O que determina as características de personalidade de uma pessoa e, consequentemente, de um grupo social? O que determina que uma pessoa se torne deprimida, ansiosa, paranóica ou que desenvolva outro transtorno emocional?
A constituição genética? O ambiente? As vivências ao longo da vida? O suporte emocional que recebe? O grau de afeto recebido na infância? Coisas que ainda não sabemos e que a ciência ainda não explica? Sim, tudo isso.
Qual desses fatores tem maior ou menor peso nessa misteriosa e inexata matemática?
Taí uma pergunta para a qual não se tem uma clara resposta.
Como saber, então, de onde vêm essas mazelas? Não sabemos ao certo, de forma que não podemos controlá-las. Mas se sabemos que determinadas práticas, situações e experiências contribuem decisivamente para que elas não apareçam, então passamos a nos apoderar desse conhecimento na tentativa de evitar o sofrimento. Não é garantia de que iremos conseguir, mas estaremos assumindo a parte que nos cabe nesse vasto e complexo latifúndio.
Não temos como controlar quais genes vamos passar – ou já passamos – para nossos filhos. Não sabemos, em termos de constituição biológica, quem são ou o que há dentro deles, qual o gatilho que está pronto para ser acionado – de bom ou de nem tão bom assim.
Mas podemos, pelo menos em parte, no dia-a-dia, dentro de casa, nas experiências cotidianas da família, selecionar ambientes e experiências aos quais queremos expô-los ou não.
Aí entra a criação com apego, tradução pouco precisa para o termo em inglês attachment parenting. E que vem recebendo críticas descabidas de gente que não faz a menor ideia do que está falando. Num mundo onde o apego emocional vem sendo ridicularizado na mesma intensidade que se incentiva e se fortalece o apego material, ainda em tenra infância. Virou piada você dizer que amamenta um filho de mais de dois anos, ou que procura compreender seus anseios e inseguranças no lugar de agir autoritariamente, ou que evita deixá-lo chorar. Pessoas presas aos seus próprios preconceitos e ligadas ao que o senso comum propaga como sendo verdades inquestionáveis, ainda que fruto da ignorância, tendem a associar a criação com apego à falta de limites, à permissividade, construindo em suas cabeças um falso perfil dos pais que assim criam seus filhos como sendo seres irresponsáveis, criando filhos sem limites. Como se a oferta desmedida de apego e amor fosse contribuir para pessoas naturalmente sem respeito pelo espaço alheio, físico e emocional, numa clara e clássica inversão pós-moderna de valores, marcada pela predominância do automático sobre o intuitivo, do mecânico sobre o emocional, do artificial sobre o natural. Quando o que se vê na realidade é claramente o oposto: jovens sem limites justamente por não terem recebido nenhum grau de atenção em casa, que não tiveram a presença carinhosa dos pais, ou que foram vítimas de maus tratos emocionais ou físicos.
Criação com apego não tem nada de permissividade ou de liberou geral. Muito pelo contrário: busca-se ensinar e mostrar os próprios limites e seus limites no mundo. Mas os ensinamentos e orientações são passados com base em conceitos de amor, compreensão e respeito. Não na base da força e do autoritarismo do mais forte para com o mais fraco.
O termo attachment parenting foi utilizado pela primeira vez por um médico, William Sears, com base na teoria do apego, que leva em consideração o fato de que a criança, durante sua infância, tende a criar um vínculo emocional bastante forte com seus cuidadores que gera consequências durante toda sua vida. A criança busca proximidade com o outro e quer se sentir segura quando ele está presente. Suas ideias e práticas subentendem que os pais ou cuidadores estejam emocionalmente disponíveis de forma a promover o desenvolvimento sócio-emocional da criança de maneira segura e amorosa e a evitar que a criança desenvolva o que se chama de apego inseguro, aquele que é baseado no abandono, no apegar-se porque não se teve.
Em 1951, o psicólogo, psiquiatra e analista John Bowlby sugeriu que a privação materna durante a infância poderia levar ao desenvolvimento de adultos deprimidos ou hostis ou, ainda, com problemas para se relacionar de maneira saudável com outras pessoas. Isso na década de 50, quando muito pouco ainda se sabia sobre como o cérebro processava a depressão, a ansiedade e outros transtornos afetivos.
Com o andar da carruagem, alguns pesquisadores, na década de 70, começaram a divulgar resultados de pesquisas comportamentais com primatas, mostrando que o rompimento da ligação entre mãe e filhote levava a comportamentos violentos e agressivos no primata adulto. Mas, afinal de contas, isso era apenas um estudo experimental e as pessoas tendem a repelir o que não é feito em humano, ainda que toda a nossa psicologia comportamental, neuropsiquiatria e neurobiologia tenha sido construída sobre observações comportamentais de animais e extrapolações biológicas.
De acordo com a Attachment Parenting International (API), uma organização sem fins lucrativos que busca “orientar pais e cuidadores para uma educação segura, empática, rica em afeto e amor, visando criar laços familiares mais estreitos e, assim, um mundo mais compassivo”, existem 8 princípios que promovem o apego saudável e seguro entre o cuidador e a criança, que são chamados de Princípios para uma Educação Intuitiva:
- preparar-se verdadeiramente para a gravidez, parto e maternidade/paternidade
- alimentar seu filho com amor e respeito
- responder às solicitações da criança com sensibilidade
- estar atento à qualidade do toque
- prezar pela qualidade física e emocional do sono da criança de forma que ela se sinta segura dormindo
- sustentar atitudes carinhosas
- praticar a disciplina positiva, baseada no reforço das boas atitudes
- buscar o equilíbrio na vida familiar
Embora outras práticas tenham sido associadas, atualmente, à criação com apego – como o parto natural, o parto domiciliar, a cama compartilhada, a amamentação prolongada, a desescolarização, a vida comunitária, entre outras – não existem regras, nem normas, nem padrões rígidos. Não há ditadura, ao contrário do que dizem os que
não querem nem saber do que se trata. Há liberdade de escolha por práticas que tenham a ver com a cultura familiar e que, ainda assim, promovam o apego seguro entre pais e crianças.
Isso não é papo de gente bicho-grilo, alternativa, natureba ou seja lá o apelidinho de cunho pejorativo que você, por puro preconceito ou desconhecimento, queira dar.
Isso é coisa de gente muito esclarecida, principalmente do ponto de vista emocional. De gente que quer olhar para além de seu próprio umbigo e que se importa com a qualidade das pessoas que estamos deixando no mundo, com a qualidade da saúde emocional de seus filhos e da qualidade de vida que eles terão lá adiante. De gente que, a despeito das diferenças, comunga em um ponto fundamental: vê na criança algo além de um pequeno corpo, vê uma vida a se realizar, uma infinita possibilidade de amor e de crescimento, vê um mundo em seu constante vir-a-ser.
Não existem regras a serem seguidas, nem dogmas, não é uma religião. Basta apenas saber que a qualidade do afeto que as crianças recebem tem, sim, totalmente a ver com quem ela vai se tornar no futuro. E ao contrário do que existia na década de 50, hoje a ciência de ponta já tem condições de mostrar onde e como as mudanças acontecem nos indivíduos criados com amor.
Apenas a título de exemplo. Essa semana foram publicados, no periódico PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America) os resultados de um estudo que mostra que o bom cuidado materno na infância leva ao aumento de uma estrutura cerebral chamada hipocampo. Estudei bastante as funções do hipocampo em meu mestrado e no meu primeiro doutorado, quando estudei a neurobiologia da ansiedade e da depressão. De acordo com esse estudo, há uma clara relação entre os fatores psicossociais da infância e alterações no tamanho do hipocampo e da amígdala, estruturas cerebrais relacionadas à memória de curto e longo prazo e ao comportamento emocional, respectivamente. Isso mostra que existe, realmente, uma ligação entre as experiências afetivas que a criança vive na infância e a forma como seu cérebro se desenvolve. Os pesquisadores estudaram, por meio de técnicas de neuroimagem que permitem visualizar o cérebro sem procedimentos invasivos, as características cerebrais tanto de crianças em idade pré-escolar deprimidas quanto de crianças emocionalmente saudáveis. E concluíram que o cuidado materno recebido na primeira fase da infância teria, sim, ligação com o tamanho do hipocampo, o que levaria, inclusive, a diferentes padrões de respostas ao estresse. Crianças emocionalmente saudáveis apresentaram hipocampos maiores, quando comparados às crianças deprimidas, e isso pôde ser relacionado ao grau de cuidado materno recebido quando eram menores. Embora quase a totalidade dos cuidadores do estudo tenham sido mães, os autores acreditam que isso possa ser extrapolado para qualquer cuidador que seja o principal responsável pelos cuidados afetivos com a criança (mãe, pai, avós ou outros).
Já faz tempo que a ciência mostrou que a modificação de um comportamento muda, também, o cérebro do indivíduo, causando, consequentemente, uma nova modificação do comportamento. É nisso que se baseia, por exemplo, a psicoterapia cognitiva-comportamental. A mudança de comportamento altera a estrutura cerebral e essa alteração muda seu comportamento. Um círculo sem fim.
Sabendo disso, é fácil compreender, então, que a forma como se trata uma criança altera seu cérebro. E que esse cérebro, assim alterado, promoverá comportamentos relacionados.
Quando você cria com apego seguro, você está moldando um cérebro para que ele possa atuar com toda sua potencialidade, sem amarras, sem más resoluções, sem entraves.
E se você se esquivava de conhecer o que diz essa forma de maternar e paternar por puro preconceito, achando que era coisa de gente antiquada, atrasada, com pouco conhecimento, bicho-grilos, ingênuos, naturebas, alternativos, e afins, trate logo de buscar uma nova justificativa. A moderna ciência, a neurociência de ponta, está ao lado que quem opta por maternar/paternar com afeto e apego, mostrando que estamos certos ainda que tenhamos optado por isso de maneira intuitiva e não científica.
Ou, se quiser, pode remodelar você mesmo seu próprio cérebro e mudar o seu comportamento, abrindo um pouco a sua mente, deixando de lado a discriminação e o preconceito baseados no senso comum, nas lendinhas urbanas e nas histórias da carochinha, para aceitar que não há nada melhor do que criar uma criança com amor, sem ressalvas, sem poréns, sem medo, deixando o instinto falar e o apego rolar solto.
Num mundo onde o apego material tem sido reforçado e incentivado, prefira o apego emocional seguro, fruto da abundância.
Não da falta.