Atenção: conteúdo sensível. Sexo e violência psicológica.
Você já chorou no cinema? Mas chorar mesmo, de se lavar, sair morrendo de vergonha do mico de estar de olho inchado por um filmão romântico?
Já associou uma pessoa que acabou de conhecer a uma personagem de série?
Já ficou com uma música chata na cabeça, sem conseguir tirar por horas a fio?
Já amou loucamente uma cantora ou um ator pelo seu jeito de interpretar?
Decorou uma coreografia?
Repetiu bordão?
Não?! Nunquinhazinha? Então, parabéns! Você é alguém totalmente livre de influência midiática. A diferentona! Arrasa, deusa do desapego às telas. Rainha Haribô.
Agora, se você é criatura comum, dessazinhas mundanas, é certo que respondeu: “Ãrran. Sim!” SIIIIIIIIIMMMMMMMMMMM! E não há nada de mau nisso. A cultura – industrializada ou não – é imprescindível para a formação de nossa identidade. Livros, músicas, filmes, novelas, séries, desenhos animados, documentários, etc., são ferramentas sociais que se hibridizam com outros saberes para que possamos viver e fruir em sociedade.
Mas se a mídia é capaz de nos emocionar tanto, mexer com o nosso corpo, até ficar na nossa cabeça involuntariamente, como vamos acreditar que a apologia ao estupro, a cultura da violência contra a mulher e a cultura da pedofilia, propagada por todos os lados, em todos os ritmos e estilos, é inofensiva? Como vamos acreditar que ela é incapaz de influenciar o comportamento social?
Não, não é. Muito pelo contrário.
Ninguém nasce estuprador, torna-se estuprador
Há algumas semanas, uma menina de 16 anos foi a um baile funk, saiu de lá com o namorado e uns dias depois “descobriu-se” que foi estuprada por mais de 30 homens, com um vídeo que circulou pelas redes sociais exibindo seu corpo desacordado, sua vagina sangrando e estupradores se vangloriando de seu feito. Muito rapidamente, os jornais passaram a descrever as roupas que ela usava, o fato de não gostar de estudar e, aos poucos, foram construindo uma vilã e destruindo uma vítima. Mesmo que milhares de pessoas tenham “vestido” a roupinha “eu luto contra a cultura do estupro”, foi criado um certo consenso no senso comum de que este caso não seria “nada demais. “Ela estava procurando”. Usualmente, apontamos uma responsabilidade genérica para a tal “cultura do estupro”: machismo, patriarcado, capitalismo. Mas é muito raro falarmos da mídia e do seu papel nesta cultura. E, muitas vezes, falamos para culpar a vítima: “uma vida sem rumo, entre bailes funk e um tanto de droga”.
Mas, e o estuprador? Qual é o seu hit parade?
Vejamos… Abaixo estão trechos retirados de músicas. Se tiver estômago, clique nos links.
“Abre a porta logo, que eu quero entrar. Não adianta se esconder. O tigrão vai te pegar Mas eu tô com medo. Você vai me machucar? Sou teu tigrão gostoso. Só precisa relaxar. É na hora do espanto que o bicho vai pegar. Toma! Toma! Então Toma!”
Você pode me dizer:
– Ah, Suzy, mas é arrocha-tecnobrega, é pagode baiano, é funk, é proibidão!
Você pode, ainda, concluir que:
“Nada mais é do que alienação e fuga da realidade em que vive a maioria dos jovens de camadas mais pobres da nossa sociedade (…) É preciso fazer uma distinção, popular não é popularesco ou lixo. Se fosse assim não teria surgido o chorinho, o samba, o maracatu, o bumba meu boi, o Blues, o jazz, o rock, o sertanejo e etc.”
Sério, parça, tu curte música de qualidade? Clássico da MPB? Tipo Vinícius, o Poetinha? Então vamos lá.
“O professor de piano chegava e começava uma nova lição.
E a menininha, tão bonitinha, enchia a casa feito um clarim. Abria o peito, mandava brasa.
E solfejava assim: ai, ai, ai lá,sol,fá,mi,ré.
Tira a mão daí. Dó, dó, ré, dó, si.
Aqui não dá pé. Mi, mi, fá, mi, ré.
E agora o sol, fá pra lição acabar”
Algo mais moderno? Rock alternativo? Vamos lá também.
“Eu estou adorando ver a minha menina
Com algumas colegas dela da escolinha
Eu estou apaixonado pela minha menina
Pelo jeito que ela fala, olha, o jeito que ela caminha
Teu sangue é igual ao meu
Teu nome fui eu quem deu
Te conheço desde que nasceu
E por que não?”
Não? Sertanejo, uma coisa, assim, da terra, do campo?
“Mãos para o alto novinha
Tu tem direito de sentar
tu tem direito de gritar
tu tem direito de sentar, de ficar, de rebolar
Fica caladinha e desce, desce novinha”
Samba? Um clássico, como Noel Rosa:
“E as pastorinhas pra consolo da lua (…) linda criança, tu não me sai da lembrança”
Tem também a clássica:
“Mas, que mulher indigesta, indigesta. Merece um tijolo na testa”
Ou, de repente, samba de raiz, Martinho da Vila:
“Você não passa de uma mulher. Viu mulher? A recém-nascida já nasce mulher. Ai mulher. E a menina-moça também é mulher. Hein mulher? E a minha mãezinha também é mulher. Só mulher. E a vovozinha também é mulher”.
Não tem jeito, minha amiga. “A recém-nascida já nasce mulher” é a antítese cultural brasileira a “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, da dona Simone, aquela lá da França. A lógica Beauvoir era a de que as crianças de ambos os sexos reagiam e aprendiam da mesma forma a lidarem com os seus corpos e a interagirem com os adultos na primeira infância. Só que não. Aqui e agora, não.
Segundo os dados do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), do Ministério da Saúde “um em cada quatro casos de violência sexual infantil (exatamente 22% dos 14.625 casos pesquisados pelo VIVA) envolve uma criança de até um ano de idade”, as vítimas têm até 9 anos em 77% dos casos relatados. Segundo um relatório do IPEA, com base no mesmo VIVA, eram do sexo feminino 88,5% de todas as vítimas de estupro reportados em um ano. 92,5% dos estupradores de crianças eram do sexo masculino. Os agressores eram pais (11,8%), padrastos (12,3%), desconhecidos (12,6%), amigos/conhecidos (32,2%). Estes dados são, obviamente, a ponta de um iceberg. Trata-se apenas dos casos relatados. Tantos outros nunca chegam às estatísticas.
Para o estuprador, a recém-nascida já nasce mulher. Não passamos de mulheres, desde quando nascemos até a morte. Mas esta criatura que estupra também não nasce com uma doença incurável que o faz ter desejos por crianças e adolescentes. Parafraseando Simone, o homem não nasce estuprador. Torna-se. E é aí que entra a tal “cultura”, a do estupro, que anda de mãozinhas dadas com a da pedofilia, ao menos segundo os dados acima, em 88,5% dos casos. Isso não é um dado irrelevante. A maioria absoluta das vítimas dos estupros relatados são crianças e adolescentes. Bom, se, como disse o Andrew Calabrese, “nenhuma concepção de cultura no mundo moderno está completa se não levar em conta o espaço ocupado pela ‘mídia‘” (p. 4), então temos que pensar um pouco mais o espaço ocupado pela mídia brasileira nestas culturas.
O sistema midiático brasileiro surgiu, se estruturou e se consolidou baseado em relações de clientelismo e filhotismo entre membros de uma elite patriarcal de base escravocrata. Por conta de longos períodos de instabilidade e autoritarismo, alguns princípios básicos de democracias mais avançadas ainda são absurdamente incipientes por aqui. O papel da mídia na sociedade é um deles. Desde seus primórdios, a comunicação social é tratada como um negócio privado. Como se ter um canal de televisão ou de rádio fosse a mesma coisa que ter uma loja de roupas. Escolhemos nosso nicho e vamos lá. Mas não é assim que funciona.
Em primeiro lugar, lojas de roupas não têm limites físicos, como o espectro eletromagnético. Por muito tempo, as possibilidades de canais de rádio ou de TV eram limitadas. Além disso, mídia serve pra quê? Pra vender roupas? Com certeza! Mas vende também padrões de beleza e comportamento, valores sociais, credibilidade política e econômica. Vende a reprodução destas elites e a naturalização das suas práticas. Em segundo lugar, a mídia brasileira, em especial a cultura musical e a cultura televisiva, têm lugares centrais na sociedade. Diferentemente, por exemplo, dos Estados Unidos, nós não temos uma coisa como Hollywood e a maior indústria cinematográfica do mundo. Uma grande atriz americana é reconhecida por seus trabalhos em séries ou novelas? Não, o cinema ocupa o centro da cultura audiovisual nos EUA, seguido pela música. Em outros países, a imprensa escrita tem este papel de destaque. Até o rádio, em alguns lugares, é ainda central no consumo local. No Brasil, somente após o imenso investimento da ditadura civil-militar em uma rede nacional de canais de TV, distribuída por satélite, é que passamos a ter uma identidade cultural mais homogênea. E os donos destes veículos de mídia sempre foram muito próximos do poder político e dos valores elitistas tradicionais.
O avanço dos valores democráticos e da cidadania não se reproduziu como um avanço de um sistema democrático de mídia. Nós ainda não entendemos que a mídia, em especial a radiodifusão, presta serviço público essencial, assim como a saúde, a educação ou a telefonia. Daí, se a companhia de energia elétrica corta o fornecimento para determinados bairros de uma grande cidade ou se decide, por exemplo, limitar nosso consumo por kilowatts, nós reclamamos. Isto é um absurdo! Mas se nenhum programa de TV aberta cobre o nosso protesto, se vemos reiteradas situações de violência contra a mulher expostas nos outdoors, na TV, no anúncio do Youtube, nem pensamos que estamos falando de riscos sociais muito sérios, de concessões de serviços e financiamentos públicos e do nosso direito à informação e à comunicação.
Reproduzir a cultura do estupro, da pedofilia e da violência contra a mulher é uma ferramenta importante para a manutenção do patriarcado branco. E neste caso, o recorte racial é relevante. Temos cantores negros reproduzindo a cultura do estupro e da pedofilia, é fato. E é muito comum a responsabilização de artistas negros pela cultura do estupro. Mas os donos de gravadoras, das casas de show, dos festivais, dos canais de rádio e de televisão são majoritariamente homens brancos. Muitas vezes, filhos e netos dos senhores que estupravam as escravas – aqueles mesmos que foram citados pela Djamila Ribeiro no excelente VerTV que tratou do tema. Não é raro nas pequenas e médias cidades brasileiras encontrar envolvimento de apresentadores de TV e de rádio em episódios de pedofilia e exploração sexual infantil. A mídia, neste contexto, é uma ferramenta de naturalização e reprodução com larga história.
Se a música brasileira tem registros de referências à violência, ao estupro e à pedofilia desde os anos 1930, no setor audiovisual é a partir da década de 1970 que se intensifica a erotização infantil e a narrativa da violência contra a mulher por merecimento. Temos alguns destaques clássicos: a cena do estupro coletivo sofrido por Maria Cecília, 17 anos, por sua própria vontade, em Bonitinha mas ordinária, na versão de 1981,com Lucélia Santos no papel de Maria Cecília; o início das cenas apoteóticas de novela nas quais uma mulher apanha porque mereceu; e a popularização de programas de auditório vespertinos, com crianças ou adolescentes na plateia e mocinhas fazendo performances sensuais, tais como a Gretchen, no Raul Gil, ou a Rita Cadillac, no Chacrinha.
A pornografia é amplamente lembrada quando falamos em cultura do estupro. Todo e qualquer portal de conteúdo pornô vai ter uma sessão gangbang e centenas de mocinhas vestindo meias ¾ e uniforme colegial. Mas esta cultura é mais capilarizada, naturalizada, ressignificada há décadas. A tradição cultural machista da mídia brasileira nega à menina o direito à infância e à adolescência, transformando-a, desde muito cedo em objeto de fetiche.
Você não escapou, sua filha não vai escapar: estratégias midiáticas de erotização infantil e adolescente
Identificamos, desde os anos 1970, exemplos de erotização infantil e adolescente na mídia brasileira, divididos em duas formas genéricas:
- Exposição de crianças performando conteúdos adultos e altamente sexualizados, especialmente imitando dançarinas e cantoras;
- A adoção de artifícios identificáveis na gramática erótica global – adereços, falas, poses – em personagens e/ou participantes infantis e adolescentes.
O fenômeno das músicas sensuais foi muito rapidamente apropriado para o consumo e a atuação infantil. Começaram a aparecer canções infantis de Gretchen, depois vieram os anos 1980 e a noção de conteúdo sensível desapareceu completamente, gerando algumas cenas que se tornaram antológicas do “sem-noçãozismo” da programação infantil como esta ou esta. Mais tarde veio o Gerasamba e seu clássico Cinderela Baiana, embaralhando mensagem de paz, proteção à infância e
“tudo o que é perfeito a gente pega pelo braço, joga lá no meio, mete em cima, mete embaixo, depois de nove meses você vê o resultado.”
E fomos evoluindo até chegarmos na versão infantil de música de estupro coletivo e ao Show das Poderosinhas.
Eu dancei as coreografias de Gretchen e suspirava pelo Sidney Magal…ai! Chega que fico arrepiada lembrando daquele clone do clone argentino do Elvis ajoelhado, aqueles lábios carnudos, aquela voz máscula…
Se te agá!
Se te agarro com outro te mato, te mando algumas flores e depois escapo, ai ai ai!”.
Então, se eu suspirei e dancei, provavelmente a maioria dos homens da minha geração suspiravam pela Gretchen e idealizavam a Elizângela. Da mesma forma que você dançou “nesse raio de suruba me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém” e “dói, um tapinha não dói”. E a sua filha deve dançar a metralhadora, seu filho vai cantar “ô novinha eu vô te rasgá”. Pouco importa se você só assiste o Netflix, só bota Pequeno Cidadão pra tocar e só vai ao show do Palavra Cantada. Tem escola. Tem vida social. Tem peça de teatro que bota Lepo Lepo versão Alvin e os Esquilos na pracinha. Tem casa de festa, amiga. E, mesmo que a sua filha não ouça, não dance, mesmo que você problematize a transposição de conteúdo adulto para o conteúdo midiático infantil, não é apenas pra ela que esta mídia existe. É para alimentar e tornar o homem em pedófilo, minha cara. É para dizer que “não tem nada de mais, todo mundo é assim”.
No quesito crianças perfomando conteúdo adulto altamente sexualizado, é imprescindível dar destaque a uma excrescência da programação televisiva que está no ar há décadas. Programa Raul Gil. Nos anos 1980 este senhor já fazia a cena com uma menininha imitando Olivia Newton John em Xanadu. Repare nos coqueiros ChipChip e NhecoNheco, analogia fálica é só exagero da minha mente maldosa, né? E o Tchan Juvenil, já viu? Na década seguinte, um sucesso espetacular, Maísa. E hoje? Temos o programa Eu e as Crianças e o cabra explicando orgulhosamente como paga bem para exibir as criancinhas. A seguir, o grupo Cumplice Kids, cantando a canção de conteúdo infantil “Cúmplices de um Resgate”, afinal, é parte dos cotidianos infantis amar, ser impedido de amar e ser cúmplice no sequestro, ops! No resgate do amor. Pois sim. Logo logo completaremos meio século de exploração infantil no ar.
Só acontece nos programas do Raul Gil? Não. Tem mini Lady Gaga, mini Beyoncé, tem programa que “desafia” uma menina de 14 anos a fazer cover de:
“vem na maldade, com vontade
chega, encosta em mim
hoje eu quero e você sabe que eu gosto assim”
E depois veio Moulin Rouge, Beyoncé, Britney… E jurado dizendo “faltou sex appeal, querida”. A Internet também está repleta de crianças executando performances de conteúdos adultos. É exclusivo do conteúdo musical? Não, embora seja mais frequente neste cenário dos programas de auditório. Os programas de auditório funcionam como as rádios, reverberam os hits. Muitas vezes, com as letras ligeiramente alteradas para ficarem “apresentáveis” no principal canal nacional. Aqui a lógica é a da repetição. Pouco importa a alteração que se faça na letra, pouco importa que se edite. A vibração está na sua cabeça e a mensagem vai sendo reproduzida. Se algum sentimento de culpa ou mal estar pode passar pela cabeça deste homem que estupra, deste homem que decide por uma ação de natureza sexual com uma criança, a cultura abafa…
Mas isso não é responsabilizar a vítima? Não. A vítima jamais terá um pingo de responsabilidade. Temos que diferenciar cultura da pedofilia de pedófilo. Não são a mesma coisa. O pedófilo não escolhe sua vítima pela roupa que ela usa. Nem o estuprador. As crianças não são escolhidas como vítimas porque parecem disponíveis. Este raciocínio, que culparia as vítimas, é demasiadamente simplista e é parte da defesa do estuprador. As crianças são escolhidas porque são frágeis. O abusador ataca quando tem oportunidade, ataca bebês vestidos com fraldas, ataca idosas, ataca doentes terminais em hospitais. O nosso ponto é que, ao transformar crianças em objeto de fetiche, ao reverberar a ideia de que mulheres são como bonecas infláveis – bastaria pegar e usar – ao divulgar apologias do estupro, ao banalizar a sexualização precoce de meninas e meninos, a mídia negligencia o cuidado com a infância. E a sociedade, ouvindo refrão de canção grudenta, reproduz a mesma irresponsabilidade social.
Quando consideramos “nada demais” casas de festa infantil tocando músicas nas quais o papel feminino é exclusivamente o da sexualidade exacerbada, estamos dizendo ao estuprador-pedófilo: é assim que um homem deve se comportar, vá em frente! E, também, é assim que se materializa o discurso de que “estas meninas são precoces”, “estão prontas para o sexo”, “se oferecem”. Ou seja, sexualizar as meninas na mídia, na moda, na música, nas danças, na maquiagem, é artifício da cultura do estupro para minimizar o horror do ato do estuprador pedófilo, serve para diminuir a responsabilidade do aliciador e do abusador sexual. Combater a sexualização precoce das meninas não é reproduzir o discurso culpabilizante da vítima nem é mimimi das invejosas, é coibir a naturalização da imagem da criança como objeto sexual.
“Quem sai na balada já viu, reparou, o que tem de novinha fazendo amor…que é isso, novinha? Vai matar o papai!”
“Vem, novinha! Delícia do papai. Que as mina tudo pira no jeito que o papai faz”
“Quando eu mandar descer tu desce. Tudo que eu pedir tu faz. Batcabum. Batcabum. Batecabunda no colo do pai”.
Esta figura do “pai” também não aparece por tão frequente coincidência. Segundo pesquisa da ABRAPIA (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência), os principais abusadores sexuais de crianças e adolescentes são os pais (36,39%) e os padrastos (23,37%), quase 60% das vítimas foram abusadas por figuras paternais. E, sim, como diz a arrasadora reportagem da Isabela Moreira, a novinha é apenas uma criança.
Outra estratégia, esta específica da produção televisiva, largamente utilizada na erotização infantil e adolescente é a adoção de artifícios identificáveis na gramática erótica global – adereços, falas, poses – em personagens e/ou participantes infantis e adolescentes. A menina que apanha do pai de cinta ao ser pega num quarto de hotel com um estranho, arrastada seminua pelo lobby e exposta ao vexame público, é interpretada por uma atriz adulta. Mas mesmo que a idade da personagem seja 20 anos, seu comportamento é de adolescente: trata mal os avós, só quer viver em festas, iludida com dinheiro e fama. A surra, tão desejada, a tornou uma pessoa melhor. A cena se repete com uma mãe no papel de “educadora”. Por que a dramaturgia necessita que estas personagens estejam parcamente vestidas? Não há tanta diferença entre Dóris e Isabel, nuas ou quase nuas, apanhando de cinto porque mereceram e a atriz pornô com a roupinha de colegial dizendo “eu fui uma menina má, mereço apanhar”. O cinto é o mesmo. A mensagem também e ela é clara, embora subjetiva.
Mais um exemplo?
Episódio Valentina no MasterChef Junior. Muito se falou, do nada os ogros saíram das tocas e atacaram no twitter uma menina de 13 anos num programa de culinária. Bem, a edição brasileira deste episódio é bem diferente do que se vê nos outros programas da série. Embora se perceba claramente o cuidado da produção em não expor as crianças a riscos com facas e mecanismos de cozinha. Apesar dos jurados parecerem mais “fofinhos” do que usualmente o são nestes programas de competição, há que se observar alguns detalhes. O primeiro é o figurino. Meninos, camisetão. Meninas, sombras, batons e:
- Daphne, no minuto 35:02: tênis, meia rosa até o joelho, minissaia rosa de preguinhas, camiseta, marias-chiquinhas, voz trêmula, morde o lábio inferior ao olhar para o jurado bofão. É um segundo. Mas a câmera não deixa de exibir o close da mordidinha e do olhar. E o figurino? Bem, lembra a colegial, aquela de que já falamos? Pois é. Vem o segundo jurado, na minha cabeça é a cara do tio taradão gosmento. Mas esta é só a minha cabeça. Tarados não têm cara. O francês, digno do refinamento da cozinha que interpreta, não pega nenhum talher para provar o prato, come com a mão, fazendo barulho, vai até a menina, invade seu avental e ali limpa as suas mãos. A menina pasma. E ele diz: “Bom“.
- Minuto 41:33, o mesmo jurado, incentivado por uma colega, pega a flor do prato de um participante, chupa a flor para tirar o molho e diz: “Dá de presente pra sua mãe, tá?“. O menino leva a flor chupada para a constrangida mãe na plateia.
- Luiza, minuto 42. O primeiro comentário deste senhor francês para a menina é: “Que olhos lindos você tem”.
- Valentina, colar no formato de coleira bem justo no pescoço, voz frágil. Aparece por duas vezes comemorando boas notícias abrindo os braços, jogando os cabelos longos para trás e dizendo “yeeessssss”, como no minuto 51:57. Valentina parece frágil. Valentina chora e precisa ser consolada pelo tiozão bofão juradão. Não podia ser a jurada a consolá-la? Não. Tem que ser bofão.
Sim, pode ser que seja tudo espontâneo e que ninguém, além desta mente perversa, tenha pensado que as meninas estavam ali representadas como objetos sexuais. Mas entre toda a equipe de produção, edição do canal e exibição, ninguém mais poderia atentar que este tipo de exposição de crianças poderia resultar em mensagens pedófilas nas redes sociais? Se é necessário ter consultoria de segurança para não expor as crianças ao risco de se queimarem ou cortarem, por que não há consultoria para não expô-las à fetichização?
Estes são exemplos pontuais. Há outros tantos. Passa pelo entrevistador idoso dizendo a uma atriz que quando ela tinha 9 anos e sentava no colo dele, aos 40 e tantos, ele tinha sonhos eróticos com ela. Passa pelo mesmo canal incluindo um senhor que se assumia como efebófilo num reality show e, depois, usando a sua programação para explicar, didaticamente, que pedofilia não é crime. Nem precisamos lembrar que o tal senhor foi preso alguns meses após o programa, por pedofilia.
Aliás, por falar em não lembrar, alguém lembra de algum texto em jornal falando que meninas de 11 anos praticavam sexo consensual com senhores de 48? Pois é, naturalização do estupro.
Há pouco tempo, tivemos um artigo na Revista Pixel e a monografia da jornalista Júlia Quinan, defendida na Escola de Comunicação da UFRJ, onde a TV finalmente aparece nas análises sobre a cultura de estupro. Vai do final da tarde na novela infanto-juvenil, quando uma menina é sequestrada pelo seu pretendente e começam a namorar depois de um beijo roubado no cativeiro, até a cena romantizada do estupro na série do fim da noite. Mais e mais do mesmo.
Tabu da mídia, tabu da cultura pedófila
O controle autoritário do que se dizia e do que se exibia nos meios de comunicação na história recente do país acabou gerando um trauma com a ideia de censura que funciona como um mecanismo de permissividade com o conteúdo midiático. Virou tabu falar em controle da mídia. Associando este tabu ao fato de que nunca tivemos plena noção de que os meios de comunicação prestam serviço público, fundamental para a nossa vida em sociedade, temos um cenário de comunicação de massa no qual jamais se questiona os limites sociais. Por outro lado, a pedofilia, o estupro e a violência contra a mulher são tão naturalizados que a resposta automática da censura e da “viagem” já vem pronta.
Qual é a solução? Desligar a TV? Trocar a música? Não ir no show? Comprar spray de pimenta para as meninas? Trancá-las em casa?
Não!!!! A saída liberal do “tirar o meu da reta” é falsa. Importam tanto as crianças tendo acesso a conteúdos que naturalizam a exploração sexual de crianças quanto os pedófilos tendo este tipo de programação reverberando. E não vamos nos iludir com as ilhas de excelência no Netflix, no Youtube. Assistir a alguns youtubers é didático para ver o tipo de coisa que estão ali falando sem nenhuma espécie de filtro. Bem ou mal, a classificação indicativa ajuda muito– é por isso que eles querem acabar com ela.
Não podemos tratar um problema epidêmico – temos o mais ou menos o mesmo número de estupros de crianças em um ano que o número de casos de chikungunya, então, é epidemia, sim! – sem pensar em políticas universais. Está na hora de quem se interessa pela questão dos direitos da infância abrir o leque. No que diz respeito à mídia, estamos muito restritas à esfera do consumo e do consumismo. É claro que é fundamental lutar para o fim da publicidade dirigida às crianças. Mas temos muito o que avançar no sentido da obrigatoriedade de conteúdo dirigido às crianças e de horários de proteção nas grades de programação, por uma regulação de conteúdo que estabeleça limites ao que é exibido e tocado em espaços públicos, escolas, shows que possam ter crianças como público. Regular o conteúdo comunicacional é uma arma da qual não podemos abrir mão. E não é uma luta fácil.
Sempre que se tenta regular conteúdo, há uma série de justificativas desleais que entram em pauta:
1) A liberdade de expressão, a ideia de que o controle é censura. Este é um argumento batido que não encontra reflexo na legislação internacional do setor. A própria legislação dos EUA, que tanto inspira este discurso, abre exceção para a liberdade de expressão quando se trata da proteção de menores.
2) A máxima de que a programação é responsabilidade do público (é assim porque o povo gosta). Ou seja, a culpa é da vítima. Como se o gosto fosse algo nato e não adquirido ao longo de várias experiências. Se a mídia tivesse tão pouco poder de convencimento, pra quê se gastaria tanto dinheiro em publicidade e merchandising?
3) A defesa da liberdade sexual. A defesa da diminuição da idade máxima para a pedofilia. Há um projeto claro neste sentido, proposto na redação do projeto de novo Código Penal, que alteraria a idade máxima para 12 anos. Esse paranauê é muito sério. De tempos em tempos o discurso das liberdades sexuais tenta avançar a ideia de que sexo consensual entre adultos e crianças deve ser considerado uma prática sexual como tantas outras. Sempre, é claro, afirmando o exagero da punição aos homens adultos que fazem sexo com adolescentes. Até dona Simone, aquela mesma. Isso, menina! Até Simone de Beauvoir já assinou petição para baixar de 15 para 12 anos a idade para criminalizar o sexo com menores na França. Igualzinho Paulinha quando disse que não havia nada demais em perder a virgindade aos 13 com Caetano, um homem de 40. “Caretice pura! Moralismo seu, migaa! Efebas e efebos devem ser livres para o pleno exercício da sexualidade!”. Bem, sabemos que esta idade mínima para fazer sexo sem cometer um crime já teve muitas variações, de acordo com as épocas e contextos. No entanto, no contexto brasileiro de violência epidêmica e exploração sexual infantil, o argumento soa mais como um castigo para as vítimas do que o aumento de liberdade de expressão sexual. Considerando que as vítimas são majoritariamente femininas e os agressores masculinos, trata-se, também, de uma premissa profundamente machista. Se formos ver qual a cor da pele das meninas que são vendidas a torto e a direito nas beiras de estradas chegaremos a outra obviedade, não é mesmo?
4) É genuinamente cultura popular. Nós somos assim. Este argumento sempre vem com aquele adendo da música de duplo sentido e das danças afroamericanas e latinas. É fato que a ironia, a malícia e o uso do corpo nas danças populares brasileiras são distintos da canção popular sérvia que também faz referência a metralhadora e de tantas outras. Não se trata de interferir na cultura, trata-se da defesa da infância. A defesa dos direitos da infância é universal. Culturas estão em permanente transição. A nossa cultura popular é marcada pelas nossas histórias de opressão. Não se trata de algo cristalizado. Sabemos que Monteiro Lobato é um gênio, Noel Rosa também é. Mas é imprescindível ressaltar e contextualizar o racismo e o machismo presente nas suas obras. Assim como é importante problematizar o cancioneiro infantil para que a rosa não saia mais despedaçada depois de fazer DR com o cravo, nem Sambalelê precise mais de umas boas palmadas, nem Pai Francisco saia da prisão todo requebrado, parecendo um boneco desengonçado.
Inverter esta lógica nos permitirá o pleno exercício da cidadania. Por exemplo, há muito pouco tempo, o cigarro era sinônimo de glamour e as bebidas destiladas eram o que se tomava nas novelas ao chegar em casa, para relaxar. O fumo e o álcool fazem parte da nossa cultura popular. No entanto, não se vê mais personagens principais de novelas fumando ou bebendo uísque pra relaxar. Por quê? Por uma razão de saúde pública. A pedofilia e o estupro de adolescentes é uma questão de saúde pública.
5) Não há maldade, o conteúdo é ingênuo. Já há pesquisa suficiente no campo da comunicação que mostra a relação direta entre mídia e comportamento social. A alegação de ingenuidade num cenário tão repleto de exemplos ou é ignorante ou é cínica e negligente com as vítimas de pedofilia no país. Todos temos responsabilidade e capacidade de ação no combate. Os meios de comunicação, em especial a televisão e o rádio que dependem de concessão pública para funcionar, devem ter política clara de coerção da cultura pedófila e da cultura do estupro. Há que se lembrar que a finalidade destes meios é educativa, informativa e de entretenimento. Assumir o seu papel educacional é uma obrigação, não uma opção para os meios de comunicação.
6) Não é o programa, a música que causa a pedofilia, é o pedófilo. Este argumento vem junto com o “ensine seu filho a não estuprar”. Entendendo que um ser social é o resultado de diferentes formas de conhecimento, trata-se de uma disputa desigual: é muito limitado o poder das famílias na educação contra a massiva exposição de conteúdo com analogias e, até, apologias do estupro, da pedofilia e da violência contra a mulher.
Legal, mas regular a comunicação não tem perigo?
Tem sim! O controle do conteúdo midiático pode sofrer riscos.
O primeiro deles é o preconceito de classe e o preconceito racial. É muito comum associar o discurso pedófilo e o discurso estuprador às músicas e expressões vinculadas às culturas de periferia. Como ocorre com o pagode baiano e o funk carioca. É muito importante compreender que estas narrativas perpassam os estilos e formatos audiovisuais. Proibir o funk não teria resultados impactantes nos dados de pedofilia. No entanto, medidas como o projeto da deputada Luiza Maia, que resultou na Lei Antibaixaria, coibindo o financiamento público de artistas e empresas produtoras ou exibidoras de conteúdo audiovisual com textos, letras, imagens que sejam danosas à dignidade feminina e infantil poderia ter resultados muito positivos. Ainda mais se considerarmos que boa parte da produção e da exibição de mídia no Brasil depende de isenção fiscal ou verba pública. Naturalmente, haverá resistência. E ela repetirá o mantra: “querem barrar o gosto popular”!
O segundo risco, derivado do primeiro, é o de se pautar o gosto elitista para a produção cultural. Temos como exemplo disso o histórico tom eurocêntrico da produção dos canais públicos de mídia nas décadas passadas, em especial durante a ditadura civil-militar. Era um tal de concertos para a juventude pra lá, sarau das criancinhas pra cá, tratando as formas populares de mídia como “baixa cultura”. Isto é só expressão de classe, elitismo. O pleno exercício da cidadania não pode prescindir da pluralidade. Não se trata de acabar com os programas de auditório com dublagens de cantoras e cantores mainstream. Não se trata de colocar música sacra e filme iraniano no lugar do Raul Gil e do Cidade Alerta. Nem de proibir o exercício do jornalismo policial. Mas, definitivamente, o jornalismo do meio dia garantindo audiência pela transmissão do estupro de adolescente é um crime, agravado pelo fato de que é esperando que crianças estejam perto das televisões neste horário e pelo fato de que para 46% da população brasileira a TV é o único recurso de acesso à informação.
Outro risco no controle dos meios de comunicação é observar e respeitar as especificidades locais. É muito importante acompanhar a regulação internacional de conteúdo midiático, em especial em relação às crianças e adolescentes. No entanto, não é porque na Inglaterra há uma lista de palavrões tolerados por horários que no Brasil esta mesma lista vá funcionar. Num país continental estas coisas são ainda mais complicadas que nos pequenos países europeus. Um palavrão adquire conotações e pesos completamente diferente em distintas regiões do país. A porra, por exemplo. Porra, na maior parte do país, é usada como expressão de raiva. Na Bahia, porra é como o fuck dos americanos. Tem “lá na casa da porra”, “pegue essa porra”, “porra niuma” e tem “bora, Bahia, minha porra”. Vamos proibir o mantra de um dos maiores times nacionais de ser cantado na TV? Muita gente vai responder “vá pra porra!”. Palavrões também mudam de peso ao longo dos anos, então, pra pensar uma legislação sobre os níveis de tolerância brasileiros a conteúdos sensíveis, uma longa consulta pública e uma articulação densa do debate seria imprescindível.
Copiar a regulação de outros países, como se propõe tantas vezes, neste caso pode ser um problemão. Temos uma relação com a língua e com os nossos corpos muito específica. Aqui no Brasil, um mamilo à mostra não é necessariamente ofensivo. Menos ainda se estivermos falando de amamentação em público. Por outro lado, olhar menos para os países desenvolvidos e mais para países com contextos similares pode ser interessante. Na Jamaica há um estilo musical chamado daggering, muito parecido com o proibidão no Brasil, e incorporando o que os gringos chamam de “dry sex”, basicamente, estupro. A Jamaica tinha sérios problemas de pedofilia, estupro, homofobia e muitos casos de pênis quebrados em performances de daggering. Após um amplo debate, as canções com letras sexualmente explícitas e violentas foram banidas das ondas do rádio e das telas da TV. Acompanhar as negociações, impactos e resultados deste modelo pode nos dar algumas pistas.
Por fim, há que se lembrar sempre do fundamentalismo e do moralismo. Usualmente, grupos religiosos, com códigos morais mais restritivos, se interessam pela pauta da regulação da mídia. Mas são os mesmos grupos que atuam contra os direitos reprodutivos femininos e contra o debate de gênero nas escolas, por exemplo. Tem história nisso. A última grande iniciativa popular de controle da mídia veio justamente de uma articulação a partir de um grupo da igreja católica, vinculado à TFP, que se intitulava O Amanhã dos Nossos Filhos. No final do século passado, em 1999, este grupo coletou milhares de assinaturas contra a telenovela Torre de Babel resultando na solução dramática de explosão de um shopping com todas as personagens que “incomodavam”. De lá pra cá, os grupos religiosos se pulverizaram e diversificaram as orientações. Nos contextos de perseguição religiosa e de demonização de setores da sociedade, buscar o controle social de conteúdo pode ser um exercício de tolerância e aceitação coletiva interessante. Ele não pode resvalar, no entanto, para a discriminação.
Obviamente, estas culturas de opressão às crianças e às mulheres não são exclusividade do contexto brasileiro. Elas ocorrem em certa medida em vários outros lugares. Menos expressivas no contexto europeu, mais visíveis nos EUA. Inócuas no Canadá, dramáticas na Tailândia. É um problema global e diretamente atrelado ao próprio capitalismo. É do nosso lado, nas nossas telas, que a banalização do estupro e da pedofilia está escancarada. E são as nossas meninas que estão sendo estupradas desde que nascem. Temos que resgatar o princípio da proteção à infância. Se não encararmos a mídia como parte deste problema e como epicentro da solução, jamais conseguiremos mudar esta realidade.