Não é legal orientar seu filho pequeno para que abrace uma criança que ele não conhece.

Não é legal orientar seu filho pequeno para que aceite o abraço de uma criança que ele não conhece.

Vamos começar assim direto que é pra enfatizar que isso não é nada legal… Precisamos repensar essa forma de agir com as crianças.

Estamos vivendo dias de enfrentamento de opressões e total problematização de questões que excluem, expõem ou diminuem pessoas, especialmente aquelas que sempre foram excluídas, expostas, oprimidas e diminuídas – mulheres, pessoas negras, gays, lésbicas, pessoas transgênero, portadores de necessidades especiais e, também, as crianças. Felizmente e demorou. Praticamente todos os dias nós nos confrontamos com coisas que fazemos e que são baseadas no estabelecimento de ainda mais desigualdade, ainda mais iniquidade, ainda mais opressão e exclusão. Estamos todas aprendendo. Estamos todos nos reformando. E não se acomode no reconhecimento disso não, porque estamos muito atrasados e não é o caso de receber troféu por nada, é nossa obrigação. Errados estávamos quando deixamos a vida seguir sem maiores indagações sobre opressões exercidas.

Neste contexto, nós, todos – não as mães, não os pais, não os educadores, não alguém em específico, mas TODOS nós que somos adultos, temos que entender que passou da hora de pararmos de orientar as crianças para que beijem e abracem desconhecidos (e conhecidos também, quando as crianças não quiserem). E mais: temos que orientar nossos filhos a não aceitarem essas abordagens caso não queiram. MESMO SE FOREM OUTRAS CRIANÇAS.

"Ai que exagero, que grosseria, que falta de amor, que mau humor…"

"Ai mas crianças são puras e não tem nada demais".

Tem sim. A criança e seu corpo não são terras de ninguém. Eu sei que isso parece bonitinho, amoroso, simpático, parece que estamos promovendo a paz mundial, mas não é. É invasão. Se queremos ensinar as crianças que desconhecidos não têm autorização para tocar em seus corpos, então não é recomendável que os orientemos de maneira dúbia, não é mesmo?

Inverta os papéis. Imagine você andando feliz pela praia quando passa por você um adulto desconhecido e alguém te diz: "Vai lá e abraça ele". "Oi? Tá louca? Não conheço!". "Vai lá e abraça ele, mostre que você é legal". "Miga, para! Eu não conheço, não quero abraçar!", "Vai lá, não seja boba, abraça o cara". Você, que é adulto, sabe que isso não faz sentido. Claro, você pode ser uma pessoa muito amorosa e nutrir profundo amor pela humanidade e querer mesmo abraçar desconhecidos – eu também fico assim algumas vezes, mas passa logo… Mas entenda que se você for lá e abraçar o desconhecido, corre o risco, inclusive, de sofrer uma agressão verbal ou física. Como assim você chega me abraçando se eu não te conheço?

Por que, então, deveria ser diferente com as crianças? Porque é bonitinho? Não é bonitinho constrangermos as crianças tanto para que abracem um desconhecido quanto para que aceitem de maneira submissa um abraço de alguém que não conhece. Você assim orientou e a criança gostou da ideia de ir lá abraçar? Ainda assim você não está agindo de maneira recomendável, porque você está passando uma mensagem, e a mensagem é: "Tudo bem abraçar alguém que você não conhece sem o consentimento da outra pessoa". Você assim orientou e a criança que recebeu o abraço gostou? Ainda assim isso não tá legal, porque você está dizendo "Tudo bem alguém que você não conhece te abraçar". E isso é bastante vulnerabilizante.

Eu moro perto da praia, nos últimos dias tenho me dedicado quase exclusivamente a escrever minha tese e minha filha tem estado comigo na maioria dos dias. Então num desses dias, pra gente sair um pouco de casa, fiz uma pausa de meia hora e fui com ela à praia, dar uma caminhada, tomar um solzinho. Chegamos e logo encontramos um garotinho lindo correndo e brincando, uma criança muito simpática e sorridente. Assim que minha filha passou por ele, os pais orientaram: "Abraça a amiguinha!". Ele titubeou e eles insistiram: "Abraça a amiguinha!". No mesmo momento, minha filha olhou para mim e disse: "Mamãe, eu não quero que ele me abrace…". Eu disse em voz alta, de maneira cordial e simpática: "Filha, você pode dizer que não quer e tá tudo bem". Ela não disse, porque estava constrangida… Eram estranhos… Então eu disse, de maneira bastante cordial: "Ela prefere que não, tudo bem?". Os pais ficaram desconfortáveis, mas a mãe, em especial, deu a impressão de ter compreendido.

Para muitos, isso pode ser intrerpretado como "Você não está estimulando a empatia e a cordialidade entre as crianças". Errado. Isso é um julgamento bastante raso de se fazer. O que eu não estou fazendo é estimular que minha filha ou qualquer criança se sinta acuada para receber contato físico de quem ela não conhece. A empatia e a cordialidade podem – e devem – ser estimuladas e incentivadas em inúmeras situações cotidanas, quando crianças podem se apoiar, se ajudar, desenvolver laços afetivos, mas obrigá-las a contatos físicos com desconhecidos não é estimular a empatia. E achar isso é problemático.

Veja. Se você passa a infância de uma criança orientando para que aborde desconhecidos desta maneira, como irá argumentar com ela no dia em que, já crescida, ela fizer isso? Se você passa a infância de uma criança orientando para que aceite carinhos e carícias de desconhecidos desta maneira, como irá orientá-la sobre isso quando, já crescida, alguém fizer o mesmo sem que ela autorize? Lembrem-se: as crianças não mudam quem são quando crescem, elas aplicam aquilo que aprenderam no/do/sobre o mundo durante toda a sua infância.

Aqueles pais que orientaram o garotinho a abraçar minha filha não estavam fazendo por mal. Deixemos o maniqueísmo de lado, não precisamos sempre analisar as coisas dentro dos extremos "BEM – MAL". Adultos que agem dessa forma não o fazem com a intenção de constrager. Fazem porque: 1) aprenderam a fazer assim, afinal sempre foi feito assim; 2) estão querendo ser cordiais, sobretudo com os cuidadores da outra criança; 3) acham verdadeiramente que assim estão ensinando a criança a demonstrar afeto. E isso é muito louvável, especialmente num mundo de ódio e agressividade como vivemos hoje. O que precisamos, no entanto, é realinhar as órbitas dos planetas e incluir outros elementos de reflexão em nosso dia a dia. E nos questionar sobre esse tipo de coisa. Por que faço assim? Eu poderia ser cordial de outra maneira, que não exponha nem meu filho nem a outra criança? De quais outras formas posso ensinar meu filho a demonstrar afeto por uma criança que ele não conhece e está conhecendo? Só o fato de fazermos essas reflexões já nos moverá para outros caminhos. "Filha, olha, ele tá te seguindo. Por que não mostra pra ele aquela pedra onde você sempre pula?". "O que acha de convidá-lo pra brincar com você?". "Que tal perguntar qual o nome dele?". Perguntas. Vamos perguntar para as crianças o que elas querem fazer com relação às outras crianças. 

Não é uma gracinha. Não é engraçadinho. Não é sempre legal. Mesmo que nossa intenção seja das melhores. Vamos refletir sobre isso.

Na volta para casa, viemos caminhando. Minha filha me disse:

– Mãe, eu não sei como agir nesses momentos. Eu não queria que ele me abraçasse, mas não sabia dizer porque fiquei com vergonha.

– Olha, filha, tudo bem, a mamãe estava junto e eu falei por você. Numa próxima vez, não se sinta com vergonha para dizer o que quer e o que não quer. Você não é e nunca será obrigada a aceitar que pessoas que você não conhece te abracem, ou beijem, ou toquem em você.

– Tá, mas como eu faço?

– Você pode dizer aquilo que diz quando te oferecem uma coisa que você não gosta de comer: "Ah, não, muito obrigada, mas eu não quero". Não precisa ser brava, nem zangada, nem nada. Isso é natural. Não querer algumas coisas é natural.

Ela aparentemente compreendeu. Provavelmente, vou precisar orientá-la novamente mais algumas vezes. Mas é isso aí, o caminho a gente constrói junto. E, pra ser bem sincera, eu compreendo totalmente a angústia que ela sentiu. Até há alguns anos, eu também sentia isso, sem saber como dizer que eu não queria que aquele desconhecido me abraçasse daquele jeito, achava desconfortável ou indelicado recusar. Mas a minha apropriação de mim mesma, da minha vida e do meu corpo, me libertaram disso. Se eu não quero, não tem abraço, não tem beijo e não tem nem mão dada, e há inúmeras formas delicadas de se fazer isso. 

Abraço é muito bom, mas só se quisermos. Se é justo agir assim sendo adultas, por que seria diferente com as crianças?

Já reformamos e desconstruímos muitas coisas em nosso modo de agir e pensar, não é? Essa é só mais uma.

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