ADPF. Arguição de descumprimento de preceito fundamental.

Não é preciso fundamentalmente saber o que significa esse termo jurídico para saber do que se trata a ADPF 54.

A ADPF 54 é um instrumento legal que questiona a ilegalidade da interrupção voluntária da gravidez de fetos anencéfalos. Em outras palavras: é um instrumento legal que fará com que a mulher que praticar o aborto de um feto com anencefalia não esteja cometendo um crime, não esteja fazendo nada ilegal, que isso não seja passível de punição. Ou seja: vai descriminalizar o aborto de fetos anencéfalos.
Mas é mais que isso. Vai permitir que a mulher que assim decidir possa receber assistência médica e hospitalar adequada, inclusive via SUS, para interromper a gravidez.
Aborto.
Tema limítrofe, complexo, cheio de conotações emocionais, que não permite uma análise superficial ou um posicionamento moralista, persecutório ou conspiratório. E que nunca vai alcançar consensualidade de opinião entre a população. E não pretende conseguir, uma vez que as pessoas são diferentes e essas diferenças precisam ser respeitadas. Mas é importante falar sobre alguns pontos da anencefalia e do que representa legalizar o aborto de fetos nessas condições.
Principalmente porque, por motivos ainda não compreendidos, o Brasil é espantosamente o quarto país no mundo em casos de fetos anencéfalos. Isso significa 1 caso a cada 1.000. O que, por sua vez, significa que nenhuma brasileira fértil está isenta de gestar um feto nessas condições. Então, por gentileza, se não pelo sentimento de compaixão e altruísmo com o sofrimento alheio, analise a questão considerando que você, mulher, fértil, sexualmente ativa, está exposta a esse risco. Está exposta a esse risco porque as causas dessa condição ainda não estão completamente esclarecidas e, portanto, não se sabe exatamente o que fazer para combatê-la com total eficácia.
Primeiro, é preciso entender o que é anencefalia.
Ao contrário do que o nome pode sugerir, não é a condição de nascer totalmente sem encéfalo. É uma malformação, em diferentes graus, do encéfalo e da calota craniana, esta última frequentemente ausente. É, tecnicamente falando, uma anomalia do tubo neural. 
Quem já passou por uma gestação sabe da indicação do ácido fólico durante os primeiros meses da gravidez – quem planejou uma gestação deve ter tomado, inclusive, enquanto tentava engravidar. O ácido fólico é uma vitamina do complexo B e está presente naturalmente nos vegetais de folhas bem escuras, como espinafre, além do brócolis, das frutas cítricas e do ovo. Por que se prescreve o ácido fólico no início da gravidez? Pra dar um reforço no suprimento dessa vitamina, que é fundamental para a boa formação do tubo neural, justamente no período em que ele está se formando. Ele auxilia no bom fechamento e boa formação do tubo neural, tanto ao final do tubo – a medula no interior da coluna vertebral, evitando o que se conhece por espinha bífida – quanto no início do tubo – o encéfalo -, evitando, justamente, malformações como a anencefalia. E é bastante importante que haja ácido fólico suficiente no organismo materno, seja ele proveniente de uma alimentação rica, seja via ingestão da vitamina sintética. Tanto é assim que as pesquisas científicas mostram que ela reduz em mais da metade as chances do bebê apresentar essas alterações.
Essa alteração grave pode ser detectada por ultrassonografia a partir da 12a. semana de gestação, sem riscos de erro, quando se observa alteração morfológica severa do crânio do feto. Que fique bem claro que não estamos falando de encefaloceles. Encefaloceles são alterações da caixa craniana passíveis de cirurgias reparadoras, na dependência da gravidade. Anencefalia não tem cura, tratamento ou qualquer medida de reparação, em função de sua gravidade. 
Ainda que a anencefalia esteja presente, algumas pessoas se questionam sobre sua real gravidade quando percebem que, mesmo sem partes imprescindíveis do encéfalo, aquele feto possui batimentos cardíacos e atividade metabólica que permite, inclusive, o seu desenvolvimento intra-uterino. Isso acontece porque, em alguns casos, embora o encéfalo se apresente muito alterado, o feto ainda apresenta o tronco cerebral, que é esse conjunto de estruturas encefálicas localizadas bem na base do crânio, logo acima do nuca (e que na imagem ao lado está em laranja). É o tronco cerebral quem controla as funções vegetativas, como respiração, ritmo cardíaco, entre outras. Mas ele, por si só, não determina qualquer tipo de consciência, interação ou outras atividades cognitivas. 
Assim, embora não haja uniformidade anatômica com relação aos diferentes graus de anencefalia, uma coisa é certa: ela é incompatível com a vida. Isso significa que, ainda que o bebê nasça, ele irá morrer. Invariavelmente. Quando? Não se sabe, depende do comprometimento causado pela alteração. Mas irá. Casos que ultrapassam alguns dias de vida ou são raríssimas exceções ou não são anencefalias e, sim, outras formas de alterações cranianas que não anencefalia.
Gestar um feto anencéfalo, além do sofrimento inerente à dor de saber que seu filho invariavelmente irá morrer logo após seu nascimento, traz riscos à saúde materna e não se pode ocultar essa informação. Condições como distensão uterina e dificuldade do parto em função do frequente mau posicionamento de um feto nessas condições são bastante frequentes.
Muitas mulheres que gestam fetos anencéfalos, em virtude do exacerbado sofrimento a que estão submetidas, conseguem autorizações legais, emitidas por juízes, para terem o direito de realizar o aborto  – ou a “antecipação terapêutica do parto”, como afirma o Dr. Thomaz Gollop, um dos maiores especialistas brasileiros em medicina fetal. Por que terapêutica? Porque evitaria outras consequências trágicas – físicas e emocionais – à mãe. A essa mãe que já está passando por uma tragédia pessoal. 
As que conseguem autorizações legais para o aborto recebem, então, atendimento médico-hospitalar adequado, inclusive pelo SUS. Mas são a minoria. Não se equivoque assim tanto, pensando que são a minoria porque a maioria das que gestam fetos anencéfalos decide levar a gestação adiante e dar à luz a esses bebês com alterações que os farão morrer. A maioria decide interromper a gestação – clandestinamente. Ilegalmente. E não em clínicas com padrão ouro de higiene; essas,
talvez só as mulheres de classe média ou alta possam pagar. A maioria se submete a clínicas clandestinas sem qualquer segurança ou higiene, ou se auto-provocam o aborto. Em função disso, muitas carregam sequelas físicas graves, além das emocionais de se passar por essa profunda tristeza. Muitas morrem. 
Não há histórias felizes. Há histórias de superação – tanto da vivência quanto da perda. Mas não há histórias felizes. Se você acha que há uma feliz história de anencefalia, talvez seja apenas porque não as viveu. Perder um filho é a coisa mais terrível a acontecer com um ser humano. Qualquer que seja a causa.
Hoje, 11 de abril, a ADPF 54 voltará à pauta do Supremo Tribunal Federal. O Plenário da Corte analisará a arguição, que foi levada ao STF no ano de 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, que defende a descriminalização da antecipação do parto em caso de gravidez de feto anencéfalo, alegando ofensa à dignidade humana da mãe o fato de ser obrigada a carregar no ventre um feto que não sobreviverá.
Obviamente, há uma luta no ar. Entre os que defendem a descriminalização e os que vêem nisso um ato cruel e de incentivo ao aborto.
Façamos uma suposição. Vamos supor que você seja uma mulher fértil e sexualmente ativa que engravidou e, após a 12a. semana de gestação, descobriu com imensa tristeza que seu bebê possui a terrível malformação da anencefalia e que irá morrer. Você vai sofrer de maneira que não podemos sequer imaginar, já que não vivemos. Será, provavelmente, a maior que você já viveu. Sua gravidez não será mais uma gravidez feliz, tranquila, cheia de expectativa para saber como seu bebê irá nascer, se saudável, se gordinho, se com a boca da mãe, os olhos do pai ou o jeito do avô. Você apenas saberá que ele irá morrer e pensará somente nisso durante os 9 meses. E que sua saúde também estará em risco. Mães apaixonadas muitas vezes não se importam de se colocar em risco pelo filho, então pode ser que esse elemento não seja tão forte sobre você. Mas a constatação da morte inevitável e a dor que isso causará não podem ser descritas com palavras simplistas. Se você decidir, qualquer que seja sua motivação – moral, religiosa, filosófica – pela continuação da gravidez, vai seguir com ela e dará à luz ao seu filho. Que irá morrer logo após. Se você achar que é forte o suficiente para passar por essa dor, que sua característica mental e emocional lhe permite essa vivência trágica, a aprovação da ADPF 54 não vai alterar a sua vida. A morte do seu filho vai, mas não a aprovação da lei.
Mas se você não quiser passar pelo cruel e desumano sofrimento de gestar durante 9 meses um bebê sem condições de vida, se você não tiver estrutura emocional de passar por isso, se isso for demais pra você como ser humano, a aprovação da ADPF 54 lhe garantirá atendimento médico e hospitalar adequados para interrupção dessa gravidez. Sem ter que peregrinar por fóruns em busca de uma autorização que poderá demorar além do tempo de gestação. Sem ter que se submeter ao risco de um aborto clandestino. Sem ter que representar riscos à sua vida. Sem ter que se sujeitar a se tornar uma criminosa.
Não deveria haver luta, portanto, se tantos não quisessem ter poder – sim, poder, essa palavra tão opressora – sobre outros. Se tantos não se julgassem moralmente superiores a ponto de supor a sua escolha como sendo o melhor para todos, desconsiderando valores, sofrimentos, condições emocionais e a humanidade de cada mulher e família que, inevitavelmente, sofrerá.
Eu me recuso a me sentir superior aos outros a tal ponto de considerar a minha escolha, a minha crença, a minha filosofia, o melhor para a coletividade.
Eu me recuso a criticar a dominação de instituições sobre milhões de seres humanos e fazer o mesmo.
Eu me recuso a obrigar uma mulher a passar pelo sofrimento adicional.
Eu me recuso a ignorar o pedido de tantas mulheres pelo reconhecimento da dignidade de poder decidir por si.
É por isso que eu estou à espera de que os ministros, hoje, digam “SIM. A mulher que estiver grávida de um feto anencéfalo pode interromper sua gestação sem necessidade de uma autorização judicial”.
Se essa for a resposta, você, que é contra, poderá ficar tranquila. Se passar por essa experiência terrível, a lei não te obrigará a abortar. Então, é compreensível que as mulheres que vivem isso também não sejam obrigadas a seguir com uma gravidez que ainda mais sofrimento lhes causa, além da perda inevitável do filho que ama.
Não se trata de qualquer tipo de feminismo. Não se trata de qualquer tipo de anticristianismo. Não se trata de qualquer tipo de teoria pós-moderna da conspiração. Se pra você é isso sim, feminismo, anticristianismo ou teoria da conspiração, é porque é assim que você vê o mundo.
Para mim é uma questão de compaixão, de empatia, de conseguir me colocar no lugar de outras mulheres. E de, como diz uma amiga, de sentir como minha a dor de outra mulher, que é minha irmã – não só de gênero, mas espiritual. 
E se eu respeito as mulheres e seus direitos, então eu respeito as mulheres e seus direitos.
Se eu não aceito a dominação de uns sobre os outros, então eu não aceito a dominação de uns sobre os outros.
Sempre. Não somente às segundas, às quartas ou quando a filosofia delas for igual à minha.
Sempre.
Porque eu sou mulher. Mas, antes disso, sou humana, sinto dor e empatia.
Se os ministros decidirem SIM, estarão salvando a integridade emocional, física e a vida de muitas mulheres. Se disserem NÃO, estarão relegando-as à condição de criminosas ao optarem pelo aborto. Mais que isso: estão colocando suas vidas em risco. A vida dos bebês, essa vida tão frágil, ninguém poderá salvar. Nem a Igreja Católica, nem os evangélicos, nem os umbandistas, nem os ateus, ou os que creem na teoria da conspiração. Infelizmente.
Não há final feliz nessa história. Mas pode haver um final mais respeitoso com quem já está sofrendo.
Se as pessoas assumissem, mais vezes, e com real intensidade, a dor alheia como sua, talvez muito dos desrespeitos que tantas pessoas vivem hoje não acontecessem. Talvez deixássemos de passar pela dor do outro, nas ruas, como se elas não existissem.

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