Esse tempo cinzento que menciono não é um tempo de outrora.
É o tempo de hoje.
Enquanto instituições respeitadas em todo o mundo comemoram conquistas importantes no que concerne ao respeito à infância, à criação e educação com amor e sem violência; enquanto pessoas, de maneira muito despretensiosa porém solidária, trocam suas imagens nas redes sociais apenas para lembrar que existe uma questão importante que não pode passar em branco – a violência contra a criança; enquanto delegados vêm a público pedir que se denuncie a violência, qualquer que seja ela; enquanto passeatas reúnem milhares de pessoas contra a violência; pessoas e instituições, com objetivos duvidosos de autopromoção ou outro qualquer, insistem em querer se promover com base na polêmica, prestando um desserviço à toda comunidade mas, principalmente, às crianças.
Hoje (26 de outubro de 2011), a Carta Capital postou uma matéria relatando a defesa do trabalho infantil pelo desembargador e, nada menos que presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Nelson Calandra, que garante não haver inconstitucionalidade nas mais de 33 mil autorizações concedidas por juízes e promotores entre 2005 e 2010 para que crianças a partir dos 10 anos trabalhem. Veja a matéria completa aqui.
Lendo a matéria, o argumento do desembargador parece muito coerente, não fosse um detalhe: permitir o trabalho infantil para que essa criança possa ajudar a sua família a subexistir é tirar do Estado a obrigação de garantir condições mínimas a essa família – e a essa criança. Ao ser perguntado sobre isso, ele responde que o juiz "até" pode fazer isso (veja: até pode…), mas seria muito difícil fazer cumprir a sentença. Se eu não me engano, não é para desempenhar tarefas fáceis que os desembargadores são nomeados. Ou existe outra explicação para seus vultuosos salários, pagos por quem tem ou não condições? Não. Ter excelente formação não é a justificativa para seus salários de 5 dígitos. Eu também tenho a primeira parte, e mal tenho 4 algarismos.
Também é recente a publicação de um livro de base muito duvidosa que, a despeito de sua autora vir a público para dizer que não incentiva a violência, incita pais despreparados à prática da palmada, do tapa na bunda, como forma de educação.
E ela é terapeuta, a autora. E infantil – pasme… Uma prova inconteste de que formação acadêmica não diz absolutamente nada sobre o preparo de um indivíduo para cuidar de outros indivíduos.
Ela diz que as crianças estão precisando de tapa na bunda. Em entrevista, ao discutir formas de violência, ela menciona o fato de que "a criança brasileira está prostituída na rua, está na cracolândia…" e eu, por livre associação, continuo a frase dela: que mal há num tapinha então, minha gente? E continua:
"A criança brasileira está chegando ao quinto ano do ensino público sem saber fazer uma conta de subtração. Isso é violência. Agora o congresso quer criminalizar uma palmada que um filho que olha para o pai e fala “cala a boca, seu idiota” toma? O pai que não coloca limites no filho está criando um monstro".
Essa autora absolutamente despreparada como profissional simplesmente pega o filho que xinga o pai, o isola do contexto onde foi criado, ignora a educação e atenção recebida, e diz: "Tapa nele!", afirmando que dar limite é dar tapa. Limite… Ela nem parece saber definir limite… Ela nem mesmo o tem, o tal do limite. Porque esse livro é de um abuso e obsolescência sem limites… E ela conclui a entrevista dizendo:
"Para dizer a verdade, no meu convívio profissional o que eu mais conheço, graças a Deus, são profissionais a favor de umas palmadinhas para educar. Eu vinha escrevendo o livro desde 2009. Quando deu o boom sobre o assunto, por conta do projeto de lei, comecei a correr para terminar o livro".
E aí, quando deu o boom sobre o assunto, ela e sua editora parecem terem visto uma chance de ganhar um dinheirinho – e falando bobagem e incentivando a violência contra a criança. Bobagem essa que, com toda certeza, tem um monte de mãe, pai, cuidador (e curiosos) despreparados lançando mão e dizendo: "Ó, viu, não sou tão louco assim. Eu bato, mas pode". Pode porque a moça disse que pode.
Muita gente bate nos filhos. E usa a frase "Eu sei o que é melhor pro meu filho!" como quem quer colocar o ponto final na conversa. A questão é que não sabe não! Algumas dessas pessoas até batem no peito por terem a coragem de bater nos filhos; outras, pensam que convencem ou minimizam sua participação no processo violento de antissocialização de suas crianças utilizando argumentos que parecem bem elaborados; outros, ainda, afirmam que também apanharam e "Tô aqui, sobrevivi". Desde quando o objetivo era sobreviver? Era pra matar, então?!
Bater em mulher é violência de gênero.
Bater em pessoas de outras orientações sexuais é homofobia, lesbofobia, bifobia, transfobia.
Bater em pessoas negras é racismo e agressão criminosa.
Bater em criança é educação?!
Obviamente, entrei em contato com a editora que publicou esse livro. Porque, sinceramente, uma pessoa querer escrever algo assim até que nem é tão ultrajante, porque, afinal, tem gente despreparada e oportunista pra tudo neste mundo. Mas uma editora publicar? Nos dias de hoje? Dias de incentivo à conscientização sobre não-violência e de incentivo à argumentação inteligente, embasada e pacífica em busca de soluções afetuosas para as questões da infância?
A editora me respondeu o seguinte:
Prezada Lígia
Agradeço o e-mail.
O livro realmente é polêmico. Porém, no entender da editora, não existe apologia à violência. Não é essa a intenção da obra. A própria entrevista já deixa isso claro, assim como o livro é claramente contra qualquer tipo de violência contra a criança.
Creio que as raríssimas manifestações de repúdio à obra aconteçam pelo desconhecimento de seu conteúdo.
De qualquer forma, acho extremamente saudável esse debate, para criarmos pais mais conscientes de seus atos.Atenciosamente
Obviamente, respondi. Afirmando que não são raríssimas as manifestações de repúdio, não, porque tenho conhecimento de pelo menos 3 redes e instituições que estão se mobilizando contra, isso sem falar nas centenas de mães e pais conscientes indignados que estão buscando formas de expressar seu desagrado.
E mesmo que fosse apenas uma manifestação de repúdio! Cadê o bom senso?
O livro não é, nem de longe, contra qualquer tipo de violência infantil, uma vez que tapa é considerado violência sim, inclusive combatido na forma de lei. Uma coisa é suscitar o debate. Outra, bem diferente, é abrir espaço para que uma profissional que, supostamente, deveria coibir esse tipo de atitude, possa defendê-la. É triste saber que, na visão da editora, não existe apologia à violência, pois ela está estampada no teor da obra, deixando-nos a certeza de que, portanto, há o claro interesse comercial advindo da discussão e polêmica. Com certeza é um debate extremamente pertinente para conscientizar mães, pais, cuidadores e a sociedade em geral sobre a importância de seus atos, debate esse que poderia ter sido gerado pelos meios contrários, não incitando a violência para que o assunto venha à tona e possa ser discutido, mas mostrando os inúmeros benefícios da educação com afeto.
Não há mais ou menos violência.
Não há violência levinha e violência fortinha.
Não há gradação.
Há a violência ou a não-violência.
Há os que prezam e divulgam ações pelo respeito à criança e há os que fazem apologia à violência infantil, ainda que usem de articulação linguística para contradizer o que eles mesmos disseram.
Há os que são contra. E há os que são a favor.
E você? Samba de que lado? De que lado você vai sambar?
Pra não dizer que não falei das flores, outros links para apoiar a educação sem violência.
O impacto da violência doméstica contra crianças e adolescentes na vida e na aprendizagem.
O uso de palmadas e surras como prática educativa.
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Conheça os livros de Ligia Moreiras Sena, "MULHERES QUE VIRAM MÃES" e "EDUCAR SEM VIOLÊNCIA – CRIANDO FILHOS SEM PALMADAS" (Ligia Moreiras Sena e Andréia Mortensen).