Um dia relatei na fanpage do Cientista Que Virou Mãe? uma das tantas coisas que a Clara, minha filha, me diz todo dia, toda hora e que me dá uma certeza imensa de estar fazendo isso certo. Desde que ela mostrou uma certa capacidade para entender essas coisas de "postar/compartilhar", eu a consulto sobre se posso ou não postar alguma coisa que ela tenha dito. Tem coisa que ela permite, tem coisa que não. Respeito as decisões dela. É uma criança muito conversadeira, adora uma prosa, tudo que fazemos em casa fazemos juntas e isso nos permite trocar muitas ideias, conversar sobre todos os assuntos, discutir muitos pontos de vista. Não há silêncios quando estamos juntas, exceto quando absortas em nossas atividades simultaneamente. E assim vamos conversando sobre essas coisas tão intensas e estranhas e amorosas ou não que é a vida. 

Explico as coisas que ela me pergunta usando uma linguagem adequada para sua idade, mas não fantasiosa. Eu não costumo usar explicações como "foi para o céu", "virou uma estrelinha", "foi ficar com papai do céu" quando falamos sobre a morte de seu avô, por exemplo. Quando ele faleceu, subitamente, sem que ninguém tivesse tempo para se preparar, eu não consegui dizer nada que não a verdade. E dizer a verdade, nesse caso, não subentende grosseria ou crueldade, afinal a morte é um processo natural e esperado. Os tantos tabus que temos com a morte é porque fomos incorporando tudo o que a nossa cultura ocidental associa a ela. Além da imensa dor da perda e de não termos uma educação emocional que nos permita acolher diferentes dores e compreendê-las. Não usar esse tipo de explicação mais fantasiosa não significa que eu julgue quem as usa – cada um sabe onde aperta seu calo e até onde consegue ir. Eu só posso decidir por mim e por minha filha. De uma certa forma, isso tem dado certo. Ela está desenvolvendo com a questão da morte, por exemplo, uma relação muito natural. A gente precisa ensinar isso pras crianças: que dor chega, dói, a acolhemos, pensamos sobre ela, e passa. Que sentir dor é normal, natural e todo mundo vai sentir. Se a gente faz de conta, a todo custo, que a dor não existe, e quando ela ameaça chegar para eles a gente inventa algo para "distraí-los", eles não aprenderão uma maneira saudável de lidar com ela. E isso é muito sério. É uma espécie de porta de entrada para aquelas tantas coisas que tiram a dor do nosso foco – embora não a impeça de existir… Drogas, medicamentos (drogas), álcool (drogas), relacionamentos abusivos, compulsão por relacionamentos abusivos e toda sorte de comportamento que tem um objetivo principal: tirar a dor do nosso raio de visão.

Isso não significa que vou contar para ela todas as coisas difíceis e tão reais quanto sobre a vida. Tenho um parâmetro: é natural, é normal? Conto a verdade. Não é natural, ou não é normal – e são coisas distintas – e pode deturpar a visão que ela tem do mundo, das pessoas, de quem ama? Não conto. E não contar não é mentir. É apenas não contar. Acredito no poder natural da vida para ensinar às pessoas suas próprias lições. Acredito sobretudo na frase: "Ela vai crescer e vai saber naturalmente".

Então, quando postei aquele nosso diálogo do café da manhã, sobre "pessoas que descobrem que são outras e vão mudando", tão basicão pra gente, tão normalzão, tão mais do mesmo dentro da nossa realidade e visão de mundo, perguntei pra ela se podia postar e ela falou: "Mãe, claro que pode. Mas todo mundo já sabe disso, ué…". Eu disse que muitas pessoas não sabiam não. E que mostrar que uma criança de 5 anos já sabia disso podia ajudar as pessoas a pensarem sobre o assunto. Ela não entendeu. Pra ela, dizer que pessoas nascem de uma maneira e, quando percebem que são diferentes, vão se tornando outras, é muito básico. É a mesma coisa que dizer que não se bate em criança, não se maltrata criança, não se xinga criança. Para ela é óbvio que não! Da mesma forma, para ela é óbvio que todo mundo sabe que algumas pessoas aos poucos se percebem como outras, diferentes do que dizem que elas são, e vão mudando. Para ela, é óbvio que duas pessoas quando se beijam é porque se amam. Que duas pessoas quando vivem juntas e se chamam "família" é porque se amam. Ou, ao mínimo, deveria ser assim. O amor, pra ela, é natural. Ser quem somos e quem descobrimos ser, é natural, é normal. Aceitar as outras pessoas como são é natural, é normal.
E fim. E é isso.
E não interessa quem são essas pessoas, o que fazem, o que comem, onde vivem. Não interessa se "ele nasceu menina, percebeu que era menino e foi mudando". Ela sabe o que é ser quem se é. Ela sabe o que é o amor e como ele se manifesta. Ela cresceu assim. Está crescendo assim. Ela não tem ao seu redor modelos negativos nesta questão. Ela sabe que pessoas adultas amam pessoas adultas e fim.

Então, postei. Eis que aquilo viralizou. Foram quase 10.000 curtidas e mais de 1.500 compartilhamentos em pouquíssimo tempo. Um simples relato cotidiano de um diálogo com uma filha. Então, pouco antes dela dormir, contei pra ela como as pessoas acharam especial o que ela havia dito. Tentei explicar em termos que ela entendesse que aquilo que ela disse havia inspirado muitas pessoas. E ela continuou sem entender o porquê.

– Mas mãe, por que?
– Porque as pessoas gostam de saber que há crianças e mães e pais que falam sobre isso dessa maneira.
– Sobre o que?
– Sobre pessoas que percebem que são outras pessoas e vão mudando.
– Mas por que?
– Porque não é todo mundo que pensa assim.
– Mas como assim?! É assim que se pensa.
– Eu sei, filha…
– Por que gostaram tanto? É só uma coisa normal.

E eu, que explico para ela as situações naturais usando a verdade, que não crio explicações fantasiosas, não consegui explicar o motivo de ter gente que não acha isso uma coisa normal… E não consegui porque isso, de não aceitar as pessoas como são, NÃO É NORMAL. Se tem uma coisa que não é normal é isso, essa coisa de ditar (estou sendo leve na palavra, mas pode substituir por outra mais pesada) regras sobre quem devemos ser e sobre o amor que devemos ter. Então, senhoras e senhores, vocês que estão aí se perguntando "Como vou explicar 'isso', de pessoas do mesmo gênero se amarem, ou de pessoas quererem assumir outro gênero que não aquele com o qual nasceram?" saibam que há gente num dilema muito mais cruel: como explicar que existem pessoas como vocês. Que não sabem o que é respeito. Que não sabem ao certo o que é o amor. E que por não saberem, condenam o alheio. Dói em mim ter que explicar para minha filha de 5 anos que existem pessoas assim, como vocês. 

Se não me dói ter que explicar que pessoas mudam seus gêneros, que pessoas do mesmo gênero se amam? Olha. Nunca nem pensei em ter que explicar. Porque acredito piamente que as crianças aprendem o que veem, o que vivem, o que seus pais ou cuidadores – que são seus principais modelos – defendem, valorizam, respeitam. Nunca ensinei isso à minha filha. Ela apenas aprendeu o que viu, ao seu redor, com seus pais, seus cuidadores, seus amigos. A gente não precisa ensinar ativamente o respeito ao fato de que uma pessoa adulta ama o adulto que ela quiser. A gente só não pode fazer o contrário, enfiando cérebro e coração adentro das crianças que aquilo, QUE SE CHAMA AMOR, é algo horrível, horroroso, que um deus que tantos julgam como sendo um deus de amor acharia odioso. Em outras palavras: muito ajuda quem não atrapalha. Muito ajuda quem não é preconceituoso e, assim, não contamina toda uma geração com seu preconceito. Porque olha, eis aí uma doença mais mortal que muito retrovírus: o PRECONCEITO. E é você, que o nutre e incentiva (seja lá baseado no que), quem está matando. Nós, aqui, da família da Clara, não levamos esse sangue em nossas mãos. Clara não leva nem levará esse sangue em suas mãozinhas de criança. E se você, que tem filhos, se orgulha de propagar o preconceito e de ensinar a eles que tem família que não é família, e que tem amor que não é amor, saiba: as mãozinhas deles já vão crescer ensanguentadas. 
Duro ler isso? É, eu sei.
Mas tem coisa que é muito mais. Como matar em nome disso. Como morrer em nome disso. E a culpa dessas mortes é sua, que nutre o preconceito. Pessoas morrem por sua culpa. Por seu incentivo. Sem linguagens fantasiosas porque, né? Você já é bem grandinho.
O que me preocupa mesmo é: eu não sei como dizer à minha filha de 5 anos que vocês existem… Porque isso não é normal.

 

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