Recentemente me mudei para São Paulo. Onde moro, tenho uma vizinha que é maravilhosa e que cuida do neto enquanto a mãe trabalha. Dia desses, enquanto eu varria a frente da casa, vi a mãe da criança chegando para buscar o filho, uma moça jovem simpática que me cumprimentou e entrou. Na saída, ela veio brincando de forma muito amistosa com o garotinho que ria e se divertia com a mãe. Chegando perto de mim, eu a ouvi dizer:
– Que catinga é essa, Murilo*? Não tomou banho, não? Credo! Tá com catinga de nego – cheirando e acarinhando a criança –, com catinga de nego preto!
Fiquei em choque. E imobilizada na hora. Porque a fala era obviamente inesperada, principalmente pelo fato da criança e da mãe serem pardas.
Após o ocorrido fiquei pensando no impacto daquilo em outros momentos e espaços. Aquilo, como cita o racismo à brasileira, era “apenas uma brincadeira”. A criança gargalhava com os abraços e cosquinhas da mãe, que o cheirava e apertava afetuosamente. Mas, para além daquele momento, me vinha à mente como aquilo se refletiria em outras situações. Diversas teorias psicológicas concordam com a afirmativa de que a constituição da personalidade da pessoa é datada em sua primeira década de vida. A maioria das pessoas negras que conheço relatam que o sofrimento em relação à sua identificação étnica se aflorou na idade escolar. Cito meu próprio exemplo: quando era criança, se um coleguinha ficava bravo comigo, me chamava de “neguinha da macumba, tição, medusa, cabelo de miojo queimado, nega preta”.
Não é preciso ser acadêmico nem grande pesquisador para saber que as crianças não nascem com esse script racista. Elas absorvem aquilo que aprendem em seu espaço de convivência, com sua família e nos espaços sociais em que circulam com seus cuidadores e cuidadoras. Desta forma, fiquei imaginando Murilo, num momento de contrariedade com outra criança de fenótipo mais demarcado, utilizando dessa mesma brincadeira, tão amável da mãe, para ofender ou menosprezar um amigo da escola. E posso ir mais fundo: imagino Murilo, por ser pardo, tentando se inserir no grupo social da escola, que também já vem carregado de racismo aprendido em casa, utilizando dessas falas para poder se inserir no grupo branco e se distanciando de sua etnia e de sua marca afrodescendente.
Esse assunto é doloroso, mas é necessário. Às vezes, mães, pais, cuidadores e cuidadoras utilizam de “brincadeiras” ou de vícios de linguagem racista perto de crianças sem sequer perceber. Peço, então, que você reflita sobre o quanto de preconceito pode carregar em sua fala. Cito exemplos:
– Nossa, esse cabelo duro deve dar um trabalho!
– Você tá de boa, aí neguinho vem e te atrapalha (e muitas vezes, a pessoa que se quer citar é branca!)
– Neguinho safado.
– Tinha que ser negro mesmo!
– Credo, acho que fizeram uma macumba pra mim!
Friso aqui que esse diálogo pode ser inserido em diversas opressões, mudando apenas o texto, tais como em falas machistas, misóginas, lgbtfóbicas, gordofóbicas, entre outras. A sutileza do racismo às vezes é imperceptível devido a essa cultura do mito da democracia racial. Por isso, você que é mãe, pai, cuidadora ou cuidador, deve atentar para quais racismos ainda carrega e que podem refletir na educação da sua criança. Porque elas, feliz ou infelizmente, não sabem filtrar. Diferentemente de um adulto, ela não vai saber falar isso só entre a família, externando o que aprendeu independentemente das consequências que surgirão dessas falas. Ela não irá refletir sobre os impactos de sua fala sobre a criança ofendida.
É sabido que somos também criados por adultos que naturalizaram o racismo, mas hoje, com a quantidade de denúncias, derrubadas de teses eugenistas e valorização do conhecimento milenar de descendentes de seres humanos africanos escravizados por brancos (sim, precisamos dizer que a culpa dessa violência é dos brancos e brancas) e que hoje, ainda, sofrem com o reflexo dessa violência social, econômica, cultural, biopsicossocial, dessa atrocidade cometida, não podemos mais aceitar tal naturalização.
Esse breve diálogo que travo aqui, agora, com vocês, visa ser fraterno e pedagógico. Também por isso tenho esperança de que não surjam argumentos rasos como: “Isso é vitimismo”, ou que “Negros escravizaram negros”, pois estes somente atestam a fraca compreensão da história deste país. Não sinto necessidade de explicar aqui contextos históricos e justificar a violência que seus descendentes fizeram; é preciso exercer a pesquisa evitando reproduzir chavões construídos com base em meias leituras. Quem realmente busca o conhecimento para compreender e não para justificar violências vai entender de forma justa que o crime cometido é refletido em “privilégios” devido à brutalidade da escravidão no mundo, independentemente da etnia explorada. E não, a ideia não é criar uma sabatina com as pessoas que reproduziram ou reproduzem o racismo, mas sim trazer à tona de que forma essas falas podem culminar em sofrimento de peso incalculável para uma criança.
É necessário também pensar no peso do consentimento de atitudes como essa. Às vezes, mesmo que a pessoa não tenha esse tipo de comportamento ou não fale deste modo, ela acaba sendo conivente ao “deixar passar” atitudes como essas perto de sua criança, como, por exemplo, em reuniões de família, quando alguém começa a fazer piadas racistas ou falas do gênero. Para não se tornar “a chata ou o chato do rolê”, a pessoa simplesmente não demonstra nenhum tipo de indignação frente à situação. Não digo que você deve virar o paladino(a) da causa ou o defensor(a) incomensurável, criando atritos em seu meio social – tem muita gente que faz isso e sinceramente acho maravilhoso –, mas muita gente acaba se calando não por concordar, mas por não saber como argumentar. Reforço aqui que o silêncio é tão prejudicial quanto o ato, mas é possível, por exemplo, conversar com a criança em casa sobre a atitude errada daquela pessoa, explicando o porquê disso ser desrespeitoso e o quanto o que você diz pode revelar, na verdade, a sua fraqueza ou a sua ignorância acerca de outras formas de ser, para além do modo europeu, colocando ainda o quanto se perde quando nos fechamos para uma única forma de ser.
O importante é nunca deixar passar, pois é responsabilidade nossa enquanto cuidadoras e cuidadores repassar para nossas crianças o quanto a diversidade é fundamental para uma sociedade mais altruísta e justa com todos os povos. É importante que pessoas brancas compreendam seu papel na luta contra o racismo. Esse tema não cabe somente a nós, negras e negros. É muito desgastante ter que ficar trabalhando a autoestima da criança o tempo inteiro, por saber que sempre vai haver alguém que pode ofender seu grupo étnico. É muito desgastante e cruel saber que vou ter que me preocupar com o fato de que uma criança branca vai falar mal do cabelo da minha filha porque sua família diz que existe “cabelo ruim”, ou que eu tenha que me preocupar com o fato de que minhas crianças vão querer ser brancas para serem inseridas. Cuidadoras e cuidadores brancos têm o dever ético de ensinar a suas crianças que elas não são melhores que outras etnias e que a reprodução dessas formas de ser, que necessitam da subjugação de pessoas negras, orientais, indígenas e também das questões de gênero, culturais e religiosas, só demonstram a fraqueza de quem não confia em seus próprios atributos.
Por mais que nos neguem, o mundo é farto. Essa generalização de que há escassez ficou lá nas geleiras polares, esse tempo já passou e foram as trocas que garantiram a sobrevivência de vários povos em condições geográficas diferenciadas. Hoje, há sim espaço pra todas e todos, não é preciso menosprezar alguém para garantir a sua existência. Bom, mas isso é papo para outro texto, outra reflexão sobre porque do comportamento individualista da cultura europeia.
Sigamos aqui, na compreensão de que cada um e cada uma de nós é responsável por conduzir todas as crianças ao respeito às diferentes formas de ser, para que outros Murilos e Marias aprendam a construir sua autoestima em suas potencialidades e não no detrimento de outras e outros. Convidemos essas crianças a conhecer o diferente, o novo, de forma lúdica, saudável, a partir de novas histórias, de uma multiplicidade de compreensões de mundo, de costumes. Busquemos com elas aprender e reaprender a sociabilidade.
Convido você a construir comigo essa forma linda de ser nas crianças. Ainda há tempo. Você vem?
*Murilo é um nome fictício