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Então você já deve estar cansado de saber que nasceu o filho da Kate, lá na Inglaterra. Ela é duquesa, mas pra mim é princesa mesmo, porque eu não entendo nada de títulos de nobreza nem pretendo pesquisar pra saber qual a diferença oficial. Os únicos títulos dos quais eu entendo são o de eleitor, o bancário (daqueles que a gente não vence pagar…), o de especialista, mestre, doutor e olhe lá. Nasceu um garoto. E nasceu de parto normal, com o pai ao lado, lá no Reino Unido.
Muita gente compartilhou ontem essa notícia – e segue compartilhando. Principalmente as pessoas que estão, de alguma forma, envolvidas com a luta pela humanização do parto aqui no Brasil. O compartilhamento foi em tom de vitória, de lição, de “Viu? Lá é assim. Aqui é na faca”.
Sim, aqui é faca na caveira – na caveira, na costureira, na cabeleireira, na manicure, na advogada, na médica, na atendente, na artesã, na administradora, na bióloga, na tia, na prima, na vizinha, na atriz. É faca geral! É por isso que a gente alcançou, enquanto brasileiros, o nível pornográfico de 52% de cesarianas, quando o que se recomenda pelas organizações internacionais que se preocupam com a saúde é apenas 15%.
Você já deve saber também os motivos desses 52% (se não sabe, vem aí o filme “O Renascimento do Parto” pra ajudar a ensinar, chegando em agosto aos cinemas): falta de informação das mulheres, falta de empoderamento, achar que é assim mesmo, confiança cega nos médicos, comodidade médica, formação médica deficitária, interesse econômico, interesse corporativo, etc etc etc e etc.
Cada mulher faz o que quer? Não. Não é bem assim. Por exemplo, se ela quiser fazer um aborto com o respaldo médico, ela não pode fazer. Cada mulher sabe o que é melhor para si? Seria ótimo que soubesse, mas isso passa por uma questão de empoderamento feminino que não, infelizmente ainda não temos em nossa grande maioria – embora estejamos lutando muito para chegar lá – e eu poderia dar aqui muitos exemplos mostrando o quanto nos falta de empoderamento enquanto mulheres, mas melhor deixar para outro momento para não perder o foco… Então, companheira, deixa esse argumento vazio na gaveta e esquece ele lá, pra não passar atestado de credulidade por aí.
Bom, mas o que eu quero falar é sobre o compartilhamento em massa de notícias sobre o nascimento do príncipe. (Ué, é príncipe, não é? Se vai ser rei, é príncipe. É o único caso em que nasce – de fato – um príncipe. O povo fala tando de meu principezinho isso, meu principezinho aquilo, e quando nasce um, critica. É príncipe, paciência. Lá é monarquia, aqui não. Fim.) Houve um tanto impressionante de compartilhamento! E eu acho ótimo! Acho mesmo. Claro, fica meio monotemático, às vezes o mesmo link se repete duzentas vezes, mas é ótimo! É valorização do parto natural! É ressignificação do parto também, minha gente. Ah, você ficou com mau humor por ver o pessoal falando tanto sobre? Ficou com preguiça? Então olha, deixa a preguiça de lado. Isso faz parte do renascimento do parto. Sim, faz parte.
Se nós temos 52% de nascimentos por cirurgia cesariana no Brasil, será que não está claro que não, não é todo mundo que sabe de tudo o que falamos por aqui, em nossas incansáveis linhas, de nossos incansáveis blogs, em nossos frenéticos perfis? Será que não está claro que não é todo mundo que possui a informação das quais dispomos, de que em outros países o parto é parto mesmo – normal, via vaginal – e que é só aqui no Brasil que acontece essa apropriação indébita do parto alheio? Para quem estamos falando? Estamos falando para nós mesmas, sempre, em um círculo fechado, buscando apenas reforço às nossas próprias palavras, ou estamos falando para fora, para outros espaços, para outras mulheres, que estão em busca, que ainda podem encontrar o parto, que podem parar para pensar sobre e enxergar que sim, perderam seus partos… Que sim, foram enganadas… Que sim, podem tentar de novo e mudar o fim da história. Que sim, podem ser elementos de multiplicação.
É aí que entra a boa vontade. A disposição. O se doar. O parar e explicar – como vi bastante gente fazendo timelines a fora – o porquê de estarmos falando sobre o nascimento do menino filho da Kate, que não é um deslumbramento monárquico porque, afinal de contas, nós nem de títulos de nobreza entendemos. O que estamos fazendo é mostrar: “Olha companheira, viu, é assim em outros países, o trabalho de parto é incentivado, o pai está junto, a mulher vive um parto, não uma cirurgia. Viu como é uma cultura diferente? Nós também temos o direito de viver isso.”. Quem sabe, assim também, as pessoas percebam, por meio do contraste, como anda tudo errado aqui na terra brasilis, onde mulheres insinuam sua bunda, em quatro apoios, em um outdoor na SC-401 mas têm pudores de parir. Quem sabe vendo que lá, na terra do chá das cinco e da tradicional pontualidade, onde vive uma rainha de expressão facial séria, mulheres se entregam ao parto vaginal, ao parto normal, quiçá até natural.
Militância e ativismo não combinam com mau humor. É preciso disponibilidade. Claro que tem hora que enche o saco, que dá nos nervos, que blablablá e mimimi. Tem gente até que tira fanpage do ar por conta disso (ouvi falar…). Eu também tenho meus momentos de querer um botão EXPLODA no lugar do “Curtir”. Já até o apertei algumas vezes. Mas nessas horas é que é importante lembrar que o que deve tirar o nosso bom humor não é o compartilhamento em massa de coisas boas, mas, sim, do senso comum. O nosso mau humor precisa ser direcionado para fora, não para dentro. Para o cesarista, para o corporativo, para a médica que dá declaração dizendo que fez cesariana na mulher porque “Oh, desgraça biológica, o bebê era grande! Oh perigo celestial, tinha cordão no pescoço!“, para o hospital que não permite acompanhante, para o ator que bateu na atriz e vai passar impune, é para esse tipo de alvo que nosso mau humor precisa estar afiado. Não para quem está se empoderando agora e toma um corte desnecessário (olha, que duplo sentido, ãhn?). Vi na minha timeline um exemplo disso. A colega (moça bacana, recém chegada no movimento de humanização, aprendendo agora o porquê do “parto é parto e cesárea é cesárea” e começando a entender que não existe parto cesáreo, começando a ler sobre, começando a ser agente de multiplicação, compartilhando informação útil às suas amigas que não se interessam sobre isso, fazendo seu papel de formiguinha) compartilhou um dos muitos links sobre o filho da Kate, dizendo algo como “Olha que bom, foi parto normal”. Aí vai lá a ativista empoderada e diz pra ela: “Você esperava que fosse o que? Cesárea?! Alôôô!”. A moça não comenta nada. Logo mais posta uma frase falando sobre delicadeza…
Calma gente, não criemos pânico. Deixa o povo compartilhar em paz. Não é medieval. Medieval é
chegar com seu machado, lança ou sei lá o que e ir golpeando todo mundo. Tem que compartilhar sim. Tem que compartilhar mais ainda. Tem que falar muito mesmo. Até que todo mundo esteja cansado de saber. Até que a criançada esteja cansada de ouvir a mãe falando pra tia que o filho da princesa nasceu pela pepeca, pela patota, pela pombinha, pela pomba, ou sabe-se lá o nome que se dá à vagina – já que “vagina” parece ser persona non grata (para o nascer, quero dizer…). Tem que tornar parto normal o senso comum, e não o contrário. As meninas de hoje ouvem tanto falar que princesa é isso, que princesa é aquilo, que princesa senta de perna fechada, que princesa não corre com os moleques, que princesa tem que ser quietinha e tanta coisa boba, sexista e atrasada mais… Deixa ouvir falar que a princesa também tem filho pela vagina! Deixa a avó ler na timeline que a princesa deu a luz! Deixa a tia da vizinha da sua prima saber disso porque, afinal, vai ser ela mesma quem vai te encher o saco quando você estiver de 40 semanas de gestação. O renascimento do parto também passa por isso.
Quer saber?
Não vejo a hora de começar a postagem em massa da amamentação da Kate.
Contem com meu link.
Aproveito para indicar uma leitura ótima. Esse cara aqui, o Marco Antonio Araujo, é jornalista e escreve um blog chamado O Provocador, no portal R7. Eu não o conhecia, desculpem minha ignorância. Até que encontrei esse texto dele, com o título de “Cesariana é coisa de plebeu!. Dá uma lida (mas dá mesmo!) e veja que beleza. É sobre isso que estou falando também.