Continuam exigindo das mulheres que elas suportem tudo caladas ou que, no máximo, falem pouco sobre suas dores, falem com modos, falem em código cifrado, quem sabe até em código morse, mas o melhor mesmo para a manutenção da velha aparência continua ser não falar. Silenciar. Usam, para isso, de justificativas das mais elaboradas às mais apelativas, e o suposto impacto sobre os filhos geralmente é, de todos, o mais baixo. “Você não deve falar sobre o que aconteceu com você, poupe seus filhos”. “Melhor guardar para si, coitadinhas das crianças”. “Pense no bem estar dos pequenos”. Mas essa sociedade ainda tão misógina se esquece de algo que deveria vir no topo: o bem estar das crianças está diretamente ligado ao bem estar de suas mães. Na verdade, nem acredito que não considerar isso seja “esquecimento”. A meu ver se trata de um ato deliberado: sabem que o bem estar das crianças depende do bem estar de suas mães – que representam a imensa maioria das cuidadoras. Mas escolhem fazer vista grossa porque se beneficiam disso. Quando exigem que mulheres não falem sobre os abusos, violências, tristezas, frustrações é porque não estão nem aí para elas, essa é a verdade.

Eu poderia estar falando de celebridades que, com frequência, são criticadas, ridicularizadas e julgadas pela exposição das situações de abuso que vivem. Mas não preciso recorrer a isso quando todos os dias tenho contato com inúmeras mulheres que vivem a mesma coisa, e não sob os holofotes do show business ou podendo sofrer e chorar em Paris. E que são julgadas e condenadas – e agora escrevo com tristeza – especialmente por outras mulheres.

Você, que está lendo, já deve ter vivido isso. Eu, que estou escrevendo, com certeza já vivi. E posso dizer que foi horrível. Porque como se não bastasse ter vivido situações tristes, que te abalaram, que te fizeram questionar seu valor, que muitas vezes esmigalharam sonhos, expectativas e planos, você ainda é julgada e criticada por falar sobre isso. Porque mulher, para grande parte das pessoas, é esse ser que só tem valor calada ou transformando dor em trauma. Imagina que absurdo você contar tudo o que te aconteceu.

Há alguns meses, vivi uma situação fruto desse silenciamento que exigem de nós – e não apenas o silenciamento é exigido como, também, exige-se sua revitimização, como se você, por falar sobre o que viveu, merecesse ser punida novamente pela coragem que teve. Imagine que audácia ter a coragem e a desfaçatez de contar o que viveu. Pois bem. Minha filha perdeu o pai há poucos meses, em 2022, que partiu prematuramente, trazendo a nós uma dor lancinante da qual estamos nos recuperando aos poucos, com muito amor – eu ainda não escrevi sobre isso, mas logo mais escreverei. Eu já havia perdido meu pai, que faleceu quando eu tinha 35 anos – escrevi sobre isso à época – e foi uma das piores dores que já senti porque, além de tudo, fui eu quem o encontrou caído sem vida. Mas nem mesmo essa dor se compara à que senti ao ver minha filha perder o pai dela. A todas as mulheres que são mães, desejo, muito honestamente, que não precisem segurar uma filha de 11 anos sobre suas próprias pernas cruzadas em cima de uma cama e abraçá-la com todo o seu corpo enquanto ela chora porque sabe que vai perder um pai que ama, com quem tinha um excelente relacionamento, que desejou seu nascimento, que a criou junto com você. Eu era uma mulher antes disso, antes dessa cena que tentei narrar e que jamais vou conseguir com propriedade, e sou outra muito diferente após aquele momento, poucas coisas hoje me amedrontam. Porque ver uma filha pequena sofrer uma dor tão intensa quanto essa está na dimensão das piores coisas de uma vida. Naquela noite, quando soubemos que nada poderia ser feito para salvá-lo, foi com muito custo que consegui fazê-la descansar, adormecer, na minha cama, onde ela dormiu por dias sucessivos para que pudéssemos estar juntas e chorarmos juntas quando ninguém mais sabia o que estávamos vivendo – quer dizer, quase ninguém, teve gente que sabia e escolheu nos deixar para vivermos isso sozinhas. Assim que ela dormiu, eu desci e chorei um choro que veio do meu útero. Eu estava completamente destruída. E não apenas por vê-la assim e por lidar com a proximidade da morte do meu ex-marido, o único cara com quem encarei ter um filho. Mas porque, além de toda essa dor, eu estava sendo atacada virtualmente por uma pessoa que criou perfis falsos apenas para destinar a mim um ódio, uma violência, como poucas vezes vivi. Essa pessoa me atacou das formas mais cruéis enquanto eu precisava estar forte para dar colo à minha filha. E tudo porque eu tive a coragem – ou audácia – de falar abertamente sobre muitas coisas dolorosas que vivi enquanto mulher e enquanto mãe oito anos antes, quando eu precisei me separar do pai dela. E a violência com que fui atacada neste momento tão difícil foi tamanha que precisei, por orientação da minha advogada, registrar um boletim de ocorrência contra a pessoa que me atacou – e que hoje sei quem foi, embora nunca tenha exposto.

É geralmente isso o que as mulheres vivem quando falam sobre a violência que viveram, a dor que sofreram, os traumas pelos quais passaram… Elas são atacadas com tamanha violência e em momentos tão delicados para que aprendam a calarem suas bocas.

Por que estou contando isso, no lugar de apontar os dados científicos que mostram como é benéfico para as mulheres falarem sobre a dor vivida? Por que estou contando isso, no lugar de enumerar as centenas de artigos científicos nacionais e internacionais que comprovam o poder curativo, regenerador e de elaboração do trauma que as narrativas das violências vividas pelas mulheres produzem nelas mesmas? São centenas de pesquisas, no Brasil e no mundo, que analisaram o impacto positivo gerado nas mulheres por campanhas como o #metoo, #meuamigosecreto, #meuprofessorabusador, entre tantas outras ações que têm e tiveram como objetivo abrir espaços para que mulheres contem o que viveram, para que não sejam apenas silenciadas, para que possam combater o perigo de uma história única, como diria Chimamanda. Mas estou contando isso no lugar de apontar artigos porque antes de ser uma cientista que alcança dezenas de milhares de outras mulheres, eu sou uma mulher. Antes de ser cientista, eu sou uma mãe. E por ser, primeiro, uma mulher, e depois uma mãe, eu consigo entender exatamente a dor que a gente vive quando outras pessoas desejam que a gente silencie para não expor situações estruturalmente complexas. Especialmente porque quando a gente fala, a gente, primeiro, encoraja outra mulher a falar. E, segundo, evidencia a coragem que temos em contraposição à falta dela em outras pessoas. E ser corajosa tem um preço muito caro para a maioria de nós – que muitas vezes pagamos com a própria vida, ou com a própria saúde mental.

Então eu resolvi escrever neste tom hoje porque, afinal de contas, escrever diretamente para mães, alcançando-as em níveis difíceis de serem alcançados, é o meu super poder. Se eu fosse compositora, talvez escrevesse uma música onde incentivaria outras mulheres a comprarem flores para si mesmas ou em que evidenciasse toda a traição que vivi. Se eu fosse uma artista plástica, talvez idealizasse uma exposição olhando olho no olho para o homem que me magoou. Se eu fosse uma atriz global, talvez fizesse uma live para avisar ao pai dos meus filhos sobre o horário dos remédios. Mas eu sou só uma mulher que escreve sobre a vida das mulheres que são mães, então é por isso que escrevo também hoje.

Mulheres falam sobre as dores e violências que viveram e vivem não porque faturem com isso, porque a imensa maioria de nós não apenas não fatura, como além de tudo é atacada. Mas porque muitas de nós morreram para que hoje tivéssemos o direito de falar. E porque é assim que nos curamos.

Não vamos calar as nossas bocas. Traremos o desconforto para a sala de jantar, para as rádios, os teatros, os cinemas e as redes sociais.

E recomendo que você, mulher que ainda julga outras, comece a falar o quanto antes. Também para que não se torne a algoz de outra mulher. Não será às custas do nosso silenciamento que você vai fingir que vive uma vida plena. Inclusive porque é por nossa coragem que você também poderá falar quando parar de projetar tudo isso em nós.

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Meu trabalho é orientar e apoiar mulheres nas diversas dimensões de suas vidas – maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico – além da popularização da Ciência e da divulgação científica. Se você precisa de apoio e orientação individualizados, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br ou nos chame pelo WhatsApp que te explicamos como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO. Você também pode se inscrever no Clube de Leitura e nos cursos online que ministro, é só entrar em contato. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Será um prazer poder te ajudar.