“Tratava-se de um pré-parto com seis ou sete leitos, todos ocupados, a maioria por mulheres em início de trabalho de parto (…). Concentrei minha atenção em uma parturiente adolescente de 15 anos, branca, rosto de menina. (…) Ela estava com os lábios secos, cansada e desanimada. Pelo prontuário, havia sido admitida na noite anterior em início de trabalho de parto. No momento em que cheguei, havia uma anotação recente de seu exame vaginal, constando um dilatação cervical de 7 centímetros. (…) Perguntei como ela estava se sentindo, se gostaria de ir ao banheiro. Um soro estava conectado a seu braço, e nestas condições, muitas parturientes se sentem limitadas em atender necessidades elementares, como urinar, mesmo com a bexiga cheia. Ela assentiu, e auxiliei-a em sua ida ao banheiro. Perguntei se gostaria de tomar uma banho de chuveiro; tentei animá-la, dizendo que o banho costuma ter um efeito muito agradável em sua situação.Ela ficou em dúvida e não aceitou. Preferia caminhar, ficar em pé. Perguntou se podia. Confirmei que sim, seria bastante oportuno, auxiliaria no trabalho de parto. Resolveu ficar em pé, ao lado da cama. Falou de seu namorado, era músico, tocava violão, gostaria que ele estivesse com ela. Nesse momento entrou uma médica residente [soube-o depois], que não estava presente quando cheguei. A residente chegou e mandou a parturiente deitar.Ela quis resistir. Apresentei-me e argumentei polidamente que ficar em pé era bastante apropriado para encurtar o trabalho de parto, além de ajudar a suportar melhor as dores. Ela [a residente] ignorou-me. Dirigiu-se à parturiente, escandindo as palavras: “Entendeu, mãezinha, eu quero que você fique deitada! Entendeu? Dei-ta-da!” (…). E partiu para o exame vaginal, ainda que este tivesse sido realizado há pouco tempo. Terminado o exame, reafirmou o comando: “entendeu, mãezinha, permanecer dei-ta-da, entendeu? E recomendou que a mulher fizesse força para baixo, para ajudar o bebê a nascer mais depressa. E saiu. (…) [a parturiente] pediu-me para ficar ao lado dela. Queria ficar em pé, avaliava que era menos doloroso que ficar deitada. Apoiei-a em sua decisão; vamos, então, ficar em pé. Nesse momento, chegou uma auxiliar de enfermagem e perguntou pelo nome da parturiente. A própria adolescente respondeu-lhe, e ato contínuo, a auxiliar informou-a de que ela iria para cesárea. Estranhei. Será que a indicação era a idade? A auxiliar também não sabia. Disse apenas que o médico mandou subir com ela. E lá foi ela para a cesárea, sem saber por quê. E enquanto caminhava em direção ao centro obstétrico, seguida pela funcionária que carregava seu prontuário, chega um residente [outro], e pergunta por ela: “Cadê a mulher que estava nessa cama?”. Respondi-lhe que ela acabara de seguir para a cesárea. “Nossa, levaram a mulher errada! Era essa [e aponta um leito] que eu mandei subir. Pede para trazer aquela de volta”. E do mesmo jeito que ela foi para a cesárea, voltou, sem nenhuma explicação.(…) E lá estava ela em pé, ao lado do leito, quando retorna a residente [a primeira], visivelmente contrariada com o descumprimento de suas ordens. Chega e manda a adolescente deitar, que irá examiná-la. De novo? pergunta a jovem. Sim, porque é preciso! responde-lhe a residente. E inicia um toque demorado, tentando fazer uma redução do colo [temi que provocasse um edema de colo, com tantos toques e tanta manipulação], diz à adolescente que estava baixinho, e que só depende de você, mãezinha! Se fizer força como eu te mandei, o bebê nasce logo, logo. E com os dedos na vagina da mulher, ordena que ela faça força para baixo. Ela implora: tire a mão daí, está doendo muito! Ao que a residente responde, energicamente: O que está doendo é a contração, que você não está aproveitando, porque fica gritando! Fecha a boca e faz força, se quiser ter seu bebê!”(relato descrito na tese de doutorado de OSAVA, 1997)
“Tinha uma mulher lá do preparo, do pré-parto lá, preparando as mulheres, falou na minha cara: você não acha que está velha demais não, pra estar parindo?. Falou na minha cara. Falou que eu estava velha pra estar parindo. Eu falei: não, eu não sou velha. Eu só estou maltratada; falei pra ela. E ela lá menina, e eu com dor e ela: se você não calar a boca… que se eu começasse a gritar que ela ia embora e ia deixar eu lá gritando. (Ester, 32 anos, 2º filho) – relato disponível em AGUIAR E OLIVEIRA, 2011.
Eu acho que o maltrato, tratam você como se você… Você já tá ali numa situação constrangedora, né, e assim, a pessoa falar grosso com você, falar grossa, de repente por ela estar com raiva de alguma coisa, ela vim te aplicar uma injeção e te aplicar de qualquer jeito. Eu acho que isso é uma violência, entendeu, dentro da saúde. (Taís) – relato disponível em AGUIAR E OLIVEIRA, 2011.
“Por quê, como diz a paciente Regina, é tão difícil saber qualquer coisa dos médicos, por que eles chegam e nem falam o nome e já vão levantandoa roupa, mexendo com a gente? Responde-lhe a sua parceira de enfermaria, a entrevistada Marta: é assim que é, não adianta reclamar[…]” – disponível em PEREIRA, 2004
“[…] eu não lembro direito, o médico disse que eu ia ter a criança normal, que cesariana não dava por causa do meu estado, por isso ia ser normal […] Aí eles falaram que ia pôr remédio para dar dor e doeu muito, a noite todinha e no outro dia também, toda hora fazia toque e era muito dolorido, eu sei que tinha hora que eu nem deixava dar o toque, não queria, e o médico fazia assim mesmo, que precisava né? Mas doía e o médico veio romper a bolsa com um aparelhinho e enfiou lá dentro e rebentou a bolsa ali na cama mesmo, no meio de todo mundo […].” – disponível em PEREIRA, 2004.
Esses são relatos verídicos de mulheres que foram desrespeitadas e violentadas em seus partos. Estão disponíveis em artigos científicos, dissertações e teses. Como esses, li muitos outros quando fiz o levantamento bibliográfico que deu origem ao projeto da pesquisa que estou desenvolvendo. E não foi uma ou duas vezes que chorei lendo. É inaceitável que uma mulher passe por experiências como essas. Para mim, isso é algo inaceitável e injustificável e representa nada menos que a dominação não só do corpo mas, também, da psique feminina, sua anulação, sua coisificação, sua transformação em algo manipulável. E, muitas vezes, de forma velada, disfarçada de “coisa normal”. Esses trechos, aliados à minha participação num evento sobre violência no parto realizado na Câmara Municipal de São Paulo em abril deste ano, e a depoimentos enviados por mulheres amigas e conhecidas que foram extremamente desrespeitadas em seus partos, mudaram a minha vida. Saí de um pós-doutorado, desisti de uma carreira, escrevi um projeto de pesquisa, fiz uma prova de seleção, fui selecionada e hoje sou, novamente, aluna de doutorado em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina, estudando a ocorrência de desrespeitos, maus tratos e violência no parto em instituições de saúde na percepção de mulheres que viveram essas situações. As pessoas me perguntam se fiz isso movida por desrespeitos que talvez eu mesma tenha sofrido no parto. Não. Eu fui muito respeitada em meu trabalho de parto de 29 horas, no meu parto cesáreo inesperado fruto de um encaminhamento de um parto domiciliar e no meu pós-parto. E é porque sei da importância disso que não aceito que mulheres sejam violentadas num dos momentos mais delicados de suas vidas.
Hoje é o Dia Internacional da Não Violência Contra as Mulheres e eu escolhi esse dia para divulgar o convite à participação nessa pesquisa. A pesquisa está sendo composta por algumas fases. A primeira foi preparar um convite que pudesse sensibilizar mulheres e estimulá-las a refletir sobre a qualidade do atendimento que receberam em seus próprios partos. A segundo é a divulgação do convite, onde as mulheres que quiserem participar desta pesquisa podem colocar seu nome e seu e-mail, que chegarão somente a mim, e que serão utilizados para que eu possa chegar até elas. Enquanto isso, o roteiro da pesquisa está sendo estudado detalhadamente, para dar início à fase das entrevistas, que serão feitas via internet, para se chegar a mulheres em diferentes locais.