Você já ouviu alguém falar que a amamentação prolongada causa cáries? Vamos pensar criticamente sobre a validade dessa questão?

Em primeiro lugar, o que seria um tempo "prolongado" de aleitamento materno? Vamos lá. Seis meses de aleitamento materno exclusivo é o mínimo recomendável. Uma criança sem dentes está apta a sugar. Um bebê com 18 meses está recém irrompendo o 1º molar, que determina uma mastigação mais vigorosa, de trituração, portanto está iniciando sua experiência de estabilidade mastigatória, mas ainda assim também está apto a sugar. Nesse mesmo período, segundo Freud, a fase oral está se encerrando, período no qual a criança compreende gratificação e prazer pela boca.  Quando a criança completa cerca de 27 meses, inicia-se a erupção dos últimos dentes, finalizando assim a fase de transição entre a sucção e a mastigação.

Então pense comigo: o que faz parte da natureza do ser humano? Antes de processarmos os alimentos e criarmos a borracha e o plástico, o que tínhamos era o peito. Portanto, parece natural que a amamentação seja mantida até a erupção do último dente de leite! Ela alivia os sintomas de erupção dentária, como irritabilidade e coceira (já sentiu que quando a gente faz o ato de sugar, isso coça a gengiva?); estimula o desenvolvimento das arcadas dentárias e principalmente da articulação têmporo-mandibular, sendo uma espécie de “musculação” que faz a mandíbula crescer; e ela faz praticamente uma “fisioterapia respiratória” que estimula a desobstrução do muco na região das vias aéreas superiores (e sabemos que criança tem um bocado de muco no nariz…), pois exige necessariamente uma respiração nasal – coisa importantíssima para as crianças que têm padrão de crescimento dólico ou mesofacial e tendem à respiração bucal. E tudo isso, todos esses benefícios, serem aproveitados somente por 6 meses é, no mínimo, um desperdício! Sem falar no vínculo, cumplicidade mãe/filho, ganho de imunidade, redução de processos alérgicos e mais uma lista de benefícios… E todas essas coisas deveriam ser consideradas principalmente no estabelecimento de políticas públicas que estabelecessem prazos maiores e mais compreensivos de licença maternidade.

Então, em algum momento da história, lá pelos idos de 1977, surgiram os primeiros artigos acusando o leite materno de ser o “vilão” da cárie em crianças. Nesse mesmo período, “coincidentemente”, a expansão do aleitamento artificial em substituição ao aleitamento materno já havia iniciado graças a vários determinantes, entre eles o poder econômico da indústria de leite em pó. E aqui recomendo fortemente a leitura deste artigo. E o argumento principal que foi usado – e meus colegas de profissão não me deixam mentir, pois todos fomos educados sob essa máxima acadêmica – era a freqüência do substrato (leite). Claro que uma boa parte dos bebês mama com assiduidade no peito e o processo DES/RE que expliquei neste artigo do blog Cientista Que Virou Mãe, acaba desmineralizando os dentes. Sim, não, talvez?

É neste ponto que entra o pensamento analítico: a cárie não é desencadeada por um só fator. Muitos estudos comprovam que o leite materno não teria poder desmineralizante suficiente para ser o causador da doença, portanto outro, ou outros fatores, necessariamente estariam envolvidos. Daí apontarem para amamentação, uma coisa de extrema importância para saúde do bebê, como sendo a terrível responsável por cáries, chegando a ponto de ser desaconselhada, é realmente muito sério. Que tipo de “desenvolvimento” está sendo prezado com isso?!

A cárie é uma doença multifatorial, onde os principais determinantes são o indivíduo e sua condição geral, a bactéria e sua não remoção eficiente e a alimentação que promove um maior aumento de substrato para bactéria e, por conseguinte, maior formação do biofilme (placa dental). Portanto, considere de suma importância as três seguintes ações:

1)Limpar os dentinhos desde a erupção, removendo o biofilme (a placa) o melhor possível.

2) Não apresentar açúcar até os 24 meses! Lembrando que alimentos industrializados, mesmo os salgados, na grande maioria das vezes o contêm. Isso precisa ser levado a sério! Criança não tem necessidade de açúcar!

3) A contaminação pela bactéria Streptococcus mutans se dá em algum momento, isso é natural, pois ela faz parte da flora bucal. Na maioria das vezes, ocorre pela saliva por intermédio da mãe ou do cuidador principal. Contando com isso, quanto melhor estiver a saúde bucal deste, menos concentração bacteriana na flora vai haver e, por conseguinte, menos nociva será.

Além disso, a saúde geral conta muito. Uso de medicamentos contra asma/bronquite, anti-histamínicos e antibióticos: a maioria contém muita sacarose na fórmula a fim de ser palatável, sendo que alguns deles ainda acaba reduzindo a salivação. Também não se pode deixar de citar que há um percentual de crianças altamente suscetíveis à cárie, as quais normalmente concentram grande número de lesões. 

Tudo bem. Mas e se algo não saiu como previsto e a doença se instalou? Fique de olho, a primeira manifestação visual se dá por meio de manchas brancas! Nessa fase, muitas vezes ela ainda é passível de regressão. Porém, sua evolução é muito rápida (coisa de semanas ou dias, às vezes), em função do esmalte nos primeiros meses ainda ser pouco mineralizado, muito mais fácil de “enfraquecer”. Quando mais cedo agirmos no controle da causa e auxiliarmos esse esmalte a remineralizar, mais possibilidade de controle e/ou regressão.

E a amamentação, onde entra nesse processo de doença? Se quando há saúde e equilíbrio o leite não provoca a desmineralização, em contrapartida também não ajuda a remineralizar quando há desequilíbrio pois, enquanto alimento, ele é um substrato que frequentemente “alimenta” as bactérias. Em casos assim, é importante ter bom senso e lidar de forma bastante aberta com a mãe e a família.

A terapêutica tem que ser uma via de mão dupla. Em primeiro lugar, temos que iniciar praticamente um “namoro”. Eles virão ao consultório nos visitar religiosamente uma vez por semana durante cerca de dois meses, pelo menos. Precisarão entender que iogurte infantil e industrializados em geral são doces, que sucos de caixinha e saquinho são doces, bolachas são doces, algumas bolachas salgadas contém açúcar, Nestogeno e Mucilon contêm açúcar e, portanto, estão PROIBIDOS! E a criança deve iniciar uma dieta super saudável, zero açúcar, de alimentos primários e comidinhas caseirinhas. Além disso, será necessário escovar muito bem e fazer uso de elemento remineralizante. A amamentação na primeira semana segue igual e se no andar do processo a desmineralização seguir progredindo, a sugestão é adequá-la. Como? Fazendo com que ela passe a ter um intervalo de pelo menos 3 horas, a fim de respeitar o processo des/re descrito anteriormente. E tudo isso com muito carinho, com muito respeito a uma mãe que se doa e se entrega à amamentação por puro amor. A partir daí vamos traçando juntos, profissional e família, um panorama do que pode resolver e do que não. Algumas vezes a doença é tão agressiva, o que chamamos de cárie rampante, que o desmame noturno pode ser considerado.

Cada dupla mãe-bebê deve ser analisada e olhada realmente como um todo. Ali não estão apenas alguns dentinhos precisando de ajuda. Ali estão dentes, bocas, pessoas em intensa simbiose, corações e almas. Vidas que se cruzam e se apoiam, processos de saúde e doença, dor e amor… Acima de tudo.

 

Referência Bibliográficas

Erickson PR; Mazhari E. Division of Pediatric Dentistry, University of Minnesota, USA. Investigation of the role of human breast milk in caries development. Pediatr Dent;21(2):86-90, 1999 Mar-Apr.

Nilza M. E. Ribeiro1, Manoel A. S. Ribeiro2 Aleitamento materno e cárie do lactente e do pré-escolar: uma revisão crítica. Jornal de Pediatria – Vol. 80, Nº5(supl), 2004

AMORIM, S. T. S. P. de. Alimentação infantil e o marketing da indústria de alimentos. Brasil.1960-1988. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 42, p. 95-111, 2005. Editora UFPR

 

 

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