Somos todos sobreviventes.
Sobrevivemos às iniquidades, à ignorância, ao preconceito, à discriminação, à maldade alheia. Sobrevivemos à corrupção, ao mau caratismo, à violência, à politicagem, ao crime organizado.
Sobrevivemos também à medicalização da vida e à violência institucional.
Sobrevivemos aos nossos próprios erros.
Alguns sobreviveram a um “pânico psicológico de uma pré-separação” conjugal.
Alguns sobreviveram à própria separação conjugal.
Alguns sobreviveram a uma doença familiar não tratada, que impediu o estabelecimento de laços afetivos fundamentais.
Alguns sobreviveram – e continuam a sobreviver – à perversidade direcionada com o único fim de atacar injustamente, de denegrir imagens.
Alguns sobreviveram a cirurgias ainda bebês, vencendo os 20% de chance de vida.
Alguns sobreviveram à morte de quem amaram e amam muito: uma mãe, um pai, uma irmã, um irmão, um amigo, alguém que teve papel fundamental em sua vida.
Algumas sobreviveram à perda de um filho, a um aborto, ao medo de não ser mãe.
Alguns sobreviveram ao “temor e rótulo de uma insanidade mental”.
Alguns sobreviveram a ser arrastado por uma enxurrada quando criança, a ser retirado da boca do bueiro.
Alguns sobreviveram a famílias problemáticas, a pais ou mães alcoolistas, à solidão e tristeza maternas ou paternas.
Alguns sobreviveram ao abandono familiar.
Alguns sobreviveram ao sentimento de fragilidade.

Muitos se separaram e se fortaleceram, ao se verem plenamente capazes de suprir suas próprias necessidades afetivas e materiais e de dar conta do recado.
Muitos reconstruíram suas vidas após uma separação.
Alguns transformaram a doença de sua própria mãe em inspiração de vida, em aprendizado, em vontade de descobrir novas coisas.
Alguns transformaram as acusações injustas e desumanas em mais força e mais união, se reergueram, se reconstruíram e mudaram suas vidas.
Alguns transformaram 20% em 100% de chance de viver. De bem viver.
Muitos deram a volta por cima após a morte de quem amavam e tornaram essa perda uma força motriz.
Muitos venceram o medo de não ser mãe, quando queriam muito, e adotaram. Ou engravidaram. Ou se resolveram bem mesmo assim.
Algumas transformaram a dor da cesárea indesejada em um novo e poderoso parto – um VBAC.
Alguns transformaram o temor e rótulo de insanidade mental em autoconhecimento e autoaceitação.
Muitos sobreviveram aos problemas de suas famílias por verem-nos como naturais e promotores de novas e sólidas relações.
Muitos venceram uma dependência psicológica, física e química.
Muitos trocaram a fragilidade pelo empoderamento.
Alguns sobreviveram a um câncer.

Todos sobrevivemos às dificuldades – e alguns também sobrevivem a excessivas facilidades.
Todos, em algum momento, tivemos nosso próprio fim de mundo particular. Aquele momento em que paramos, olhamos ao redor e dizemos: agora fodeu. E, contrariando nossas duras expectativas, as coisas foram melhorando, fomos superando,  fomos criando novas formas de viver, e passou.
Ufa, sobrevivemos.
Claro que escrevo isso inspirada por um fim de mundo folclórico que, supostamente, deveria ter acontecido no último 21 de dezembro. E que, claro, não aconteceu. Como tudo o que aconteceu com a gente – com você, pelo menos, que está vivo e lendo isso: simplesmente não aconteceu.
Somos a somatória de muitas coisas que não aconteceram. E que bom que não aconteceram, pois não seríamos quem somos hoje…
Somos as perdas que sofremos, as frustrações que vivemos, as tristezas pelas quais passamos… Somos tudo isso. Mas transformado. Pois soubemos – ou estamos a caminho de – transformar as experiências de vida em crescimento e superação.
Uma coisa é importante: de nada vale sobreviver se não for para ter vida. Vida real, vida bem vivida, vida aproveitada, e sorrida, e tocada, e dançada, cantada, beijada, abraçada, cheia de saudade, de telefonemas, de palavras de apoio, de sentimento de grupo, de respeito, de respeito e de mais respeito ainda. De amor.
Porque se não for para ser assim, não vale a pena sobreviver…
Não é sobreviver o que queremos. O que queremos é: viver. Viver bem. Viver plenamente.
Há uma coisa que une cristãos e não cristãos e não se pode negar: a história de Jesus Cristo – tenha sido ele real ou seja ele uma lenda – é uma história de superação de obstáculos, de sobrevivência não de um corpo, mas de uma essência, de um espírito.
É isso o que busco celebrar nessa época: a sobrevivência, no sentido de transmutação daquilo que havia e já não há, porque mudou. Porque cresceu. Porque se desenvolveu e enriqueceu.

Eu e minha família sobrevivemos a perdas importantes que aconteciam na época de Natal e fim de ano… sobrevivemos ao sentimento de passar o natal sabendo que no ano seguinte quem amávamos não estaria conosco. Sobrevivemos e transformamos essa experiência em mais vida bem vivida.
Nesse ano, não estarei com minha mãe, irmãs e sobrinho. Mas me sinto imensamente feliz por sabê-los juntos, por saber que estarão entre quem amam e que se lembrarão de mim.
Nesse ano, espero ansiosa pela visita do Papai Noel. Ele nos visitará em carne, osso, roupa, sino e amor de avô. Meu pai está muito feliz se preparando para encarnar o velhinho gordinho de barba branca para sua neta, minha filha. Vai chegar caminhando pela rua, tocando o sino, chamando pelas crianças, plantando memórias de amor que nunca irão se apagar. Tenho as minhas, recheadas da presença do meu avô e não troco por nada.
Celebraremos o poder e o dom que todos temos de nos transformarmos. De transformarmos nossas experiências. De transformar a sobrevivência em vida.
Então, o que eu desejo pra todo mundo é isso: vida! Ainda mais vida!
E deixo um trecho de quem é, para mim, junto com Nise da Silveira, Paulo Freire, Henfil e Betinho, fonte brasileira de inspiração constante:

“A você que fica aí, inútil, vivendo essa vida insossa, só digo: Coragem!
Mais vale errar se arrebentando do que preparar-se para nada. O único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois, seremos matéria cósmica. Apagados minerais. Para sempre mortos.”
Darcy Ribeiro

Eu e minha família desejamos a todos um Natal alegre e cheio de vida!

Dedico esse texto a todos que se sentem sobreviventes, seja lá o que tenham vivido. Especialmente à minha família original.
E agradeço especialmente às mulheres que compartilharam suas vivências de tantas formas possíveis.


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