Eu a conheço há alguns anos.

Ela chegou de mansinho e logo nos tornamos amigas. Não daquelas que se veem sempre. Mas com as quais sabemos que podemos sempre contar. Serena. Sorridente. Simpática. Sincera. Cheia de boas ideias.
Quando nos conhecemos, ela já tinha dois filhos: o Pedro, mais velho, e o João, caçula até então. E então, pouco depois, conheci também seu companheiro, Márcio.
Ela, que viveu duas cesáreas desnecessárias para o nascimento de seus filhos, mostrava-se sempre muito disposta a conversar com as pessoas sobre a questão da humanização do parto, da amamentação continuada, da educação sem violência. Andava com João pendurado em seus slings ultra estilosos pra cima e pra baixo.
E foi com imensa alegria, então, que recebi a notícia de que ela estava grávida de seu terceiro filho, mais um menino: Antônio.
E foi, também, quando começou sua luta para vencer o sistema e impedir que vivesse sua terceira cesárea. Uma terceira cesárea desnecessária.
Ela faz parte da imensa maioria das mulheres que não têm como custear um parto domiciliar planejado, embora quisesse muito. Sem convênio de saúde, foi atrás de seu parto natural na rede pública, via SUS. Via SUS que dá certo.
Já bem no final da gestação, ela estava se sentindo muito sozinha. Muito sozinha principalmente em sua decisão de ter um parto natural após duas cesáreas, que nós chamamos pela sigla VBA2C (vaginal birth after two cesarean sections). Imagine… Se em nosso país já é difícil conseguir parir seu primeiro filho naturalmente, imagine o que é para uma mulher que viveu duas cesáreas anteriores? De pitaco da vizinha a médicos que te desincentivam com argumentos infundados dignos de um filme de horror, há de tudo.
Mas ela estava firme em sua decisão. Firme. Porém sozinha…
Foi então que o filme O Renascimento do Parto chegou a Florianópolis. E ela foi assisti-lo. Mas não foi sozinha: foi com seu companheiro, Márcio, – e seu bebê na barriga, a termo, quase nascendo, mas sem sinais de que estava querendo nascer naquele momento.
E foi quando tudo começou a acontecer.
Márcio e Letícia
Márcio, que até então ainda estava relutante com a decisão dela, ao ser confrontado com a realidade por trás das cesarianas por conveniência no Brasil, ao assistir na tela os procedimentos e intervenções aos quais as brasileiras e seus bebês passam naquele que deveria ser o momento mais pacífico e acolhedor de suas vidas, ao lembrar do que viveram no nascimento de seus dois primeiros filhos e, principalmente, ao transpor tudo aquilo para ela, para sua vivência, naquele momento mudou de postura. E a acolheu. A abraçou. A apoiou. Desculpou-se por não ter dado a devida importância àquela decisão tão íntima de uma mulher. E ela se sentiu pronta para ter seu terceiro filho.
Não. Não se espante ao saber que eles foram embora antes mesmo da discussão pós filme… Por motivo de contrações.
Três dias depois, bem tarde da noite, estávamos conversando, eu e ela, quando ela parou de me responder. Pouco tempo depois, a mensagem privativa: 
Letícia estava em franco trabalho de parto.
Não tive mais notícias dela até o dia seguinte, quando acordei e soube: Antônio havia nascido! 
VBA2C de Leticia, trazendo seu terceiro filho ao mundo
Parto natural, sem qualquer intervenção, pesando 3,415 kg e medindo 49,5 cm, no Hospital Universitário, arrancando espanto e surpresa da equipe de profissionais que a atendeu. Apenas duas horas após aquela mensagem… As enfermeiras diziam que não acreditavam no que estavam vendo e Letícia apenas dizia: “Assistam O Renascimento do Parto! Assistam O Renascimento do Parto!”. 
Dois dias depois nos falamos.
Ela estava daquele jeito que você pode bem imaginar.
E então me disse que faria seu relato e me mandaria. 
Claro que eu me emocionei muito. Claro. É sempre assim que me sinto quando sei que uma mulher conseguiu vencer em sua luta por um parto respeitoso nesse país onde ter respeito é visto como “ter sorte”, onde é preciso mesmo muita sorte para não ser violentada nesse sistema onde mais de metade dos nascimentos são cirúrgicos, para não ter sua vagina cortada por uma episiotomia, para não ter seu bebê empurrado de cima para baixo com violência por um profissional despreparado, para não receber o tal do sorinho veia abaixo, sem consentimento, contendo ocitocina sintética que irá aumentar em muitas vezes suas dores apenas para acelerar seu trabalho de parto, para não ter seu bebê tirado antes do tempo por motivos de unha encravada.
Mas nesse caso me emocionei ainda mais porque… ah, porque era a Letícia. E Letícia queria viver isso tanto quanto ser mãe. Ou seja: muito.
Então nesta semana que passou, enquanto eu ainda estava no Rio de Janeiro para o Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde e também tirando uns merecidos dias de tranquilidade e diversão com minha família, Letícia me mandou o relato. Eis que poucos minutos antes desta postagem eu o li. E qual foi a minha surpresa ao ler não o relato de seu parto natural após duas cesáreas… Mas seu relato de nascimento de Pedro. Seu primeiro filho.
Fiquei tão emocionada. Entendi tão perfeitamente o que ela estava querendo dizer, que hoje, mediante autorização dela, trago para cá esse relato. Na esperança de que outras mulheres também se inspirem para ressignificar suas experiências anteriores. Como eu e tantas mulheres fazemos todos os dias.
Abaixo, você lerá tanto a mensagem que ela me enviou quanto o relato de nascimento de Pedro, seu primeiro filho, por uma cesárea desnecessária que o levou a nascer prematuro. 
Nós não somos um fato isolado. Somos produtos da história que nós mesmos construímos,
ainda que tantas vezes tentem construí-la em nosso lugar, tirando de nós nosso protagonismo. Para muitas, é daí que se renasce. Foi assim meu renascimento. E o da Letícia também.
Querida amiga: você me inspira.
Por Letícia Barbosa

“(…) não poderia escrever só sobre o nascimento do Antônio, tenho certeza que entenderás porque. Um parto não exclui o outro. No nosso caso, foi uma construção de empoderamento. Sabes que fazes parte de tudo isso. Agradeço sempre por ter tido a oportunidade de conviver contigo e tantas outras mães que me ajudaram e ajudam a construir minha maternagem. Obrigada!Está em anexo o relato de parto do Pedro. Não é um relato lindo.É dolorido.Foi muito difícil escrever. Enquanto escrevia, me libertava de todos os sentimentos ruins que me acompanharam por tantos anos. Não me preocupei em explicar pq as indicações de cesárea eram mentirosas. O que foi, foi. As informações de qualidade estão disponíveis pra quem se interessar. O renascimento do parto pra mim foi o despertar dos meus instintos. Estava tudo ali. As minhas cesáreas desnecessárias, a violência comigo e meus bebês. Queria que fosse diferente. E foi. Não só diferente, foi lindo.Espero, sinceramente, que esse relato chegue até as pessoas que precisem enxergar a importância  do momento do nascimento.”

Santa Maria/ RS, julho de 2002.

Estava prestes a fazer 18 anos quando conheci meu amor, minha alma gêmea, o pai dos meus três filhos, o Marcio ou como o chamo, Moi/Vida.
Foi inesperado, mágico, uma história e tanto que não contarei aqui, pois ficaria um tanto longa.
Logo engravidamos (provavelmente na primeira vez que fizemos amor).

Gestação
Tive um sangramento no começo da gravidez e depois disso fui morar na casa dele, com a família dele… Foi um começo difícil, rotinas novas, adaptações. Todos me acolheram bem, estávamos felizes. Lembro-me dos momentos em que colocávamos uma música bem alta e saíamos dançando pelo apartamento. Era muito divertido. Depois de muitos anos finalmente eu tinha uma família. 
Mas…. Tudo que é bom, dura pouco… 
Com 20 semanas de gestação, estava voltando do trabalho quando senti um desconforto para caminhar, parei, liguei pro Moi que foi me encontrar. Cheguei em casa, tomei um banho e descansei, no dia seguinte tinha consulta pré-natal.
Chegamos ansiosos à consulta. Desde o sangramento, nos apegamos demais ao bebê, queríamos muito que tudo estivesse bem, mas não estava. 
Durante o toque, a GO constatou que o bebê estava encaixado e que mesmo sem perceber estava tendo contrações. Indicação de repouso absoluto e medicação. Desabamos nesse momento. Choramos muito. Ficamos com muito medo. Estávamos curtindo cada dia dessa gestação, cada movimento do nosso menino… e agora parecia que tudo tinha ficado cinza, sem cor.
Passavam-se os dias quentes de sol lá fora e eu lá, deitada num quarto, não podia arrumar nada para a chegada do meu bebê, não podia sair e curtir meu barrigão… Ficava triste, chorava, rezava…
Precisamos ir algumas vezes para o hospital, fazia medicação, ficava por três ou quatro dias e voltava pra casa e tudo igual. Cada semana que passava era uma vitória. Sabia que quanto mais tempo o bebê ficasse em meu ventre, mais chances teria de viver.
Mudamos, fomos morar em uma kitnet. Com a mudança, me movimentei mais do que deveria. Resultado: muitas contrações (mesmo com medicação), sentia o bebê lá embaixo, mas não tinha nenhuma dor.
No dia 3 de abril de 2003 estava marcado um dos muitos ultrassons que fizemos (não sabia que seria o último). Eram umas 19 hs e lembro exatamente o que a GO disse:
– Tem três circulares de cordão. O bebê está aqui em baixo, vai ter que ser cesárea.
E empurrou o bebê pra cima…
Imagina uma menina de 18 anos, sem muita informação, sendo informada por uma médica (que até então confiava) que seu bebê estava em perigo porque tinha três voltas de cordão em seu pescoço?Claro que aceitei. Nem questionei.
Chegamos em casa e senti um “PLOF” dentro de mim. O bebê desceu novamente e começaram as contrações. Só sentia um desconforto, não sentia dor. Quando percebemos que o intervalo das contrações estavam próximos, ligamos para a GO que orientou  ir imediatamente para a maternidade. Estava com muita fome e  pedi para comer arroz e feijão, o Moi arrumou e comi dois pratos! Tomei um banho demorado, terminamos de arrumar as coisas e chamamos um táxi.

Parto
A noite estava chuvosa, chegamos por volta da meia-noite na maternidade e a GO já estava esperando. Fui para triagem. Lembro-me de sentir muito medo, tremia, não havia me preparado… Fui examinada e começaram as intervenções. Fizeram a tricotomia (raspagem dos pelos) sem nem explicar o que ia acontecer, nesse momento o Moi tinha ido fazer a inte
rnação. Queria tanto que ele estivesse do meu lado… (A Lei do Acompanhante só entrou em vigor em 2005) e mesmo pedindo para a GO autorizar a entrada dele, ela me disse que só poderia se ele fosse profissional da saúde. Ele não era. Estava sozinha nessa.
Estava paramentada e fui caminhando para o centro cirúrgico, o Moi estava no corredor e nos despedimos… Foi o momento mais triste que vivi até hoje.
Estava prestes a viver o acontecimento mais feliz das nossas vidas e sentia meu amor excluído, sem poder me dar o apoio que precisava, chorei.
Tremia muito de medo do desconhecido.
Ninguém, em nenhum momento, me explicou ou orientou para o que aconteceria.
Recebi a anestesia, senti o calor nas pernas, colocaram a sonda… A equipe conversava qualquer coisa e eu agarrada no meu escapulário da Nossa Senhora do Bom Parto, rezava.
Senti cada camada do meu corpo sendo cortada, chorei em cada uma delas (na época não sabia, mas foi a maior violência que já sofri na vida), não demorou muito e senti que Pedro estava sendo tirando de dentro de mim.
No momento exato em que tiraram ele, gritei…..urrei.
Era mais um urro de quem estava parindo, mas não, não pari meu filho amado.
Não senti seu cheirinho. Não lhe dei o primeiro abraço. Não foi a minha voz que ele escutou primeiro, não fui eu que acalentei seu choro….e isso dói na gente até hoje.
Levaram-no até uma sala ao lado, só acompanhei com os olhos, até ele sumir levado nos braços de alguém… Nem gosto de imaginar quantas intervenções ele sofreu, só escutava seu chorinho… Depois de algum tempo, trouxeram-no. Dei um cheiro e o enchi de beijos, disse o quanto o amava… Levaram-no de novo.
Estava tão feliz, os sentimentos se misturavam, me sentia sozinha… A GO começou a suturar e me apertava, doía meu estômago e ela perguntou se tinha comido alguma coisa. Respondi que havia comido dois pratos de arroz e feijão, ela falou uns absurdos (que prefiro nem repetir) o que me deixou muito frágil… Com um sentimento de culpa.
Fui para a sala de recuperação e depois de um tempo o Pedro chegou para dar sua primeira mamada.
Foi lindo… Estávamos finalmente nos conhecendo. Senti seu cheiro, ofereci meu peito que ele logo sugou. Ficamos ali nos olhando, nos sentindo, namorando um ao outro. Meu filho estava ali, nos meus braços. Senti que tinha nascido pra viver esse momento. Senti que meu coração ia explodir de tanto amor e felicidade. 
Fomos juntinhos para o quarto onde o papai nos esperava. Outro momento lindo (temos gravado isso). Eu estava amamentando Pedro, Moi filmando muito emocionado falando em como ele era cabeludo. Choramos de alegria!
Nossa família de cinco, começava ali, naquele lindo momento, com nós três.
Pedro nasceu à 01h07min do dia 4 de abril de 2003, prematuro, com 36 semanas, 43 cm, 2.250 kg. Apgar 9/9.

Pós-parto
Éramos só felicidade, avisamos a família, recebemos visitas no primeiro dia.
No segundo dia surgiu a icterícia neonatal devido à prematuridade. Fizeram a dosagem de bilirrubina e foi indicada a fototerapia.
Fototerapia
Abre-se a porta do quarto e entram dois enfermeiros carregando aquele berço todo equipado… Tiraram a roupinha do meu bebê, colocaram proteção nos olhinhos e aquela luz forte foi ligada… Chorei. Não podia amamentá-lo, tirava leite em um copinho e oferecia a ele toda hora. Ficava ali em pé, ao seu ladinho, segurando aquela pequena mãozinha na tentativa de passar todo meu amor. Foi muito difícil.Aquilo estava doendo muito em nós e o sentimento de culpa surgiu novamente.

Em casa
Ficamos por alguns dias no hospital e num dia ensolarado fomos para casa. Lembro-me de sair pela porta da maternidade abraçando forte aquele meu pequeno-grande amor, no intuito de protegê-lo do mundo. Chegamos em casa e o primeiro mês foi punk. Fomos nos conhecendo aos poucos e tudo foi se encaixando. Nessa época não tínhamos muito com quem contar, então fomos muito intuitivos e a pediatra nos ajudava muito. Era bem desencanada e sempre nos tranquilizava.

Anos depois
Sempre  tive um sentimento de que alguma coisa estava faltando na nossa relação mãe e filho. Desde muito pequeno achava que estava fazendo menos do que poderia. Aos poucos a ficha foi caindo.Tinha sido violentada. Tinham tirado meu direito de parir com argumentos, que hoje sei, foram mentirosos.
Pedro, João e Antônio
Isso doeu, dói e irá doer para sempre. Vejo e sinto as consequências dessa violência.
Pedro é um menino querido, amoroso, carinhoso, prestativo, inteligente, porém é extremamente ansioso e tem uma dificuldade enorme em prestar atenção em tudo, desde uma simples frase até atividades na escola. Nos trabalhamos diariamente para lidar com isso, não é fácil. Mas estamos fazendo o melhor que podemos,com muito amor e respeito, vamos vivendo.Tenho certeza que um dia superaremos tudo isso. Já estamos superando.
Pedro tem hoje 10 anos e 7 meses. Está no quarto ano de uma escola municipal. É um menino fantástico, amado e querido por todos. Mas o sentimento de culpa ainda aparece e quando sou muito exigente com ele, cobrando algo, na verdade, inconscientemente, estou cobrando algo que tiraram de nós. Paro, penso e lembro que não fui a única a sofrer com a violência em seu nascimento, ele também sofreu.

Ao Pedro
Querido e amado filho, hoje você já pode ler e entender como foi seu nascimento. 
A maneira como nasceste não foi a mais romântica, não é o que queria te contar, mas foi assim. E o importante é o que veio depois. Nosso amor, nossa família, nossa superação.
Desde que te senti pela primeira vez, mexendo na minha barriga, um amor enorme nasceu dentro de mim e do seu papito e só faz crescer.
Você foi meu primeiro amor. Amor incondicional.
Estarei sempre segurando sua mãozinha… agora mãozona! 
Conte comigo sempre. 
Obrigada por permitir que eu seja sua mãe, de aprender todos os dias como o amor pode superar os obstáculos da vida e estar junto comigo nessa evolução. 
Ah, desculpe minhas chatices, mas sou mãe né! Mãe é assim mesmo.
Te amo.

Pedro, João e Letícia com Antônio no sling


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