Sou professora, mas também voltei a ser aluna. E como aluna de doutorado novamente, preciso cumprir uma infinidade de créditos. Nesse semestre, escolhi cursar disciplinas que podem me ajudar nessa fase inicial da pesquisa sobre violência obstétrica. Então estou cursando três: Bioética, Violência em Saúde e Metodologia de Pesquisa Qualitativa 2.
Às terças-feiras eu curso Bioética, com a professora Marta Verdi. Excelente docente, pessoa excepcional, gentil, inteligente e bem humorada, alguém em quem se espelhar nessa nova carreira. Junto com Sandra Caponi, são responsáveis por grande parte da reformulação de pensamento pela qual venho gradual e irreversivelmente passando. Ter aula com essas mulheres é uma honra. Sandra acaba de lançar um livro que está no topo da minha lista de próximas leituras: “Loucos e Degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada“. Já tive o livro em mãos e é daquelas coisas que, pra quem se interessa por psiquiatria e medicalização como eu, é parada obrigatória. Ambas são autoras, junto com Fernando Hellmann, de “Medicalização da vida: ética, saúde pública e indústria farmacêutica” que, só pelo título, dispensa comentários.
Pois na semana passada, nessa disciplina de Bioética, Sandra deu uma senhora aula sobre Biopolítica, que, a mim, interessa sobremaneira, em função da pesquisa que estou fazendo.
Biopolítica é algo que tem a ver comigo, com você, com nossos filhos (e mexeu com filho, mexeu com a mãe).
Em termos bem gerais, é a gestão das populações em função de elementos que têm a ver com o biológico. Se fôssemos tentar entender pelo que diz o nome, poderíamos cair no erro de acreditar que é a “política da vida (bio)”. Mas não é. Se fosse, justamente por ser uma “política”, deveria incluir obrigatoriamente o DIÁLOGO entre todas as partes. Mas isso não acontece…
A Biopolítica, sendo a administração da vida (DOS OUTROS!) pelo Estado ou por organizações faz exatamente o oposto do que diz o nome: nega a autonomia, torna os sujeitos anônimos e os faz incapazes de traçar livremente sua história. Para a Biopolítica, danem-se os “direitos”, saúde é o que interessa – obviamente, na concepção rasa, superficial, generalizante de saúde, que traz impregnado o que a hegemonia médica assim considera.
Quem falou muito sobre Biopolítica – e em quem se baseia Sandra Caponi, que ocupou, inclusive, a cadeira deixada por ele no Collège de France – foi Michel Foucault. E para Foucault, “as sociedades modernas têm convivido, explícita ou implicitamente, com a aceitação de sua negação: a exclusão ou morte de tudo aquilo que possa aparecer como uma ameaça de degradação da vida“.
É a invasão da vida pelo poder, um exercício do poder sobre o homem enquanto ser vivo, a estatização do biológico. É o Estado ou as organizações dizendo o que você pode ou não fazer com relação às escolhas que envolvem sua saúde e sua vida, o que você pode ou não fazer com relação ao seu corpo. Ao corpo que é SEU.
Se você, como eu, acha um atentado à liberdade individual que alguém te diga o que fazer com seu corpo e sua vida, vai entender porque a Biopolítica nega o ser como indivíduo autônomo e capaz de fazer suas escolhas.
Para nós, que somos mães, a Biopolítica deveria interessar ainda mais, porque não diz apenas sobre o que podemos ou não fazer com nossas vidas e corpos, mas INCLUSIVE com os de nossos filhos. E até mesmo antes que eles nasçam, já somos confrontadas com decisões biopolíticas: o parto, as vacinas, a amamentação versus a licença maternidade, a pediatria, etc etc etc… Então, amiga mãe, Michel Foucault é para todos e também para você!
No que diz respeito à experiência de parto e de nascimento que queremos viver, se em casa, no hospital, se natural ou cesárea, obviamente que também há elementos biopolíticos aí. Ou você acha que um Conselho de Medicina perseguir obstetras que apoiam o parto domiciliar é o que além disso?!
Bem, tudo isso tenho aprendido nessas aulas e tenho passado bastante tempo pensando sobre. A pesquisa sobre violência obstétrica é, também, o estudo da biopolítica do parto.
Então imagine você a minha emoção no dia de ontem quando, depois de deixar de almoçar em função da correria diária, depois de trocar uma fraldinha, brincar de desenhar no papel craft e sair voando pra universidade, cheguei na aula de Bioética e a professora diz que, aproveitando o tema da última aula – Biopolítica – começaríamos com a apresentação de um vídeo sobre um movimento importante que aconteceu no Brasil no último fim de semana, e que tem a ver com o resgate da autonomia individual e do direito de fazer suas próprias escolhas no que se refere ao seu corpo e sua vida.
E apresenta o vídeo da Marcha do Parto em Casa de Florianópolis… pedindo para, na sequência, eu contar sobre como foi tudo isso. Assim. No susto. Ela apagou as luzes e apresentou. E que bom que a luz estava apagada, porque assim ninguém viu meu queixo tremer e meus olhos encherem d´água.
Marta, pessoa esclarecida, também mãe de um menino pequeno, facilmente entendeu o que todo esse movimento representa.
E se você ainda não entendeu, minha cara mãe, não tem problema algum. Todo mundo tem seu próprio tempo.
Mas, por gentileza, não fale mal de tudo isso perto de mim. Não faça isso. Porque desdenhar do trabalho e esforço de tantas mulheres em prol da recuperação de um direito QUE É SEU TAMBÉM, embora – não sei porque caralhos – você esteja pouco se lixando pra ele, é algo triste demais. Lembre-se, minha amiga, que embora você não esteja nem aí pra hora do Brasil, sua filha poderá, um dia, estar. E tudo isso é pra ela também.
E, especialmente, não faça isso no dia em que eu, muito tristemente, descubro que Florianópolis não tem mais nenhum obstetra, atualmente, que atenda um parto domiciliar. Tudo porque a hegemonia médica tem o apoio de pessoas que pensam assim como você. Que, por não estarem nem aí pro direito dos outros, contribuem para que tenhamos nosso direito de escolha cerceado.
Aos leitores mais conservadores, desculpem-me pelo “caralhos” supracitado. Mas, como diz um autor que não lembro quem e cujo texto uma amiga compartilhou ontem, tem hora que só um bom palavrão pra conseguir exprimir exatamente o que você está sentindo e te trazer de volta ao seu eixo.