"A problematização de tudo tá tornando o mundo insuportável".
Sem mais delongas quero dizer que para mim não está. Insuportável é conviver com desigualdades, iniquidades, preconceito, discriminação e a naturalização de tudo isso (e com quem pensa assim, porque né? É um tanto de paciência que nóis têm que tê…). Fica tudo desconfortável com tanta problematização? Ah sim, fica mesmo. Mas foi porque estivemos tempo demais deitados nos braços do conforto do comodismo que hoje as coisas estão como estão e estamos precisando lutar com todas as forças e mais as inexistentes pra tentar reverter o processo. Então sim, vamos continuar. Vai ficar pior. Então, esqueça o conforto da desigualdade que ele não nos pertence mais. Aceite, supere e venha junto.
Tudo isso pra contar um causo da manhã desta quinta-feira, enquanto eu arrumava a cama logo após acordar. Enquanto arrumava, cantarolava o "Samba do Arnesto", do grande Adoniran. Cantarolava sem grandes pretensões quando minha filha de 6 anos me interrompeu.
– Mãe, pode cantar de novo, por favor?
Cantei.
– Tá tudo errado isso aí.
– Isso aí o quê, filha?
– Bom, primeiro que o Ernesto pediu desculpas.
– O Ernesto da música?!
– Sim, ele. Primeiro que ele pediu desculpas. Os caras tinham que ter aceito, né? Porque pedir desculpas significa que ele viu que errou. Como assim não aceitaram?
– Clara, é só uma música – [Resposta cretina detected: uma música nunca é só uma música. Veja aqui.]
– Eu sei, mas pensa mãe. E se a festa acabou antes? E se os caras chegaram depois? Eles ficaram com raiva à toa e culparam o Ernesto. O Ernesto foi atrás deles pra pedir desculpas! Eles tinham que ter aceitado, não ficar com raiva. Isso não adianta, conversar adianta.
[Afff, olha o que eu ajudei a criar… A gente cria as crianças na base da crítica social mas é cada sustão que nóis toma]
– Sim, é verdade. A mãe acredita muito nisso mesmo: que metade dos problemas deixariam de acontecer se as pessoas se arrependessem sinceramente e tivessem a coragem de pedir desculpas.
– É isso que eu tô dizendo, mãe. E aceitar as desculpas também, né?
Bem, esta historinha muito simples sobre algo nem tanto assim é só pra nos lembrar de como essa "problematização chata insuportável que tá rolando hoje" (Ai, preguiça de gente que continua pensando assim com tanta informação disponível hoje… Migo, melhore, avance, pule aí umas casas e vâmo em frente por favor…) está influenciando uma geração de crianças. Crianças que vivem em ambientes onde a problematização é a regra e não a exceção estão interiorizando essa forma de lidar com as coisas da vida, essa forma questionadora, nada doutrinada e muito emancipatória. Pode parecer uma grande bobagem, não me importo. Muita coisa importante hoje também tem sido considerada bobagem e é na persistência que avançamos. Mas é isso o que está acontecendo em ambientes que estimulam que as crianças se posicionem frente ao comportamento das pessoas: elas não aceitam tudo como se natural fosse e já estão engajadas espontaneamente na construção de um mundo melhor.
Estimular e incentivar uma sociedade questionadora se faz desde a infância. Fazer isso significa estimular que esses pequenos seres se vejam como construtores da realidade que os cerca, não como meros reprodutores de uma cultura de violência, escárnio e agressão.
Arnesto, meu querido, da próxima vez ponha um recado na porta sim, eles têm razão. E parabéns pela coragem de se desculpar. E vocês, turma do Arnesto, melhorem né, que o cara pediu desculpas e vocês são amigos de anos…
Ops. Esqueci. O Arnesto não sabe escrever! ("Ói, turma, num deu pra esperá / Aduvido que isso, num faz mar, num tem importância, Assinado em cruz porque não sei escrever").
Vou ali contar pra minha filha isso. Já de bloquinho e caneta em punho pra anotar as sugestões que ela vai criar pra resolver essa treta aí.
Sim, o mundo está insuportável na base da problematização. Maravilha. Se não tá bom pra você, espera elas crescerem pra ver como vai piorar… Tá quente a chapa, amigo, e vai ferver.
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