o resumo do trabalho, obviamente bastante incompleto. Portanto, ao final do texto disponibilizo algumas das imagens que utilizei durante a minha defesa.
O trabalho mostrou que a violência obstétrica está com frequência presente no interior de maternidades, sendo promovida prioritariamente por profissionais que acompanham as mulheres em seus pré-natais (e isso aqui é bastante importante, porque as mulheres tendem a achar que a chance de viverem violência no parto é menor quando são atendidas por quem as acompanhou durante todo o pré-natal. E essa pesquisa mostrou que ISSO NÃO É VERDADE, que a maioria das mulheres foi violentada justamente pelo profissional que as acompanhou previamente…). Houve frequente desrespeito à Lei do Acompanhante, como já visto em outros trabalhos, e pouco incentivo à amamentação após o parto. Médicos obstetras, auxiliares de enfermagem, enfermeiras e anestesistas aparecem como os principais autores das práticas violentas, manifestas por agressão verbal, negligência, abandono, ameaças, incitação à cesariana contrária à vontade da mulher, desrespeito pela via de parto escolhida, marcação da cesariana sem consentimento, exposição do corpo nu da mulher, desconsideração do plano de parto, manifestação de crueldade, abuso anestésico, arrogância médica, tortura física e psicológica, preconceito de gênero, entre outros, com consequências devastadoras para a vida das mulheres.
CONCLUSÕES
Novamente, foram dezenas de páginas com inferências, reflexões e convites ao debate, que se tornam difíceis de serem reproduzidas aqui. De maneira resumida, sim, concluí que a violência obstétrica é promovida e favorecida pelo processo de medicalização social, especificamente a medicalização da gestação e do parto, sendo a autonomia da mulher anulada em virtude de interesses médicos e institucionais. A promoção da autonomia da gestante e da parturiente precisa ser restabelecida de maneira multidimensional, com a modificação da estrutura e das relações do cuidado obstétrico, reposicionando profissionais da assistência e reconstruindo as redes de apoio social e técnico, além de esforços na reconstrução do sistema, de forma a privilegiar estratégias e ambientes que favoreçam a desmedicalização do parto.
MAS NESTE PONTO EU CONVIDO VOCÊS PARA UMA REFLEXÃO MUITO IMPORTANTE
E é por isso que trago para cá, agora, uma parte do que discuto lá. Porque é URGENTE que a gente fale sobre isso.
Romper com o modelo institucionalizado e hospitalar de parto não representa, por si só, a ruptura com o processo de medicalização e, portanto, com o processo de anulação da autonomia da mulher. O que significa dizer que ter um profissional que se diz humanizado do seu lado não te protege de passar por violência obstétrica. Inclusive porque muitos desses profissionais, quando se recusam a abrir mão da aura medicalizante, que valoriza conceitos médicos, que age de acordo com uma hierarquia de poder que acredita ter com relação à mulher, já está exercendo um processo de violência. Enquanto houver transferência de tutela, das mãos da mulher para qualquer outro profissional, vai haver violência obstétrica. Especialmente porque, como diz Thomas Szaz, o processo de medicalização social é um processo que faz com que as pessoas, primeiro, idolatrem especialistas para, depois, tornarem-se dependentes deles. E se você idolatra especialistas, você se coloca em sua dependência. E se você se coloca em sua dependência, você está sendo, novamente, tutelada.
Se você tem um profissional ao seu lado que se diz humanista mas “pensa em termos médicos”, dá valor à diferença de status, defende uma suposta hierarquia de poder, o processo de medicalização está sendo reforçado, no lugar de combatido. Ainda não se está respeitando liberdades e direitos sobre os próprios corpos. Há, aí, uma porta aberta à sujeição das mulheres e de seus corpos, uma porta aberta à violência obstétrica. Mulheres ainda terão seus corpos e autonomias apropriados por terceiros.
Para enfrentarmos uma assistência que anula mulheres e, assim, abre portas para a violência, é preciso rejeitarmos o uso banalizado do vocabulário médico obstétrico, é preciso não adotarmos práticas obsoletas e, principalmente, é preciso problematizar o fetiche do consumo de tal assistência enquanto produto, posto que tal comportamento não seria mais do que a transferência do controle, e não a promoção real de autonomia. Manter a relação de dependência e desejo apenas reforça a cultura medicalizante do parto.
Não é tirando o parto das mãos dos médicos e transferindo a autonomia das mulheres para outras pessoas que vamos vencer a violência obstétrica. Incorrer, novamente, no endeusamento de profissionais, quaisquer que sejam eles, é uma característica fundamental da dimensão cultural e interacional da medicalização social e que, em última análise, aumenta a vulnerabilidade das pessoas – no caso, das gestantes e parturientes. O endeusamento de profissionais faz com que as mulheres estejam sujeitas ao controle de seus corpos e à coação de seus comportamentos. E isso leva à substituição do cuidado por coação e controle. Em outras palavras: novamente, por violência obstétrica.
É fundamental enfatizar a necessidade urgente de uma mudança que priorize a recuperação da autonomia da mulher a partir da apropriação do direito sobre seu próprio corpo e do acesso à informação, a fim de oferecer um contraponto à cultura medicalizante, que conta com o desejo da própria mulher daquilo que irá anular sua autonomia. É necessária uma recuperação de autonomia que passe pela inclusão da garantia de seus direitos na agenda de políticas públicas e no fortalecimento de movimentos sociais, e não apenas baseado num suposto empoderamento que passaria pelo resgate de “saberes e poderes femininos”, como reinvindica uma parte do movimento pela humanização do parto, posto que tais conceitos se baseiam numa compreensão biologizante de mulher, desconsiderando seu papel enquanto sujeito político.
A busca por um parto respeitoso e, portanto, o enfrentamento da violência obstétrica tem sido associada, especialmente pelas classes médias brasileiras, à dimensão “instintiva”, “natural”, do evento do parto, reduzindo a experiência do nascer e parir ao seu elemento biológico e atribuindo a ele um caráter determinista, e isso como contraposição ao modelo medicalizado de parto. Essa corrente de enfrentamento da violência obstétrica é inspirada por autores como Michel Odent, autor da frase muito bem conhecida, entre os membros do movimento pela humanização do parto no Brasil: “Para mudar o mundo é preciso, antes, mudar a forma de nascer”. No entanto, esta não deixa de ser uma visão determinista que associa a forma de nascer ao comportamento ulterior das pessoas, o que exclui de sua análise a dimensão social e de gênero e confere normatividade a um modelo ideal de parir e seus desdobramentos sociais. Esta abordagem vitimizaria duplamente as classes menos favorecidas economicamente, e especialmente as mulheres negras, condenando-as não somente ao parto violento, posto que o parto “holístico” estaria fora de seu alcance financeiro, quanto a um futuro qualitativamente inferior. O enfrentamento da violência obstétrica não pode considerar, apenas, a transformação de um modelo em outro. Mas a transformação radical de um modo de lidar com o evento do nascer e do parir que não considere apenas uma mudança “a vir a ser”, no futuro, como decorrência de um modo respeitoso de nascer no agora. Mas a uma mudança no presente, uma mudança ativa e conquistada pela recuperação da autonomia das mulheres e pela redução da heteronomia. A apropriação do direito sobre seu próprio corpo, a possibilidade concreta de diálogo entre profissional da assistência obstétrica e gestante/parturiente, as mudanças culturais que tirarão profissionais médicos, biomédicos e especialistas do caráter de endeusamento com que são considerados podem promover uma mudança mais efetiva, concreta, atual e duradora, posto que atua na dimensão da emancipação e da autonomia do sujeito.
E de que forma, de fato, podemos lutar pela autonomia das gestantes e parturientes de maneira prática e não utópica, e que contemple a todas e não apenas às mulheres da classe média? A resposta a essas questões é multidimensional; envolve a reconstrução das relações de cuidado obstétrico; a modificação de uma assistência centralizada na figura do médico obstetra para uma assistência em que obstetrizes e enfermeiras obstétricas, cuja formação se aproxima mais dos elementos do cuidado, possam ser inseridas no cuidado às gestações e partos de baixo risco, que representam a maioria das condições; a inserção formal das parteiras na assistência obstétrica, mediante devidos ajustes e adaptações necessárias para que isso seja viável; maiores esforços na desconstrução e reconstrução do sistema obstétrico de forma que ele passe a estar focado em formas de assistência que possibilitem o exercício de um parto relativamente desmedicalizado, ainda que dentro de uma estrutura institucional, caso das casas de parto e da assistência ao parto domiciliar inserido no sistema formal de saúde; com a transformação da formação e prática obstétricas mediante atualização de profissionais com base na medicina baseada em evidências, de forma a promover a humanização do cuidado ainda que de maneira institucional.
Dessa maneira, substitui-se a completa anulação da autonomia da mulher pela reconstrução de uma rede de apoio social e técnico que começa com a própria mulher, passa pela ressignificação de suas redes de relação (seus acompanhantes, seus familiares, seus amigos próximos), vai em direção às especialistas do cuidado de baixo risco (obstetrizes, enfermeiras obstétricas, parteiras, doulas) e, por fim, chegaria aos médicos cirurgiões obstétricos, de fato necessários em condições de alto risco, atendendo a nascimentos cirúrgicos dentro de centros cirúrgicos de modo a salvar vidas, com assistência humanista e reforçando a autonomia de todos os indivíduos. Esta parece ser uma solução menos utópica, e de fato possível, do que a completa e absoluta autonomia, que excluiria outras dimensões do cuidado, além da própria possibilidade de heteronomia.
PARA MUDAR O MUNDO, É PRECISO, ANTES, RECUPERAR A AUTONOMIA DAS MULHERES, PARA QUE ELAS POSSAM MUDAR A FORMA DE NASCER.
Para finalizar, é importante mencionar que há uma evidente mudança em curso. Uma mudança positiva. A professora Cecília Minayo cita os autores Domenach e Chesnais ao afirmar que é um passo muito positivo para a humanidade reconhecer como negativas as várias formas de violência. Segundo a autora, é um status muito superior da consciência social a respeito dos direitos dos indivíduos e de coletividade, que acompanha o progresso do espírito democrático, e diz:
É a era dos movimentos de mulheres, de homossexuais, de indígenas, de negros, de deficientes físicos ou de doentes mentais, de idosos, de descendentes de vítimas de genocídio, da cidadania das crianças e adolescentes, dentre outros. Esses personagens que foram crescendo como atores políticos no decorrer do século XX e, principalmente, no mundo depois da Segunda Guerra Mundial, ao se constituírem, passaram a influir na cena pública, transformando sua opressão e seu sofrimento em causas sociais. Eles chamam atenção para as consequências da violência para a integridade física, emocional e moral dos sujeitos e ressaltam seus efeitos para as gerações futuras” (MINAYO, 2006, p.22)
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