Quando eu tinha 8 para 9 anos, precisei mudar de escola. A escola anterior organizou uma excursão cheia de falcatruas e o que deveria ter sido uma experiência encantadora foi um desastre. Resultado: crianças com medo, pais indignados, processos contra a escola e a empresa de turismo, e muitos dos alunos sendo transferidos para outras instituições de ensino na metade do ano letivo.
Eu fui uma delas.
Com a ajuda de uma amiga da família, minha mãe conseguiu para mim uma vaga em um dos melhores colégios da cidade em pleno agosto, quando pouca ou nenhuma vaga ainda estava disponível. Um colégio particular caríssimo, concentrando dezenas de crianças advindas de famílias tradicionais da cidade ou do nouveau riche, e onde estudei até chegar ao ensino médio.
Nossa situação financeira não era ruim, mas não era como a dos demais. A escola, por exemplo, era custeada pela multinacional onde meu pai trabalhava, como benefício incorporado ao salário. E a educação que recebíamos em casa não era, nem de longe, algo que valorizasse facilidades financeiras, pelo contrário. Fomos criadas para dar o devido valor ao dinheiro, nem mais, nem menos, e para nos sabermos filhas de gente trabalhadora. Não fomos criadas sendo incentivadas a consumir roupas ou tênis de marcas famosas, nem achando que o dinheiro proliferava nos canteiros da casa. Tudo era bastante suado e batalhado e não havia grandes luxos. Com certeza, o maior deles era podermos estudar em um colégio como aquele.
Ao ser transferida na metade do ano para uma turma cujos alunos se conheciam desde o ensino pré-escolar, fui alvo de bullying. Tanto porque era um membro estranho ao grupo, quanto porque eu era quem eu era e sempre fui: alguém que não aceitava desrespeito, ou ofensas, ou distratos, ou qualquer tipo de intimidação sem que houvesse confronto.
Lembro-me do primeiro dia de aula como se fosse hoje: crianças sentadas em carteiras dispostas em duplas, uma dupla atrás da outra, de frente para o quadro negro. Todos uniformizados, em uniformes cinza e branco, em cuja camiseta destacava-se, em vermelho, o nome da escola.
Cheguei muito constrangida. Fui acolhida pela professora, que me apresentou como “a aluna que precisou mudar de escola no meio do ano” e fui orientada a sentar ao lado de um garoto da minha idade – ao que ele prontamente disse: “Do meu lado não!“. Ela o repreendeu e me conduziu até lá.
Excelente… Estava eu, então, sentada ao lado de alguém que não me queria ali…
Todos ao redor começaram a brincar com ele, como se fosse realmente muito grave alguém desconhecido sentar ao lado de um aluno já conhecido da escola.
Ignorei as brincadeiras, engoli a vontade de chorar que brotava com toda força em mim, sentei-me, abri minha mochilinha – muito constrangida, ouvindo as piadas que faziam ao redor em função de estar sentada ali – peguei meu estojo, abri e tirei de dentro dele dois lápis e uma borracha.
A professora continuava a aula de onde havia parado, talvez contando com o fato nada óbvio de que uma criança de 8 anos não precisasse de um melhor acolhimento frente a tamanha mudança…
E, estando de costas para a turma e escrevendo no quadro, não foi possível que ela acompanhasse o que me acontecia naquele momento.
O garoto ao lado de quem sentei passou a me ridicularizar. Falava sobre como minha mochila era feia, como meu uniforme estava grande demais para mim, como eu parecia zangada, como meu estojo era esquisito, sendo incentivado por um pequeno grupo ao redor, enquanto outros apenas dirigiam um olhar solidário para mim, como dizendo: “Não ligue… Eles fazem isso com todos“.
Então, não sendo percebido pela professora, recebendo reforço dos colegas e percebendo meu constrangimento, a intimidação foi aumentando. Passou a jogar meus lápis no chão – lápis que minha mãe havia comprado um dia antes, como forma de me acolher e tornar a reinserção mais fácil -, a jogar meu estojo para outros colegas, a abrir minha mochila. E foi quando decidi pedir que parasse.
Mas meu pedido piorou a situação…
Ele ia jogando minhas coisas, me ofendendo, rindo de mim, e tudo isso enquanto a professora se mantinha de costas para nós, ignorando o que estava acontecendo ou apenas dizendo: “Xiiiu!“.
Eu apenas pedia para que ele parasse. Dizia que meu estojo e meus lápis eram novos, pedia para não jogá-los. E ele ignorava. Tudo ia parar no chão e, quando conseguia recolher um, outro já estava lá.
Então, em uma medida desesperada e angustiada, fiz o que jamais havia feito: levantei-me, peguei a cadeira, sustentei-a no ar e… joguei com tudo sobre ele.
Eu, a “aluna que precisou mudar de escola no meio do ano“, havia acabado de jogar uma cadeira sobre um menino bem popular daquela escola desconhecida… E, claro, havia conseguido chamar a atenção da professora para o que estava acontecendo há quase 1 hora.
Quem você acha que foi rotulada como “problemática”?
Acertou: eu.
Fui imediatamente levada para a direção da escola e telefonaram para meus pais. O que eu havia feito tinha sido, de fato, muito errado.
A diretora era uma senhora muito, muito cordial e simpática. Minha simpatia por ela foi imediata. E percebi que a dela por mim também. Enquanto meus pais não chegavam, ela foi me perguntando porque eu havia feito aquilo, contando que eu o havia machucado bastante, que seu nariz havia sangrado muito, perguntando o que eu achava daquilo. Lembro-me da minha resposta como se fosse hoje: “Sim, fiz uma coisa muito errada e nunca fiz isso a ninguém. Mas eu estava sendo xingada, minhas coisas estavam sendo jogadas, eu não sabia o que fazer. Pelo menos isso parou e ele não fará mais“.
Meus pais, então, chegaram.
Eu estava apavorada.
A diretora conversou com eles. Eu não entendia nada, mas pelo semblante dela, parecia que tudo ficaria bem. Foi quando, talvez em uma tentativa de conciliação, ela perguntou:
E então, Ligia… Agora que você sabe que o que fez foi errado, me diga: você não fará isso de novo, não é?
E, sob o olhar ostensivo dos meus pais, eu muito sinceramente respondi:
Farei. Se ele me xingar ou me maltratar novamente, farei. Ninguém tem o direito de maltratar o outro. Se ele me maltratar, eu vou me defender“.
Achei que quebraria o recorde mundial de expulsão por tempo de escola e que seria expulsa após poucas horas de matrícula.
Mas o que aconteceu? A diretora – a despeito do constrangimento máximo dos meus pais – olhou para mim, riu francamente e disse: “Você é uma menina justa. Sei que não fará…“.
Bem… Fui para casa, voltei no dia seguinte e… ninguém mais me ofendeu ou maltratou.
Até a semana seguinte.
Então, por alguns anos, sofri bullying naquele colégio.
O que fiz com aquilo? Uma das alternativas que alguém tem para sobreviver em um meio hostil: incorporar a violência à sua própria prática.
E eu, aquela menina “justa“, tornei-me
também uma bully.
Enquanto minha auto-estima enquanto criança e pré-adolescente ia sendo minada por um mesmo grupo de crianças, eu também me tornei uma agressora.
Por pelo menos dois anos, atormentei a vida de uma garota. E ela a minha. Fomos “inimigas”, quando tudo o que precisávamos era nos unir. Ambas sendo oprimidas e agredidas. Ambas agredindo uma à outra. E não há um só dia da minha vida que eu não sinta muito por isso. Em todos esses anos – e já se passaram mais de 20 – eu a procurei. Quando surgiu o Orkut, lembro-me de tê-la procurado lá. Não a encontrei. E eis que hoje, nos tempos do Facebook, há poucos meses eu a encontrei. Mas confesso: ainda não consegui pedir desculpas a ela como deveria pedir… Tenho medo de que ela se ofenda, ou de que reviva más lembranças, ou que já tenha enterrado tudo e eu vá lá, novamente, “buliná-la”. Mas só de lembrar, tenho vontade de chorar… Sofremos tanto, quando a união podia ter nos salvado…
Por muitos anos, sofri as consequências do bullying constante. Chorava muito, estava constantemente irritada, não gostava que brincassem comigo de nenhuma maneira. Como forma de sobreviver àqueles longos anos, tornei-me exímia esportista. Era a primeira a ser escolhida nos times em todas as modalidades. Tornei-me a queridinha dos professores e professoras de educação física. Tornei-me, também, aluna muito dedicada em todas as demais disciplinas, e as altas notas me davam uma espécie de “aval” para confrontar os professores por suas más condutas ou más práticas de ensino – vejam vocês… E, quando percebi, eu havia me tornado amiga daqueles que, por tantos anos, haviam me constrangido. Quando percebi, os “bulinadores” de outrora haviam se tornado meus amigos…
Bem, não é surpresa que eu não tenha querido manter quaisquer dessas amizades. Não tenho orgulho dessa fase da minha vida. Uma fase que, do ponto de vista familiar, também ia acumulando más experiências e dificuldades de todos os tipos.
Culminando com o desemprego do meu pai e a separação dos meus pais.
Foi quando precisei ir da escola particular de elite diretamente para a escola pública, período noturno, sem escalas.
Foi um choque imenso para mim, que sempre tive como sonho estudar em boas universidades e me formar com pompas. Achei que havia perdido a oportunidade… Que minhas chances haviam ficado para trás… Sofri muito com todas aquelas mudanças.
Já há muitos anos sei: foi muito mais que um choque. Foi a minha salvação.
Foi somente alguns anos depois que consegui processar realmente a grande chance que eu havia tido na vida, de sair de uma bolha e conhecer pessoas que batalhavam por suas vidas. E naquela escola pública fiz grandes amigos. Fui acolhida e respeitada. Amparada e fortalecida. Foi quando senti-me, pela primeira vez, crescida. E jamais sofri novamente qualquer tipo de constrangimento ou outra forma de bullying – ah, claro, até o advento deste blog, que me rende dezenas de manifestações impregnadas de rancor, com pessoas me chamando de “radical” ou “comunista” ou “esquerdista” ou qualquer dessas coisas que são dirigidas como se fossem xigamentos… e que me enchem de certeza de estar no caminho certo.
Mas a minha história é uma entre muitas. Entre muitas que, infelizmente, não têm um mesmo final, digamos, “feliz”. Muita gente, em função de ter sido vítima de bullying, se perdeu pelo caminho. Não é raro sabermos de histórias de crianças ou jovens que desenvolveram um grave embotamento afetivo em função de anos de ridicularização, preconceito, discriminação ou qualquer outro tipo de violência.
O bullying é, infelizmente, muitíssimo comum, frequente e – o que é pior – naturalizado. Visto como uma fase “natural” da vida. E não é. Nem deve assim ser visto. Bullying é violência e não pode ser minimizado. E não acontece somente entre crianças ou jovens. Muitos adultos cometem bullying. Muitas vezes contra seus próprios filhos. Muitas vezes contra seus próprios alunos.
Eu fui vítima do bullying de uma professora de matemática. Seu nome era Sandra e ela trabalhava naquela mesma escola onde eu já sofria bullying de outros colegas. Não se surpreenda ao saber que matemática sempre foi, a partir daí, meu problema acadêmico… Infelizmente, não fui alvo único. Era com escárnio e desdém que ela tratava muitos dos alunos, embora dissesse em alto e bom som que era apaixonada por esse, aquele e aquela outra.
Depois de muitos anos, tornei-me professora. E jamais compreendi como era possível agir assim. Sempre tive por meus alunos o mais profundo respeito e não é raro encontrar muitos amigos entre meus antigos alunos. E vejo que, para além do preparo individual, há também uma questão de como encaramos nossos papéis como professores, educadores, mães e pais. Enfim, como cidadãos.

Quando decidi escrever sobre esse assunto, estava imersa em um tanto de dados sobre vítimas de bullying no Brasil, em uma pesquisa para um capítulo de livro que estava escrevendo. Quase segui pela abordagem mais acadêmica, mostrando porcentagens, consequências, citando estudos e tudo mais. Mas não. Decidi contar o meu caso. E, por uma incrível coincidência – ou sincronicidade – naquele exato momento uma moça chamada Vanessa entrava em contato comigo contando sobre a iniciativa que ela estava organizando. Que ela ESTÁ organizando, melhor dizendo.

Então, a partir daqui, eu abro espaço para ela e peço a você que ouça/leia essa história. É uma chance muito bacana para desmistificar a questão do bullying entre nossas crianças. Para que ninguém mais precise ser vítima. Para que ninguém mais vitimize.

Por Vanessa Bencz

Burra, lixo, desperdício de oxigênio, avoada, cabeça de vento. Esses foram alguns dos “apelidos” direcionados a mim quando eu era adolescente. Na época, tive duas escolhas: ou acreditava nesses apelidos, ou tapava os ouvidos e acreditava naquilo que meu coração dizia. Por sorte, escolhi a segunda opção. Infelizmente, sei que muitos estudantes que são vítimas de bullying acabam sem querer acreditando nos adjetivos pejorativos que ganham e aceitam a violência que sofrem.

Nos dois últimos anos, me dediquei a visitar escolas falando sobre literatura, livros e motivações. Percebi que os estudantes tinham muita curiosidade sobre minha trajetória escolar. Eles ficavam surpresos e emocionados quando eu falava que tirava notas baixas e tinha dificuldades de aprendizado. Depois, em particular, me chamavam e diziam que passavam pela mesma situação que vivi. Tiravam notas baixas, eram vítimas de uma zoação implacável e se sentiam desamparados. Ganhei a confiança dos professores e eles me pediram para lançar um trabalho que falasse sobre bullying, respeito ao próximo, motivações e sonhos. 

Tive a ideia, então, de desenvolver uma história em quadrinhos baseada em algumas situações do que vivi. Foi aí que surgiu a história da Menina Distraída, pronta, na minha cabeça. 
A protagonista se chama Leila. Ela tem 14 anos, treina kung fu, é apaixonada por desenhar e, obviamente, é a distração em pessoa. Ela não resiste a uma boa janela. O passarinho que pousou na árvore é mais interessante que o professor de matemática ou as placas tectônicas da aula de geografia. Em vez de prestar atenção nas aulas, ela fica desenhando e, pra lidar com o tédio, cria uma super-heroína perfeita, a Mulher Raio.

A consequência disso é que a garota não consegue tirar notas boas. As coisas pioram quando ela recebe a primeira nota zero. Leila vai ter que lidar com o bullying dos colegas e com os apelidos maldosamente criativos que vão minar a motivação dela, já baixa. Mas a coisa fica séria mesmo quando ela precisa confrontrar o bully da turma, um valentão chamado Samuel que vai preparar uma bela sacanagem com a protagonista. É a partir daí que Leila resolve assumir as características de força e motivação da Mulher Raio e encarar o garoto. Ela vai enfrentar, também, suas próprias limitações como uma pessoa com problemas de atenção.

A minha intenção é que Menina Distraída cause empatia e, ao mesmo tempo, transmita incentivo. É uma história super engraçada, motivadora e cheia de lições. Eu tenho certeza que essa HQ vai ser visualmente deslumbrante, vai encantar e ser útil para motivar todas as pessoas que, de alguma maneira, se sentem menosprezadas pelas outras.

Eu demorei para entender que sofri bullying na adolescência. É engraçado porque, quando as coisas não tem nome, elas vivem em uma dimensão abstrata e vaga. Quando essa palavra começou a pipocar na imprensa e na boca dos professores e psicólogos é que eu entendi. Quando comecei a pensar sobre a expressão “bullying”, levei um susto. De repente, me vi vítima. E eu não gosto desse papel, porque geralmente é carregado de fraqueza e submissão. E eu não me considero nada disso. Quando lancei meus livros, em 2012, comecei a visitar as escolas públicas de Joinville para falar sobre literatura. Mas a coisa cresceu, e literatura era apenas uma desculpa para começar o papo. E o tema que mais sensibilizava os alunos era o tal do bullying. É uma ferida aberta – e acredito que sempre vai estar aberta, até que as escolas tenham uma postura mais responsável e ativa sobre isso. Por isso, resolvi que ia me abraçar nesse tema e elaborar uma ferramenta para discussão nas escolas. Foi assim que “Menina Distraída” surgiu.

Já ouvi muita gente falando que também viveu “zoações”, e que nem por isso se sentiam abaladas. Pelo contrário: alguns disseram até que havia sido saudável. Um amigo meu chegou a dizer que o tal do bullying deixava as pessoas mais fortes, com mais personalidade. Absurdo, né? Eu acho que existe um fenômeno de negação; algumas pessoas parecem não conseguir abrir a cabeça para entender e se sensibilizar. Eu acredito, sim, que a palavra foi banalizada. Qualquer coisinha já é diagnosticada como bullying. Mas não é bem assim: o bullying é uma agressão repetitiva, cruel, do mais forte para o mais fraco, e começa sem motivo nenhum. A pessoa ser gordinha, usar óculos, ter sardinhas ou ser negra já é “motivo” para que seja zoada até se sentir deslocada de todo um convívio. Meus amigos me mandaram depoimentos chocantes sobre isso. Alguns, como vítimas. Outros, como agressores arrependidos. O bullying, quando “amadurece” e vai para as empresas, é chamado de assédio moral. E o assédio moral tem graves conseqüências, ele é o bully que não foi combatido. 


Conheça o projeto da Vanessa. Ele está na plataforma de financiamento colaborativo Catarse. Se você puder, ajude a torná-lo realidade.
Eu ajudarei!
E espero ver em breve uma excelente obra para nos ajudar a lutar contra o bullying nas escolas.

Outras pessoas também contaram, lá na fan page do blog, um pouco sobre o bullying que sofreram. Dê o seu relato. Vamos ajudar a tirar o bullying da invisibilidade e, assim, desnaturalizá-lo.

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