Esse texto me foi gentilmente enviado pela Dra. Thelma de Oliveira, a Dra. Relva. Thelma é médica especialista em pediatria pela Sociedade Brasileira de Pediatria, pediatra concursada pela rede pública do DF e criadora da comunidade Pediatria Radical, além de autora do site e livro que levam o mesmo noome. Thelma é grande defensora dos direitos das crianças e uma grande divulgadora da campanha Bater em Criança é Covardia, da rede Não Bata Eduque.

“Foi quando meu pai me disse: — Filha, você é a ovelha negra da família / agora é a hora de assumir / e sumir…”

Dra Relva

As revistas pediátricas indagam se está ocorrendo uma “epidemia” de crianças hiperativas ou com “déficit de atenção”. O chamado Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH ou DDA) é um distúrbio neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e costuma acompanhar o indivíduo por toda a vida. Caracteriza-se por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. A infância é, por natureza, turbulenta. Sua energia e curiosidade naturais tornam as crianças inquietas e buliçosas. Mas a escola e a sociedade as querem amorfas, paradas, “boazinhas”. Para dobrá-las ao jugo da disciplina, são usados vários tipos de castigos e corretivos, que vão desde a palmada ao beliscão, gritos, cintadas, ou à privação de alguma regalia ou guloseima.

Usa-se, também, enquadrá-la em cânones psicopedagógicos, que nem sempre levam em conta sua originalidade. Qualquer desvio do “normal” vai para a vala comum dos distúrbios da personalidade. Às vezes provêm de famílias “disfuncionais”, que agem com violência e nas quais imperam vícios e desentendimentos. Quando os membros dessas famílias não conseguem equacionar suas dificuldades, atribuem-nas à criança “má”, por eles engendrada e cultivada. A vida moderna não propicia o contato da criança com a natureza, onde ela poderia não só usar sua energia física, mas adquirir concentração. Sua principal mestra hoje é a televisão, que lhe apresenta um repertório de estímulos sedutores e irreais. Assim, fica difícil para a criança entrar em sintonia com seu próprio eu e com lições reflexivas e “lentas”.

Sem falar que a criança vai para a escola cada vez mais cedo e tem mil e uma atividades extracurriculares. É transportada o dia inteiro daqui para lá e mal tem tempo para uma conversa sossegada com os pais. Entra e sai do transporte escolar, corre riscos o tempo todo, fica estressada. Busca-se febrilmente a aquisição de conteúdos, para a melhor performance. É input / output. O que se almeja é uma criança de resultados. Que o bebê aprenda a ler cedo e receba lições de uma segunda língua… A criançada entra no corredor psicopedagógico, cujas metas, para o educador Lauro de Oliveira Lima, são: pastorear a criança permanentemente; mantê-la em estado fetal passivo; dopá-la pela transmissão de conceitos e pré-conceitos dos adultos e transmitir-lhe informações pré-programadas, tirando-lhe a capacidade de pensar. O produto apreciado são alunos lineares, unidimensionais, disciplinados, sem ousadia nem imaginação. 

A natureza não é tecnológica, a criança nasce com reflexos básicos de sobrevivência e as unidades neuronais vão-se constituindo paulatinamente em redes, conforme a atividade do brincar. Diz Montessori que a criança é o maior trabalhador que existe, pois trabalha sem cessar na construção de si mesma, brincando. As atividades lúdicas por si só estimulam as sinapses, que levam à associação, que estimula mais sinapses. Antes de socializar-se a criança precisa adquirir a devida estrutura sequencial adaptativa, no lar, na casa, com os seus. A dependência dos cuidados maternos é determinada pela natureza, pois o ser humano nasce incompleto, devendo primeiro desenvolver sua vida instintiva e depois partir para a vida em grupo. Até os três anos, a criança não “pensa”. Ela percebe o mundo como fazendo parte dele, vivenciando as coisas sensorialmente, sentindo-as com todo o corpo, que se ajusta ao que é percebido e sentido.

Claro que não se pode dizer que todo gênio da humanidade tenha padecido de transtorno da atenção ou de algum distúrbio mental, embora a maioria deles seja um desviante dos padrões “normais”. Mas se fossem submetidos a testes e avaliações, poderiam ser enquadrados como portadores de DDA. Esse transtorno é tratável com medicamentos estabilizadores dos circuitos cerebrais hiperativos. Difícil avaliar qual seria a perda para o patrimônio intangível da humanidade se nossos grandes filósofos, pintores, escritores, cientistas, fossem submetidos a algum ‘tratamento’. Que seria de nós sem a imaginação de Shakespeare, os argumentos de Spinoza, a loucura de Van Gogh, a excentricidade de Einstein — para citar apenas alguns expoentes. Caso fossem enquadrados nas fôrmas psico-pedagógicas, possivelmente sua genialidade não poderia manifestar-se. No entanto, tais “ovelhas desgarradas” são fundamentais para o progresso da manada humana. 

A alternativa que se oferece à expressão da originalidade da criança e do jovem de hoje é a equalização televisiva ou a regulamentação medicamentosa. A base dos medicamentos é a ‘ritalina’ ou metilfenidato, agora sob o nome comercial “sutil” de “Concerta”, cujo uso vem-se ampliando exponencialmente. Impossível não lembrar o ditado mineiro: ou “conserta” ou deserta!
 

Estudos recentes avaliam que cerca de 75% das crianças que usam o metilfenidato não precisariam dessa medicação ou de qualquer outro neurotrópico. O problema existe, é preciso que seja identificado e tratado sem generalizações para benefício daquela criança e dos coleguinhas.

 “Quando  ensinarás teus filhos a questionar a vi
da, os dogmas, as mentiras e as farsas que os estados e a educação contemporânea injetam-lhes nas veias à força? Quando preferirás uma criança rebelde, crítica, criativa e autônoma em lugar dessas pobres criaturas domesticadas pelo chicote e pela ritalina, massificadas e servis que povoam tuas escolas?” – Ezio Flavio Bazzo: Manifesto aberto à estupidez humana. Editora LGE, Brasília, 2007, pag. 119)

 

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